As Virtudes Perdidas: por quê não podemos viver sem elas.

4 cardinal virtues

É possível afirmar que o desenvolvimento da vida humana depende de sete virtudes principais: as virtudes “pagãs” ou “aristocráticas” de coragem, justiça, temperança e prudência, e as virtudes femininas e teologais de fé, esperança e amor. O sistema de virtudes, desenvolvido ao longo de dois milênios no Ocidente, tem sido largamente abandonado desde o final do século XVI. Este foi deixado de lado de forma desleixada, seja por ser visto como antiquado, ou por ser irrealista em uma época com uma nova ideia sobre o Real, ou por estar associada a sistemas religiosos e políticos condenáveis pela época.

Artigo Original: Deirdre McCloskey. Tradução: Tiago Barreira

É possível afirmar que o desenvolvimento da vida humana depende de sete virtudes principais. A importância de quatro delas – as virtudes “pagãs” ou “aristocráticas” ou “políticas” de coragem, justiça, temperança e prudência – era demonstrada por Platão, Aristóteles e Cícero. No começo do século XIII, Santo Alberto Magno resumia a tese de Cícero de que em toda ação virtuosa se encontram quatro virtudes cardeais: “O conhecimento sensato requer o apelo à prudência; a força para agir de forma resoluta, o apelo à coragem; a moderação, o apelo à temperança; e a retidão, o apelo à justiça”. Durante as ruminações sofisticadas que perduraram até o século XVIII sobre as virtudes, foram estas quatro cardeais que persistiram – como, por exemplo, na Teoria dos Sentimentos Morais de Adam Smith.

De várias maneiras podemos considerar as quatro virtudes pagãs como virtudes políticas – por exemplo, no sentido da Antiguidade de contribuir para a sobrevivência e o florescimento de uma polis composta de animais políticos. Um combatente hoplita na linha de batalha da polis necessitava de coragem, prudência, temperança e justiça – todas as quatro. Assim também um político discursando para a Assembleia ateniense. Quando Atenas ignorava qualquer uma delas – por exemplo, no caso da justiça em seu trato com Melos ou da prudência durante sua expedição à Siracusa – os resultados eram dolorosos. A ausência de tais virtudes destruíam o crescimento ateniense, como sempre o farão.

As outras três virtudes para uma vida em crescimento, adicionadas às sete principais, são a fé, esperança e amor. Essas três, então chamadas de virtudes teologais, não serão até o século XIX reconhecidas como políticas. Antes dos românticos com o seu nacionalismo e romantismo, elas foram pensadas para alcançar a salvação de uma alma individual, assim como alcançar a Cidade de Deus, e não à Cidade dos Homens. “As virtudes teologais estão acima da natureza humana” escreveu o estudante de Santo Alberto, Santo Tomás de Aquino por volta de 1270. “As virtudes intelectuais e morais aperfeiçoam o intelecto humano e o apetite em proporção à natureza humana, mas a virtudes teologais a fazem de maneira sobrenatural”.

As virtudes teologais também podem ser chamadas de tipo “camponesas”, para contrastá-las com as outras quatro, de tipo aristocráticas, ou “cristãs” (sem implicar que cristãos sejam especialmente mais habilidosos em alcançá-las). A apologia das três virtudes cristãs é feita desde muito cedo, durante a formação do cristianismo, aquela grande “heresia Judaica” . Quando, no ano de 50 d.C, São Paulo em sua primeira carta atribui louvores às três teologais, ele mostra esboçar uma tradição já estabelecida pelos cristãos emergentes (1, Tessalonicenses 1:3, 5:8). Sua apologia mais famosa delas é, evidentemente, encontrada em 1 Coríntios 13: “Fé, esperança e amor, essas três estão ligadas. Mas a maior destas é o amor.”

