
Esses escritos contêm instruções para obter a visão extática das regiões celestiais da Merkabah. Eles descrevem as peregrinações do extático por essas regiões: os sete céus e os sete palácios ou templos, Hekhaloth, pelos quais o místico da Merkabah viaja antes de chegar ao trono de Deus. Revelações são feitas ao viajante a respeito das coisas celestiais e dos segredos da Criação, da hierarquia dos anjos e das práticas mágicas da teurgia.
Gershom Scholem[i]
Tradução de Estevan de Negreiros Ketzer[ii]
Tendo chegado a este ponto, devemos investigar a situação do esoterismo e misticismo judaico antes do aparecimento da Cabala no palco da história. Já mencionamos anteriormente as antigas especulações cosmogônicas dos talmudistas, bem como seu misticismo do trono. Agora é necessário determinar até que ponto essas especulações ainda eram conhecidas pela tradição judaica do século XII e quais fontes literárias ou orais diretas ela tinha à sua disposição. Pois, como já foi observado, por maior que fosse a distância entre essas ideias antigas e a Cabala, esta última, no entanto, não apenas alegava ser a sucessora legítima dessas antigas doutrinas esotéricas da Criação e da Merkabah[iii], mas também pretendia representar seu conteúdo real em seu próprio ensinamento.
Neste ponto, também, a pesquisa fez progresso substancial no curso da geração passada. Até várias décadas atrás, a maioria dos pesquisadores supunha — com a notável exceção de Moses Gaster — que dois estágios de desenvolvimento completamente diferentes deveriam ser assumidos. Por um lado, existiam entre o primeiro e o terceiro séculos, acima de tudo nos círculos dos talmudistas, as duas disciplinas esotéricas atestadas na Mishnah Hagigah 2:1, a respeito da Criação, Bereshith, e a carruagem divina de Ezequiel 1, a Merkabah. Possuímos algumas informações dispersas e fragmentárias, em grande parte ininteligíveis, sobre essas doutrinas em certas passagens da literatura talmúdica e em antigos midrashim[iv]. Essas tradições foram consideradas como tendo caído mais ou menos no esquecimento e desaparecido. Por outro lado, durante os tempos pós-talmúdicos, no período gaônico (do sétimo ao início do século XI), uma nova onda mística teria varrido o judaísmo, particularmente na Babilônia, e estimulado uma ampla literatura de misticismo Merkabah e textos semelhantes. Essa literatura — foi assim afirmado — não tinha muito mais em comum com as antigas doutrinas do que o seu nome e um certo número de tradições talmúdicas das quais fazia uso literário.
Hoje nós podemos afirmar com certeza que essa separação a qual coloca o misticismo tardio da Merkabah muito próximo do período formativo da Cabala medieval não pode ser mantida. Eu já lidei longamente em outro lugar com esse misticismo Merkabah da chamada literatura Hekhaloth[v], e mostrei que uma cadeia genuína e ininterrupta de tradição liga esses escritos à doutrina secreta do Talmude. Grande parte dessa literatura ainda pertence ao próprio período talmúdico, e as ideias centrais desses textos remontam ao primeiro e segundo séculos. Eles estão, portanto, diretamente ligados ao período produtivo durante o qual o judaísmo rabínico se cristalizou em meio a uma grande efervescência religiosa, afirmou-se e prevaleceu sobre outras correntes do judaísmo[vi]. Para ter certeza, esses textos, que em sua forma atual pertencem em parte ao gênero da pseudoepigrafia apocalíptica, nem sempre são tão antigos quanto pretendem ser. Mas mesmo nessas adaptações posteriores, o material tradicional subjacente remonta ao período indicado. Os hinos místicos encontrados em vários dos textos mais importantes podem definitivamente ser rastreados pelo menos até o terceiro século; aqui é a própria forma literária que milita contra a ideia de uma revisão posterior. As concepções que encontram expressão aqui certamente não foram desenvolvidas posteriormente; na verdade, podem datar de um tempo muito anterior[vii].
Esses escritos contêm instruções para obter a visão extática das regiões celestiais da Merkabah. Eles descrevem as peregrinações do extático por essas regiões: os sete céus e os sete palácios ou templos, Hekhaloth, pelos quais o místico da Merkabah viaja antes de chegar ao trono de Deus. Revelações são feitas ao viajante a respeito das coisas celestiais e dos segredos da Criação, da hierarquia dos anjos e das práticas mágicas da teurgia. Tendo ascendido ao nível mais alto, ele fica diante do trono e contempla uma visão da figura mística da Divindade, no símbolo da “semelhança como a aparência de um homem” que o profeta Ezequiel teve permissão de ver no trono de Merkabah. Lá ele recebe uma revelação da “medida do corpo”, em hebraico Shi’ur Qomah, ou seja, uma descrição antropomórfica da divindade, aparecendo como o homem primordial, mas também como o amante do Cântico dos Cânticos, junto com os nomes místicos de seus membros.
