
Sob o manto do mistério, psicólogos, historiadores ou sociólogos conseguem redescobrir os restos de uma mentalidade primitiva… Não entendo por que os irracionalistas da atualidade se orgulham de ter eliminado os velhos conceitos e imediatamente passam a adorar sua sombra.
Ser ocidental[1]
Emmanuel Levinas
Filósofo francês de origem lituana. Professor da Sorbonne.
Tradução de Estevan de Negreiros Ketzer
Psicólogo clínico. Doutor em Letras (PUCRS). Email: [email protected]
Para nossos pais, o século XX significou um sucesso. A elegância da figura arredondada conferiu um certo tom triunfal a esta era da razão. Desde então, duas guerras deram a esse triunfo uma ressonância lúgubre e o desfecho bem-sucedido da humanidade assume a aparência de um fim. Doravante, entende-se que os termos progresso e ciência testemunham apenas o espírito primário e que somente a sede pelo irracional substitui a dignidade humana. Uma religião incapaz de saciar essa sede é proscrita – a menos que invente, a partir de vários fragmentos, o elemento irracional que lhe falta.
Talvez, no entanto, o descrédito em que a razão caiu não tenha a ver com os momentos de angústia e êxtase do século, mas com o isolamento em que essa razão é obrigada a se retirar em virtude de sua própria nobreza. Um Cantor ou um Einstein tem, sem dúvida, menos contemporâneos do que um Descartes ou um Newton tiveram, diz Leon Brunschvicg em “Sobre a Verdadeira e a Falsa Conversão”, uma série de artigos publicados antes da guerra na Revue de Metaphysique et de Morale [Revista de Metafísica e Moral], que acaba de ser publicada na forma de um volume[2]. Está voz de além-túmulo terá ela o efeito salutar de dar uma má consciência intelectual àqueles que esqueceram, usando o pretexto da juventude, o que, afinal, há três séculos, já mede a distância exata entre o pensamento e a infantilidade.
Mas é urgente pensar? Questões vitais nos assaltam: o nosso pão de cada dia e o dos nossos semelhantes; a destruição que ameaça o mundo, o nosso país, as nossas famílias. Questões respeitáveis, mas questões que o instinto de conservação não pode justificar. O que deve ser preservado para além da nossa existência privada? Quais são as lições para o ser? O mais humilde dos discursos, a gagueira mais hesitante, se cobre de grandes palavras, sem as quais os gritos da existência nua envergonham o homem. Defendendo o Ocidente, defendendo a civilização, defendendo o espírito. Essa horrível palavra espírito – um refúgio, como o próprio inferno, para toda boa intenção e ação cruel.
O que significa ser ocidental? Existe nessa fidelidade ao Ocidente a expressão de pertencer a uma forma elevada de sociedade, uma que seja mais do que uma coalizão de interesses, um agrupamento profissional ou confessional, mais do que a adesão a costumes locais, um credo filosófico ou literário, ou mesmo uma revista, um círculo de estudos, uma doutrina ‘original’, todas elas, munidas de uma razão social, citadas de acordo com os papéis do apaixonado jogo de letras na Revista ou círculo de estudos vizinho, deram a seus adeptos, colaboradores e assinantes a ilusão de entrar para a história e renovar a civilização? Leon Brunschvicg acredita na existência de uma sociedade absoluta: Galileu, Descartes, Kepler, Huyghens, Newton, Cantor, Einstein — e alguns outros. Uma sociedade composta de mentes de primeira ordem. E que todo o resto seja literatura. Ele também acha que a atividade intelectual dos membros dessa sociedade coincide exatamente com a generosidade moral e a pureza religiosa que garantem a dignidade do homem.
Os resultados da física e da matemática mapeiam um universo real por trás do universo verbal das abstrações conceituais. Mas, acima de tudo, essas abstrações conceituais, que se elevam com uma velocidade perturbadora ao nível do Divino, na realidade permanecem prisioneiras da percepção, que é egocêntrica e, em última análise, egoísta como a animalidade. Somente o pensamento matemático consegue se libertar do egoísmo camuflado do conhecimento escolástico e de suas relíquias místicas e racionalistas. É um pensamento criativo. “Não estamos mais, de fato, preocupados com formas estáveis apresentadas de uma vez por todos, mas com formas em movimento, relações sutis construídas pela mente no curso de seu livre funcionamento[3]” – este trecho do racionalismo de Brunschvicg foi escrito por Jean Wahl, um homem curioso por examinar toda ideia nova, enquanto defendia obstinadamente toda ideia valiosa. É um pensamento verdadeiramente interior. Na evidência matemática, o pensamento liberta-se de sua condição biológica: simultaneamente subserviente e dominador da verdade, é pura intimidade a si, “a transição do presente temporal para o presente eterno” (p. 177). “… Nascido para ser um simples animal, o homem rompeu os grilhões de sua finalidade biológica. O conhecimento era um meio, e ele o transformou em um fim, que, graças ao estabelecimento de certas formas de comportamento relacionadas à coordenação matemática e ao controle experimental, conquistou a dignidade de um valor intrínseco” (p. 177). Que uma vida espiritual seja desprovida de egoísmo — egoísmo como busca pela salvação — é, em sua visão, a lição a ser aprendida do Ocidente.