No entanto, as virtudes teologais podem ser explicadas em termos inteiramente seculares. O “amor” em 1 Coríntios 13 é o Agape, o amor transcendente, e não o Eros e nem mesmo a Philia. Em um mundo onde Deus está morto, o homem sem nenhum tipo de amor à transcendência secular – ciência, arte, a nação, futebol – não progride. Fé é uma virtude de identidade e enraizamento. Ela olha para trás: quem é você? A esperança olha para a frente: o que você quer ser? Ambos dão sustentação ao ser humano, e de fato podem ser vistas, junto com o Agape, a virtude da conectividade, como as virtudes caracteristicamente humanas. A mulher sem fé não é um ser humano. Ela é, por assim dizer, “sem vida”. O homem sem esperança não tem um projeto de vida. Ele vai para casa após o trabalho e dá um tiro em si próprio. E quem o parará, sem os laços de conexão do amor?

As quatro virtudes pagãs e as três cristãs realizam um casamento único, consumado em meados do século XIII por S.Tomás em sua análise das virtudes. As sete frequentemente se contradizem. Nenhum cidadão homem adulto e livre de Atenas, por exemplo, reconhecia o amor enquanto definição de uma virtude primária. Sem dúvida é maravilhoso vermos menções a ele, por exemplo, em um Banquete de Platão, mas não havia nele um sentido “político”, e portanto estava desvalorizado em um mundo que tomava a política como a maior expressão da virtude humana. Aristóteles tinha grande admiração pela virtude de megalopsyche, a virtude da alma grande, traduzida literalmente para o latim como magnanimitas. A magnanimidade é a virtude dos aristocratas, alguém com a fortuna moral de exercê-la desde cima.

Em contraste, a virtude do amor – como Nietzsche dizia com desdém – constitui a religião dos escravos. Nietzsche quase chegou a chamá-la de virtude feminina. Quando, no final dos anos 30, Simone Weil, uma judia secular francesa em via de conversão ao cristianismo, ao observar em uma aldeia de pescadores portugueses uma procissão religiosa, percebeu como o “Cristianismo é notavelmente a religião dos escravos, que os escravos não podem não aderir a ela, e eu entre os outros”. Amor, mesmo na forma de uma solidariedade abstrata enfatizada no século XIX, aproximava-se do pessoal, pacífico, cristão e dócil, bem contrária à virtù máscula de um lider livre e adulto de Atenas, ou de Roma, ou da Florença do início do século XVI. Alasdair Macintyre nota que, “Aristóteles certamente não teria sido um admirador de Jesus Cristo e estaria horrorizado por São Paulo”, com todas as suas falas embaraçosas sobre amor. Os pagãos não eram amorosos, pelo menos não em suas filosofias. Os cristãos mostraram que o eram.

Entre 400 a.C e 1749 d.C, o universo moral era descrito como mistura das sete virtudes principais, contendo centenas de virtudes menores e particulares. As tensões por volta das sete, e suas complementariedades também, podem ser expressas pelo seguinte diagrama.

Captura de Tela 2015-12-25 às 21.30.21

Virtudes pequenas mais admiráveis, como parcimônia e honestidade, podem ser descritas como combinações das sete principais. As sete são, nesse sentido, cores principais. Elas não podem ser derivadas umas das outras, cores menores podem ser derivadas destas: azul somado ao vermelho torna-se roxo, e azul somado ao amarelo torna-se verde, mas você não consegue extrair vermelho do marrom e roxo. Honestidade, aquela virtude burguesa, é justiça mais temperança em matéria de discurso, com um tom de coragem e um toque de fidelidade. Um vício é, por sua vez, a notável falta de uma ou mais dessas virtudes. S. Tomás é mestre em tais análises e dá credibilidade a elas ao mostrar que as sete são principais. “As virtudes cardeais”, ele nota, “são chamadas de principais não porque sejam mais perfeitas do que todas as outras virtudes, mas porque a vida humana gira principalmente em torno delas e as outras virtudes estão fundadas nestas.” Coragem mais prudência produz empreendimento, outra virtude burguesa. Temperança mais prudência produz parcimônia, também chamada de burguesa. Temperança mais justiça produz humildade, uma virtude cristã.