A idade desse misticismo de Shi’ur Qomah, a qual escandalizou a consciência de séculos posteriores, os “iluminados”, pode agora ser fixada com certeza. Ao contrário das visões que prevaleciam, deve ser datado do segundo século, e certamente não depois[viii]. Isso está indubitavelmente conectado com a interpretação do Cântico dos Cânticos como uma alegoria mística da relação de Deus com Israel, aonde ele era visivelmente manifesto em sua Merkabah (essa ideia é atestada em interpretações midráshicas que, sem dúvida, remontam aos tannaim)[ix], assim é essa revelação repetida nas relações entre Deus e o místico iniciado nos segredos da Merkabah. Os fragmentos mais importantes dessas descrições transmitidas no Shi’ur Qomah fazem referência explícita à representação do amante em muitas passagens do Cântico dos Cânticos; essa representação oferece, portanto, um verniz bíblico para o que são evidentemente mistérios teosóficos cujo significado preciso e conexões exatas ainda nos escapam. Pode haver pouca dúvida de que estamos lidando aqui, em forte contraste com a noção de um Deus invisível e sem imagem, sempre tão energicamente mantido pela tradição judaica, com uma concepção que conhece a projeção desse Deus como uma figura mística. Nessa figura se revela, na experiência de uma teofania, a “grande Glória” ou “grande Poder” mencionado em vários dos livros apócrifos e apocalipses judaicos como a mais alta manifestação de Deus. Para ter certeza, essa Glória ou Poder não é diretamente idêntico à essência de Deus em si, mas sim irradia dela. Não é possível, no momento, determinar com certeza até que ponto influências estrangeiras derivadas de especulações sobre o homem primordial celestial agiram sobre essas ideias, que aparentemente poderiam ser mantidas naquela época até mesmo em círculos estritamente rabínicos. Impulsos de fora são, é claro, inteiramente concebíveis; eles já são comprovados pelo simbolismo do capítulo da Merkabah, Ezequiel 1, para a época do próprio profeta, e certamente não faltaram canais pelos quais influências semelhantes pudessem chegar à Palestina. Por outro lado, devemos considerar muito mais seriamente a possibilidade de um desenvolvimento e elaboração imanentes de tais impulsos que podem ter sido muito mais intensos do que geralmente se supõe.
O historiador da religião tem o direito de considerar o misticismo da Merkabah como um dos ramos judaicos do gnosticismo[x]. Por mais raras que sejam as referências nos textos existentes a mitos gnósticos, ou especulações abstratas sobre os éons e suas relações mútuas, certas características fundamentais do gnosticismo são, no entanto, totalmente congruentes com o tipo de misticismo que encontramos nos escritos da Merkabah: a posse de um conhecimento que não pode ser adquirido por meios intelectuais comuns, mas apenas por meio de uma revelação e iluminação mística; a posse de uma doutrina secreta sobre a ordem dos mundos celestiais e os meios litúrgicos e mágico-teúrgicos que fornecem acesso a ela. De acordo com Anz[xi], o ensinamento central do gnosticismo consiste em instruções metódicas para a ascensão da alma da terra através das esferas dos anjos-planetas hostis e governantes do cosmos até seu lar divino. Mesmo que, levando em conta pesquisas mais recentes sobre o Gnosticismo, não cheguemos tão longe quanto Anz, o fato é que precisamente essas ideias foram afirmadas no coração de uma disciplina esotérica dentro da tradição judaica, e não apenas entre os hereges judeus, embora o papel dos anjos-planetas pagãos seja aqui assumido por outros arcontes. Esses arcontes ameaçam o visionário extático nos portões dos sete palácios celestiais e — inteiramente de acordo com as doutrinas de vários escritos gnósticos do mesmo período — só podem ser superados e compelidos a permitir que ele passe pela exibição de um “selo” mágico, através da recitação de hinos, orações, etc. Ainda se pode discernir claramente a relação com os escritos apocalípticos judaicos tardios, cujas ideias evidentemente formam uma transição plausível tanto para o gnosticismo monoteísta judaico quanto para o gnosticismo herético que tendia ao dualismo[xii].