“A preocupação com a nossa salvação é um resquício de amor-próprio, um traço de egocentrismo natural do qual devemos ser arrancados pela vida religiosa. Enquanto você pensa apenas na salvação, você vira as costas para Deus. Deus é Deus, apenas para a pessoa que supera a tentação de degradá-Lo e usá-Lo para seus próprios fins” (p. 258). Certos estudantes e aqueles a quem Brunschvicg chama de “os pré-cartesianos do século XX” são livres para discorrer sobre a crise do espírito científico e se voltarem com entusiasmo para o mistério. “Sob o manto do mistério, psicólogos, historiadores ou sociólogos conseguem redescobrir os restos de uma mentalidade primitiva… Não entendo por que os irracionalistas da atualidade se orgulham de ter eliminado os velhos conceitos e imediatamente passam a adorar sua sombra”, exclama Leon Brunschvicg na p. 259. Seus livros, baseados na verdade calma da ciência e do mundo que a ciência compreende, são como aquela onda repentina de bom senso em certas famílias quando o comportamento infantil dos adolescentes é tolerado até o momento em que eles estão prestes a fazer algo estúpido, momento em que se grita: “Chega”.
***
A preocupação com a salvação, mesmo quando se eleva acima das necessidades imediatas e busca apenas triunfar sobre a morte, ainda provém do eu biológico; o eu biológico não pode prescindir da mitologia e da guerra. Esses são os pontos cuja intransigência de Brunschvicg nos é infinitamente próxima. O judaísmo também apela a uma humanidade desprovida de mitos — não porque o maravilhoso seja repugnante à sua alma estreita, mas porque o mito, embora sublime, introduz na alma aquele elemento perturbado, aquele elemento impuro da magia e da feitiçaria e aquela embriaguez do Sagrado e da guerra que prolongam o animal dentro do civilizado.
“O Deus das guerras da religião pode ele ser o Deus da Religião? – se pergunta Brunschvicg. Assim como não podemos desviar o olhar dos sacrifícios alegremente feitos e heroicamente oferecidos, como exaltação da fé, também não podemos evitar o olhar para o sofrimento violentamente imposto por tudo, em termos de fúria sangrenta e dos chamados crimes de caridade, que, inversamente, está implicado nessa mesma exaltação. É sobre isso que vamos construir uma teoria da Providência Divina?” (pp. 120-121). Este é um texto profundo: não porque envolva o testemunho extrínseco da história, mas porque denuncia a própria ambiguidade da exaltação – abnegação e crueldade. Porque os atos cruéis se encontram condicionados precisamente pelos elementos residuais que são descontrolados e impuros em seu amor supostamente puro e simples ao Deus transcendente. As Igrejas afirmam, dessa forma, ir além da espiritualidade austera da Lei. Não é este o propósito último da “cegueira da Sinagoga”, que recusa o esplendor e as levitações da salvação pela fé? O que os teólogos cristãos apresentam como um apego teimoso à letra é, na realidade, uma recusa daquilo que é facilmente chamado de espírito. O judaísmo autêntico pensa em si mesmo em termos de uma moralidade interior, não de um dogmatismo exterior. O sobrenatural não é uma obsessão para o judaísmo. Sua relação com a divindade é determinada pelo alcance exato da ética.
***
Ao reunir dois versículos de uma epístola joanita: “Ninguém que nega o Filho tem o Pai. Aquele que confessa o Filho tem também o Pai” (1 João 2:23); “Ninguém jamais viu a Deus; se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós, e o seu amor é aperfeiçoado em nós” (1 João 4:12). Ele comenta que o conteúdo mitológico do primeiro versículo remete o pensamento a um ponto aquém do Antigo Testamento, que “sem dúvida é escrito em um estilo antropomórfico, no qual a unidade de Deus é, no entanto, mantida com um cuidado ciumento” – enquanto o segundo versículo, afirmando a pura espiritualidade de Deus e Sua interioridade, “nos coloca além do Novo Testamento, pois a distinção entre as pessoas divinas deixa de ser negada e afirmada todas juntas pela virtude mágica de uma fórmula” (p. 143). Como podemos deixar de admirar a intuição surpreendente (é um homem iniciado no judaísmo através do cristianismo) que lhe permite deduzir o estilo antropomórfico da Bíblia judaica? Mas como não deixar de reconhecer – em oposição a Brunschvicg – que a inspiração para o segundo texto não é mais recente – mas sim mais antiga – do que o Novo Testamento; que é a própria inspiração para o Antigo Testamento?
A piedade com que mantemos viva a memória de Leon Brunschvicg nos impede de reivindicá-lo como nosso – ele que era tão soberbamente independente quando se tratava de pertencer a qualquer modo confessional. Nos reunimos com ele apenas no ponto em que ele descobriu a essência do Ocidente conversando com os maiores espíritos.
Tradução do original em francês “Être occidental” retirado do livro Difficile Liberté: essais sur le judaïsme. Paris: Albin Michel, 1976, p. 79-84.
[1] Publicado em Evidences, 1951, nº 17.
[2] Leon Bruschvicg: De la fausse conversión, seguido de La Querelle de l’Athéisme. P.U.F.
[3] Cinquante années de découvertes. Balanço 1900-1950. Éditions du Seuil, p. 86.

Estevan de Negreiros Ketzer é Psicólogo clínico (PUCRS). Mestre e Doutor em Letras (PUCRS). Pesquisador nos arquivos do IMEC na França, em 2015. Assessor da Uniritter para a implementação da disciplina de Escrita Criativa ao ano de 2016. Pesquisador do Núcleo de Estudos Judaicos (NEJ) da UFMG. Pós-doutorando em Letras (UFMG).