Vários pensadores modernos tentaram criar uma nova paleta de cores, colocando a integridade, civilidade ou sustentabilidade como primárias. Assim fora uma charge do New Yorker em 2002: um homem que após ter sido fritado por uma comissão do Senado sobre a Enron e outros desastres contábeis diz ao seu filho “Honestidade é uma boa qualidade, mas não é a única”. Criar novas tonalidades primárias é como depender da púrpura e verde, ou verde-amarelado e água-marinha. São cores boas e importantes – de fato, estão entre minhas favoritas. Mas elas são “secundárias”, falando de maneira técnica, ou mesmo “terciárias” – a paleta de Gaugin e Matisse contra aquela do final da vida de Van Gogh, ou final da vida de Piet Mondrian. Na questão ética, as primárias falsas não são acompanhadas por nenhuma tradição de como saber misturá-las ou arranjá-las.

As tensões e complementariedades são expostas no diagrama acima. No espaço ético, a base é o reino do profano, onde a prudência e a temperança governam. O topo é o reino do sagrado, do amor espiritual e da fé e esperança. Movendo-se para cima, passamos desde as virtudes de autodisciplina (prudência, temperança), em que o principal objeto é o próprio indivíduo, passando pelas virtudes altruísticas, em que o principal objeto são os outros (amor aos homens; justiça) e finalmente para as virtudes transcendentais (fé, esperança e amor pelo transcendente), cujo principal objeto são Deus ou a física, ou a melhoria dos pobres. Isto é, da base ao topo corre um eixo de objetos éticos cada vez mais amplos.

Prudência e justiça na base e no meio são calculativas e intelectuais. Elas frequentemente tem sido pensadas, desde Platão e os escritores das notas de rodapé a Platão, como as virtudes de características mais humanas. Elas foram glorificadas, especialmente pelo homem duro dos séculos XVII e XVIII na Europa fugindo da fé, esperança e amor religioso. Immanuel Kant elevou a combinação de prudência e justiça – por este chamado de “Razão Pura” – a uma definição precisa de homem e cidadão.

Pela graça de Darwin, no entanto, nós podemos ver como virtudes calculativas não são particularmente humanas. Elas também podem ser encontradas no menos humano dos seres – em formigas sacrificando-se pela rainha, ou em dentes-de-leão trabalhando de forma prudente através das rachaduras de uma calçada. A terminologia é, claro, figurativa – uma atribuição humana, não a própria maneira da Natureza de impô-la. Mas esse é o ponto em que estamos discutindo aqui: são figuras de linguagem humanas, uma vez que a Natureza não possui palavras. A História Natural tem nos ensinado desde 1859 a descobrir que o leão não é “corajoso” de fato, jamais, mas apenas prudente ao evitar elefantes, com um pouco de justiça, talvez, em se reconhecer no topo da hierarquia do orgulho.

Coragem e temperança são controladoras de emoções e disciplinadoras da vontade, e no entanto, nós descobrimos agora, de características mais humanas que a prudência e a justiça. E as virtudes mais humanas são aquelas virtudes teologais secularizadas – fé, esperança e amor – provendo os fins transcendentes para uma vida humana. O restante – mesmo coragem e temperança – são apenas meios.

A tríade temperança-justiça-prudência próximo a base e ao meio é calma (fria) e clássica, e no entanto recomendada no século XVIII pelos primeiros teóricos da burguesia como David Hume e Adam Smith. Hume chamou-as de virtudes “artificiais”, seguindo Grotius e Pufendorf, porque são virtudes necessárias para a arte da criação de qualquer comunidade que fosse. A calma da temperança, justiça e prudência eram louvadas em particular por homens que haviam visto ou haviam imaginado de forma vívida o colapso de suas comunidades na guerra religiosa e ambição dinástica, dos jesuítas aos presbíteros, dos Habsburgos, Bourbon aos Stuart.