Na especulação de Shi’ur Qomah, a figura mística aparece no trono como o criador do mundo, yoser bereshith[xiii]; de seu manto cósmico, que é frequentemente falado aqui, as estrelas e o firmamento brilham[xiv]. Mas essa representação do demiurgo procede de uma concepção completamente monoteísta e carece completamente do caráter herético e antinomiano que assumiu quando o Deus Criador se opôs ao Deus verdadeiro. Aqui o trono de Deus é, na terminologia judaica, o lar da alma; é lá que a ascensão do extático é completada. O mundo da Merkabah no qual ele “desce” está intimamente relacionado ao mundo do pleroma dos textos gnósticos gregos. No entanto, no lugar de conceitos abstratos personificados como éons, encontramos as entidades do mundo do trono como elas entraram nesta tradição do livro de Ezequiel. Ao mesmo tempo, há contatos diretos entre esses textos do Gnosticismo Merkabah e o mundo sincrético dos papiros mágicos. Possuímos textos hebraicos da Merkabah que são lidos como se pertencessem à literatura dos papiros mágicos[xv]. Os limites, pelo menos em relação ao judaísmo, não eram tão bem definidos quanto aqueles traçados por muitos autores recentes escrevendo sobre o gnosticismo que estavam empenhados em diferenciar entre o gnosticismo cristão e a magia sincrética em discussão.
Não temos razão para acreditar que essa teosofia gnóstica ainda possuía quaisquer impulsos criativos de caráter decisivo após o terceiro século. O desenvolvimento produtivo dessas ideias ocorreu evidentemente em solo palestino, como a análise dos textos de Hekhaloth prova. Em uma data posterior, na Palestina, bem como na Babilônia, ainda encontramos elaborações literárias desse material antigo, algumas das quais passaram por metamorfose em tratados edificantes. Mas não encontramos mais nenhuma ideia nova. A realização prática dessas viagens celestiais da alma e a “visão da merkabah”, sefiyyath merkabah[xvi], se mantiveram também no período pós-talmúdico, e alguns relatos dispersos sobre práticas desse tipo, que não devem ser considerados meras lendas, chegaram até nós desde os séculos XII e XIII da França e da Alemanha[xvii]. Esses textos antigos, aumentados por todos os tipos de adições posteriores, eram conhecidos na Idade Média na forma dada a eles no final do período talmúdico e no início do período pós-talmúdico como “Hekhaloth Maior”, “Hekhaloth Menor”, Shi’ur Qomah, Livro da Merkabah e sob outros títulos, bem como em diferentes versões. Esses textos eram considerados parágrafos antigos e esotéricos da Mishná, e nas inscrições dos manuscritos mais antigos eles são aqui e ali designados como “halakhoth acerca das Hekhaloth”[xviii]. Eles gozavam de grande autoridade e não eram de forma alguma suspeitos de heresia. Manuscritos desses textos e a literatura teúrgica relacionada eram conhecidos no Oriente, como é comprovado por muitos fragmentos na Genizah do Cairo[xix], mas também na Itália, na Espanha, na França e na Alemanha[xx]. No século XII, textos desse tipo circulavam precisamente em círculos eruditos, aonde eram considerados documentos autênticos das antigas doutrinas esotéricas[xxi]. Portanto, era de se esperar que os primeiros cabalistas buscassem estabelecer um relacionamento com as tradições que gozavam de tão alta estima.
A presente tradução foi baseada na edição Origins of the Kabbalah. Translated from the German by Allan Arkush. Princeton: Princeton University Press, 1987, pp. 18-24.
[i] Filósofo e professor emérito da Universidade Hebraica de Jerusalém.
[ii] Psicólogo clínico. Doutor em Letras (PUCRS). Email: [email protected].
[iii] No hebraico a escola da Merkavah (100 aec a 1000 ec) é conhecida pela ideia de Carruagem a qual consta no Livro de Ezequiel e no Livro de Reis com a ida do profeta Elias aos céus (N. do T.).
[iv] Grande parte do material, mas não todo, foi coletado por Strack e Billerbeck, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrash; veja as referências no índice, vol. 4, s.v. “Merkaba”, “Tron”. Além disso, cf. também as monografias de H. Graetz, Gnosticismus und Judenthum (Krotoshin, 1846); M. Joël, Blicke in die Religionsgeschichte zu Anfang des zweiten christlichen Jahrhunderts, vol. l (Breslau, 1880), 103-170; M. Friedländer, Der vorchristliche jüdische Onosticismus (Göttingen, 1898); Erich Bischoff, Babylonisch-Astrales im Weltbilde des Thalmud und Midrasch (Leipzig, 1907); G. Castelli, Oli antecedenti della Cabbala nella Bibbia e nella Letteratura Talmudica, Actes du 12me Congres des Orientalistes 1899, vol. 3 (Turim, 1903), 57-109.
[v] No original em hebraico: palácios (N. do T.).