O excesso de fé, esperança e das partes transcendentais do amor  atormentava seriamente o homem do século XVIII. Tanto Hume como Smith haviam presenciado de longe a ascensão jacobita (movimento ultra-tory e de tendências católicas que visava reconduzir a família Stuart ao trono inglês, expulsa com a Revolução Gloriosa) de 1745, nem com um pouco de simpatia – eles não foram habitantes selvagens da Terra Alta ou jacobitas, e nem certamente católicos, mas escoceses da Terra Baixa com inclinações deístas ou mesmo ateístas, que conviviam em paz com os costumes ingleses. E então eles omitiam os elementos de fé, esperança e amor transcendente. Smith pretendia escrever um livro cada para temperança, prudência e justiça, e conseguiu completar os dois primeiros.

As outras, virtudes “naturais” de coragem, amor, esperança e fé transmitem entusiasmo (calor) e sentido para uma comunidade habilmente criada – às vezes excesso de entusiasmo e sentimentos. Os seguidores escoceses de Francis Hutcheson admitiam amor aos outros homens, como benevolência, e admitiam coragem, como empreendimento, mas à margem de suas principais preocupações. Eles certamente não se preocupavam com a fé, esperança e Agape – sendo Hume, por sua vez, muito feroz contra suas expressões religiosas, o “celibato, abstinência e outras virtudes monásticas.” Decididamente, transmitir entusiasmo e sentimento não era o que os iluministas escoceses tinham em mente. Esse será um projeto romântico, e estes não eram românticos.

Da esquerda à direita no diagrama aparece o caráter das virtudes sob a perspectiva do gênero, masculino e feminino, nas narrativas convencionais. O eixo esquerda-direita expressa o gênero do ator ético, ou sujeito, enquanto o eixo topo-base expressa o propósito do ator, ou objeto. Convencionalmente, é claro, mulheres são esperadas a pensar o mundo pela perspectiva do amor do lado direito, ou em seus vícios correspondentes, como inveja e ciúmes. Homens são esperados a pensar no mundo pela perspectiva esquerda da coragem, em seus vícios correspondentes de covardia, vanglória, egocentrismo. Outro nome para o lado direito no diagrama é “conexão”, e para o esquerda, “autonomia”.

Frank Knight, que era mais do que um economista, acreditava que até mesmo desejos humanos ordinários poderiam ser reduzidos “em uma grande medida ao desejo de ser como outra pessoa, e ao desejo de ser diferente.” Teólogo Paul Tillich chamou-as “participação” e “individualização”, e notou que existe uma coragem de ser, mas também uma “coragem de fazer parte” – isto é, de participar. Michael Ignatieff chama um lado de “conexão e enraizamento” e de outro lado “liberdade”: “uma contradição potencial … se levanta entre nossa necessidade por solidariedade social e a nossa necessidade por liberdade”. Nós temos direitos, ele notou, o que é uma boa coisa, permitindo alcançarmos os projetos do campo esquerdo de esperança e coragem regulado pela justiça. Mas nós também necessitamos de “amor, respeito, honra, dignidade, solidariedade com os outros”. Ignatieff declara, do outro, do lado superior direito, e estes não podem ser compelidos pela lei. Logo, o vocabulário singular de Hume do “natural” contra o “artificial”, virtudes forçadas pela lei.

As sete virtudes são aproximadamente adequadas enquanto psicologia filosófica. Qualquer outro sistema ético de virtudes humanas traria os mesmos efeitos descritivos, desde que se dê nome a elas e não entrem todas em contradição ou fracassem como dever, utilidade ou contrato. O pensamento confucionista, ou tradições indígenas americanas, ou leis e costumes tradicionais africanos, possuem versões próprias dos Sete Ocidentais.

Você pode testar as suas adequações ao imaginar uma pessoa ou comunidade que notavelmente possui uma delas em falta. Uma vida sem amor é terrível; uma comunidade sem justiça o é também. Philippa Foote, uma das que redescobriram as virtudes éticas no século XX, escreveu em 1978 que “ninguém pode ser bem sucedido se nele faltar coragem, e não tiver alguma medida de temperança e sabedoria [seu termo para prudência], enquanto para uma sociedade, onde a justiça e caridade [termo para o amor da Bíblia na versão do rei Jaime I] estiverem em falta estão inclinadas a serem lugares miseráveis de ser viverem, como na Rússia sob o terror stalinista, ou Sicília sob a Máfia.”