[vi] Cf. minha exposição em Major Trends, 40ff. e 355ff., bem como, acima de tudo, minhas investigações mais recentes em Jewish Gnosticism, Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition (Nova York, 1960; revisado e [no apêndice] ed. ampliada, 1965). Progresso adicional nesta área foi feito por Ithamar Gruenwald, Apocalyptic and Merkavah Mysticism (Leiden, 1980), que fez uso de material recém-descoberto e colocou novas questões para a agenda de pesquisa. Entre estas, o problema dos elementos judaicos no gnosticismo figura proeminentemente. Sobre esta questão, discussões animadas têm ocorrido desde a descoberta dos textos de Nag Hammadi.
[vii] Jewish Gnosticism, sec. 4, 20-30.
[viii] Cf. com respeito a esta importante nova conclusão ibid., 36-42, 129-131, bem como apêndice D; Eranos-Jahrbuch 29 (1960 [Zurique, 1961]): 144-164.
[ix] Cf. exposição de Saul Lieberman em Jewish Gnosticism, apêndice D, 118-126.
[x] A discussão sobre o que exatamente deve ser entendido por “gnose” ganhou destaque na literatura acadêmica e em conferências durante as últimas décadas. Há uma tendência a excluir fenômenos que até 1930 eram designados como gnósticos por todos. Para mim, não parece importar muito se fenômenos anteriormente chamados de gnósticos são agora designados como “esotéricos”, e eu, por exemplo, não consigo ver o uso ou valor das distinções recentemente introduzidas (por exemplo, gnose—gnosticismo e similares).
[xi] Wilhelm Anz, Zur Frage nach dem Ursprung des Gnostizismus (Leipzig, 1897).
[xii] Cf. R.M. Grant, Gnosticism and Early Christianity (Nova York, 1959). Grant enfatizou fortemente essas relações em face ao zelo com as hipóteses de diretas influências pagãs foram mantidas.
[xiii] No original em hebraico: Retidão da Criação (N. do T.).
[xiv] Cf. Jewish Gnosticism, sec. 8, 57-64.
[xv] Publiquei um desses textos em Jewish Gnosticism, apêndice C, 101-117, com base em dois manuscritos.
[xvi] No original em hebraico: Carruagem Divina (N. do T.).
[xvii] Para relatos autênticos sobre o tipo de misticismo Merkabah de viagens celestiais pelos talmudistas franceses, veja cap. 3, n. 86, aqui.
[xviii] Como, por exemplo, nos manuscritos que Yehudah ben Barzilai tinha diante de si no início do século XII, como ele atesta em seu comentário sobre o Sefer Yetsirah, 101. Em muitos manuscritos dos séculos XIII e XIV da Alemanha, os vários parágrafos do “Hekhaloth Maior” são designados como halakhoth.
[xix] O túmulo de documentos foi encontrado na sinagoga Ben Ezra, no Cairo, entre 1752 e 1896. Dos 400 mil documentos da gueniza foi descoberto o Shi’ur Qomah (N. do T.).
[xx] Assim, a Sra. Oxford Heb. C 65 contém um grande fragmento do Shi’ur Qomah; a Sra. Sassoon 522 contém um fragmento de um midrash Merkabah desconhecido e muito antigo e um fólio do Shi’ur Qomah. Os restos existentes das “Visões de Ezequiel”, Re’iyyot Yehezqel, do quarto século, que discuti em Jewish Gnosticism, 44-47, todos vêm do Genizah. Uma nova edição crítica e comentário foram publicados por Ithamar Gruenwald em Temirin, vol. 7 (Jerusalém, 1972), 101-139; veja também Apocalyptic and Merkavah Mysticism de Gruenwald, 134-141. No início do século XII, textos místicos e teúrgicos também podiam ser comprados de um livreiro no Cairo, cujo catálogo foi parcialmente preservado no Genizah; cf. o texto em Elkan Adler, About Hebrew Manuscripts (Oxford, 1905), 40 (nos. 82 e 83). A maioria dos manuscritos desse tipo de literatura se origina, no entanto, na Itália e na Alemanha.
[xxi] Esses escritos são frequentemente citados nas responsa dos geonim, os chefes das academias babilônicas, bem como nas obras rabínicas e filosóficas do início da Idade Média. Os caraítas tinham um prazer especial em torná-los alvos de seus ataques, sem que os apologistas rabínicos os desmentissem. Os materiais gaônicos mais importantes sobre as tradições da Merkabah, etc., foram coletados por Benjamin M. Lewin, Otzar ha-Geonim, Thesaurus of the Gaonic Responsa and Commentaries, vol. 4, fasc. 2, Hagigah (Jerusalém, 1931), 10-27, 53-62.