O sistema de virtudes, desenvolvido ao longo de dois milênios no Ocidente, tem sido largamente abandonado desde o final do século XVI, começando com Maquiavel, e então Bacon, e então Hobbes, e então Bernard Mandeville, para finalmente ser posta em xeque por Kant e Bentham. Ele foi abandonado não porque se encontrava sob cuidadosa consideração para ser mal compreendido. Ele foi apenas deixado de lado de forma desleixada, seja por ser visto como antiquado, ou por ser irrealista em uma época com uma nova ideia sobre o Real, ou por estar associada a sistemas religiosos e políticos condenáveis pela época.

Francis Bacon, por exemplo, quem em sua idade avançada empregava o jovem Hobbes como secretário, muito falou sobre ética em seus Ensaios, com o qual Hobbes trabalhava. Mas ele falou com desprezo da tradição ética. Um editor vitoriano citou com aprovação uma apologia feita por um Decano da Igreja, quem escreveu dos Ensaios que “eles são como capítulos da Ética e Retórica de Aristóteles sobre virtudes e caráteres; somente Bacon toma as grandes linhas demarcatórias de Aristóteles como esboço, e procede com observações mais refinadas e sutis de uma experiência mais longa e ampla”. Ah, sim: eis a própria “experiência longa e ampla” de Bacon: em trair sob as ordens de Elizabeth seu amigo e benfeitor Lorde Essex; em corromper juízes enquanto oficial da Coroa; e, quando à distância se tornou Lorde Chanceler da Inglaterra, em extorquir propinas em troca de favores não entregues. Bacon foi o último homem da Inglaterra (escreveu Macaulay) a usar o potro (instrumento de tortura) para propósitos oficiais. E esse é o nosso manual de ética. Lembremo-nos de William Bennett.

O texto de Bacon de fato não ajuda ver Aristóteles, S. Tomás ou mais ninguém como seu guia ético. Ele nunca faz menção a eles e nunca fornece análises semelhante a eles. Ele não necessitava de estudos, mas do que percebia como testemunha ocular natural. Seu “refinamento” em ética é comportamental, à maneira de Maquiavel ou Hobbes, e não filosófico: assim é como se sucedeu na vida, “sucesso” medido por orgulhosos títulos, o bastão de Lorde Chanceler e a correspondente oportunidade de solicitar propinas.

Não sei o porquê desses homens duros do século XVII serem tão relutantes a aproveitar a tradição ética do Ocidente. Talvez eles apenas desejassem jogar fora tudo que a Idade Média levou do mundo clássico, um pouco como o desprezo científico pela tradição religiosa nos nossos próprios tempos.

Não é novidade observar que Maquiavel foi o pioneiro dessa nova ética. Ética em Aristóteles, S. Tomás ou Adam Smith se refere às pessoas como elas são e como elas agem, em contraste com um padrão superior de bem da polis, ou em confronto com Deus, ou com o sistema simples e óbvio de liberdade natural. Ética no Príncipe, em contraste, se refere à vontade do príncipe. Não há outro padrão. O padrão é, por assim dizer, estético – o do próprio príncipe enquanto artista do estado. O livro é um manual de pintura de um estado “bem-sucedido”, sucesso medido pela realização da vontade artística do príncipe. O que você deseja pintar, mestrezinho? Aqui, deixe-me mostrar as técnicas. Segure assim o pincel.

Isaiah Berlin vê Maquiavel como um divisor de águas no pensamento ocidental, ao descobrir de maneira súbita a importância de l`arte del stato ou arte estatal, que o sistema ético cristão ou qualquer outro sistema compreensivo é uma coisa, e a arte da prudência somente (Prudence-Only) é outra. Maquiavel é seguido séculos mais tarde por um movimento maior que faz o mesmo argumento, Romantismo, com sua transformação de tudo, incluindo política, em arte.

Qualquer seja a razão, um século e meio mais tarde, encontramos Hobbes fornecendo uma lista de virtudes em nada aprendida de Aristóteles, Cícero ou S. Tomás. Absolutamente nada. É uma colcha de retalhos de paixões boas e más não-sistematizadas. Anteriormente, no Leviatã, ele zombara da simples ideia de ética, muito ao estilo dos positivistas lógicos e de seus descendentes hoje em dia:

“Eis os nomes das virtudes e vícios: para um homem é chamada sabedoria o que para outro é chamada medo; e para um crueldade o que para outro é justiça; um prodigalidade o que para outro é magnanimidade; e um gravidade o que para outro é estupidez, etc. E portanto, tais nomes nunca devem ser bases seguras para qualquer raciocínio”

Hobbes e Maquiavel em nenhum lugar tomam as virtudes como um sistema de maneira séria. Desde cedo compartilhavam a estranha crença de que um filósofo político sério não tinha a necessidade de ser sério sobre a ética. A antiga Retórica é abandonada com desdém pelas mesmas pessoas na mesma época. Após o século XVII no Ocidente, um filósofo ético ou epistemológico sério não tinha a necessidade de ser sério sobre a persuasão. Eu suspeito uma conexão, e noto que as virtudes éticas e retóricas vem ressuscitando em círculos acadêmicos simultaneamente, desde os anos 60.

Os europeus no início dos tempos modernos, quando esta atitude a-teorética sobre as virtudes entrou em andamento, ainda não esqueceram literalmente a raiz platônica do Bem, ou dos ramos aristotélicos. Afinal, eles liam bem latim e às vezes grego, e cresciam sob a leitura de Cícero, aquele popularizador lúcido. Até o século XVII, de fato, e ao lado de livros italianos de Dante, Petrarca, Boccaccio, Ariosto, Tasso, com romances franceses, não havia um consenso na Europa na maneira em que a literatura não-grega ou não-latina deveria ser lida. Os leitores foram, de qualquer maneira, cristãos mergulhados nas virtudes pagãs e teologais, 4+3=7. Até o século XX, o prestígio das línguas clássicas mantinham vivos os livros que analisavam as virtudes pagãs, assim como até o século XX o prestígio do cristianismo mantinham os livros analisando as virtudes teologais vivos. Todo erudito vindo de Maquiavel a Bertrand Russell sabia das sete virtudes, e mantinha algum grau de familiaridade com o corpo de reflexões que suportava seus sistemas. Adam Smith, um escritor tardio na tradição, manteve de pé 5 deles – apesar de ser cortada a fé e esperança.

O que parece ter influenciado, um pouco, não foi a pura ignorância mas o abandono do sistema como um sistema, substituído por um novo hábito de inventar virtudes sob a luz de teorias e graças sociais. A autoridade do Filósofo e do Doutor Angélico foi desafiada. As Novas Ciências, certamente, encorajavam os europeus a re-teorizar o mundo filosófico e social, assim como Galileu, Descartes e Newton haviam re-teorizado o físico. Todo teorizador resoluto se tornou um Aristóteles ou S. Tomás de si próprio.

O que não prova ter sido uma boa ideia.

Deirdre McCloskey é Distinguished Professor  de Economia, História, Inglês e Comunicação da Universidade de Illinois em Chicago. É autora de mais de 16 livros, entre eles The Bourgeois Virtues: Ethics for an Age of Commerce e Bourgeois Dignity: Why Economics Can`t Explain the Modern World. Traduzido e adaptado do artigo  Virtues Losts: How it Happened and Why We Can`t Live Without Them. Texto no original: https://www.abc.net.au/religion/virtues-lost-how-it-happened-and-why-we-cant-live-without-them/10099472

Assine grátis o Newsletter da Revista Ágora Perene e receba notificações dos novos ensaios

Não fazemos spam! Leia nossa política de privacidade para mais informações.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *