Como as Mulheres começaram a Guerra Cultural (parte II)

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Trecho extraído do capítulo do livro “Verdade Absoluta – Libertando o Cristianismo de seu Cativeiro Cultural” da filósofa e teóloga Nancy Pearcey

O HOMEM APAIXONADO

Até os retratos de caráter masculino e feminino passaram por redefinição social. No antigo ideal de “masculinidade comunal”, a palavra-chave era dever, dever aos superiores e a Deus. A definição de virtude máscula era manter as “paixões” em submissão à razão (sendo que paixão tinha a definição principal de egoísmo e ambição pessoal). O homem bom era aquele que exercia autodomínio e abnegação em prol do bem comum. Mas o mundo emergente do capitalismo industrial promoveu nova definição de virtude. O mundo capitalista exigia que todo homem agisse como indivíduo em competição com outros indivíduos. Neste novo contexto, era apropriado, até necessário, agir sob o impulso do egoísmo e da ambição pessoal. Surgiram teorias econômicas — como o livro A Riqueza das Nações, de Adam Smith — que trataram o egoísmo como força natural universal, análoga à força da gravidade na física.

Ao mesmo tempo, a teoria política estava mudando da casa para o indivíduo como unidade básica da sociedade. A filosofia política republicana clássica, com sua visão orgânica de um bem comum dominante e unificador, deu lugar a uma visão atomística da sociedade como agregado de indivíduos rivais e egoístas. Surgiu uma nova visão do indivíduo como livre de laços sociais firmes e de ligações de gerações passadas, livre para encontrar seu lugar na sociedade por competição aberta.

Já falamos sobre essas tendências em relação ao movimento evangélico, mas elas também causaram enorme impacto na família. Os valores do período colonial acabaram sendo virados de cabeça para baixo: na ótica dos puritanos, as “paixões” eram ameaça à ordem social, exigindo controle e autodomínio para o bem público. Todavia, em fins do século XIX, as “paixões” e egoísmo masculinos passaram a ser vistos sob luz positiva — como fonte de igualdade e prosperidade econômica.

Foi nessa época que a palavra competitivo entrou no idioma inglês. Até então, o inglês não tinha uma palavra para descrever a pessoa que apreciava o desafio da competição. Mas em fins do século XIX, a competição se tornara obsessão entre os homens americanos. Era crença firme que a competição livre era a máquina da prosperidade e vida política.” “Por extraordinária inversão”, escreve Lesslie Newbigin, as pessoas encontraram “na cobiça uma lei da natureza e a máquina do progresso, pelos quais o propósito da natureza e do Deus da natureza seria implementado”.” E quando os homens saíram para batalhar no mundo cruel e competitivo do comércio e da política, o caráter masculino em si foi redefinido como endurecido, competitivo, agressivo e egoísta.

DOMESTICANDO HOMENS

Para as mulheres, a doutrina de esferas separadas significava uma história totalmente diferente. Elas foram chamadas para manter a casa como cenário isolado do etos competitivo e cruel da economia e da política, fc mulheres tinham de cultivar as virtudes mais amenas — de comunidade moralidade, religião, sacrifício de si mesma e afeto. Elas foram exortadas a agir como guardiãs morais do lar, tornando-o lugar onde os homens ganhassem forças, se refizessem, se disciplinassem e se purificassem — umn lugar de “retiro” do mundo competitivo e amoral lá fora. Como escreveu Francês Parkes em 1829: “O mundo corrompe; o lar deve purificar”.

A divisão público/particular também se mostrou em nítido contraste entre os sexos. Como escreve Kenneth Keniston, do Massachusetts Institute of Technohgy (MIT):”A família se tornou um lugar protegido e especial, o repositório de sentimentos brandos, puros e generosos (incorporados na mãe), e uma fortaleza e baluarte contra o mundo desumano, competitivo, agressivo e egoísta do comércio (incorporado pelo pai)”.”

Tratava-se de reversão surpreendente. Nos tempos coloniais, maridos e pais eram admoestados a agir como líderes morais e espirituais do lar. Mas agora se dizia que os homens eram naturalmente rústicos e brutos, e que precisaram aprender a virtude com suas respectivas mulheres. E muitos homens concordaram com o etos novo. Por exemplo, durante a guerra civil, o general William Pender escreveu à sua esposa: “Sempre que minha mente divaga em pensamentos ruins e pecaminosos, tento pensar em minha boa e pura esposa, e eles imediatamente me deixam. […] Você é mesmo o meu anjo bom”. As mulheres foram chamadas para ser as guardiãs da moralidade, a fim de tornar os homens virtuosos.

Esta é a origem do padrão duplo, e superficialmente dá a impressão de capacitar as mulheres. Afinal, isso lhes conferia o status de promotoras da virtude. Mas a dinâmica subjacente era laboriosa. Como explica Rotundo, os Estados Unidos estavam, em essência, libertando os homens da exigência de serem virtuosos. Pela primeira vez, a liderança moral e espiritual não era mais vista como atributo masculino. Agora se tornou trabalho das mulheres. “As mulheres tomaram o lugar dos homens como guardas da virtude comunal”, escreve Rotundo, mas, ao fazerem assim, “estavam livrando os homens de seguir o egoísmo”. Em outras palavras, os homens estavam sendo ajudados a sair de uma situação difícil.

Com o decorrer do tempo, esta “desmoralização” do caráter masculino não seria no melhor interesse das mulheres, como veremos. Nem era no melhor interesse dos homens, porque eles estavam se satisfazendo com uma definição raquítica de masculinidade como durões, competitivos e pragmáticos, que negava suas aspirações morais e espirituais.

FEMlNIZANDO A IGREJA

Onde estava a igreja cristã em tudo isso? Ela manteve pulso firme contra a “desmoralização” do caráter masculino? E triste dizer que não. A igreja americana consentiu em grande parte com a redefinição de masculinidade. Depois de séculos ensinando que maridos e pais eram divinamente chamados ao ofício da autoridade no lar, a igreja passou a fazer seu apelo mais a mulheres. Os ministros diziam que elas tinham um dom especial para a religião e a moralidade. Se olharmos com atenção as ilustrações de reuniões ao ar livre, veremos mulheres preenchendo as primeiras fileiras dos bancos, desmaiando e caindo em êxtase. Em muitas igrejas evangélicas, as mulheres excediam em número os homens, na proporção de duas para um.

Quando em 1832, a romancista britânica, Francis Trollope, visitou os Estados Unidos, comentou que nunca tinha visto um país “onde a religião causava uma impressão tão forte nas mulheres ou uma impressão mais leve nos homens”.

Até o tom de religião se tornou feminizado. Em um clássico sobre o assunto, The Feminization of American Culture (A Feminização da Cultura Americana), Ann Douglas escreve que o ministério perdeu “uma firmeza uma severidade, um rigor intelectual que desde então nossa sociedade foi acostumada a identificar com ‘masculinidade'”, e em seu lugar assumiu características “femininas” de cuidado, alimentação, sentimentalismo e se afastou do etos cruel e competitivo do cenário público. A tendência era em especial comum nas igrejas liberais. “A religião no antigo senso viril desapareceu, e foi substituída por uma sensibilidade unitarista fraca”, lamentou Henry James, pai do famoso romancista de mesmo nome. Um ministro congregacional reclamou que “a espada do espírito” foi “abafada e enfeitada com flores e fitas”.

A dinâmica subjacente é que a igreja estava adotando uma estratégia defensiva em face da cultura em geral. Muitos ministros deixaram de fazer declarações cognitivas em prol da religião para que pudesse ser defendida na esfera pública. Eles transferiram a fé para a esfera particular da experiência e sentimentos, ação que a colocou diretamente no domínio das mulheres. Em 1820, o ministro unitarista Joseph Buckminster escreveu:

Em minha opinião, se o cristianismo for obrigado a fugir das mansões dos poderosos, das academias dos filósofos, dos corredores dos legisladores ou da multidão de homens ocupados, nós o encontraremos no último e mais puro retiro com mulheres em frente de lareiras; seu último altar seria o coração feminino.

A palavra operativa aqui é “fugir”. Havia a presunção de que a religião estava fugindo do reino público de homens teimosos e se retirando para o reino particular das mulheres generosas.

Em suma, em vez de enfrentar a secularidade crescente entre os homens, a igreja em grande parte aquiesceu, voltando-se para as mulheres. Pelo visto, os ministros ficaram aliviados em encontrar pelo menos uma esfera, a casa, onde a religião ainda dominava. Levando em conta que o ensino tradicional da igreja sustentara que os pais eram responsáveis pela educação dos filhos, no início do século XIX, diz certo historiador, “os ministros da Nova Inglaterra reiteraram fervorosamente o consenso de que as mães eram mais importantes que os pais na formação das ‘inclinações, sentimentos e hábitos dos filhos’, e mais eficazes em ensiná-los”. Por conseguinte, “as mães assumiram cada vez mais a tarefa antigamente paterna de fazer as orações em família”.

Uma vez mais, descobrimos uma dinâmica perturbadora: as igrejas estavam libertando os homens da responsabilidade de ser líderes religiosos. Eles estavam colocando a religião e a moralidade no domínio da mulher __ algo macio e confortante, e não tônico e exigente. Charles Eliot Norton, de Harvard, expressou a idéia da maioria daquela época quando reclamou da flacidez intelectual — ele a chamou “efeminação”— da religião.

MORALIDADE E MISERICÓRDIA

Uma transformação similar estava ocorrendo no cenário da reforma social. Se as mulheres eram as guardiãs morais do lar, parecia lógico que também fossem as guardiãs da sociedade. Afinal de contas, concluíram muitas mulheres, era impossível selar hermeticamente a vida particular para impedir a entrada da vida pública.Vícios públicos como embriaguez e prostituição têm consequências no âmbito particular. Como disse a líder da União Feminina da Temperança Cristã, as mulheres têm de procurar “tornar o mundo inteiro um lar”.

Foram, então, as mulheres que em grande parte abasteceram os muitos movimentos reformistas da era progressiva do século XIX. Trabalhando em primeiro lugar pelas igrejas, as mulheres se puseram a reformar a esfera pública distribuindo benevolência cristã. Elas se uniram ou estabeleceram sociedades para alimentar e vestir os pobres. Apoiaram o movimento da Escola Dominical e as sociedades missionárias. Filiaram-se ou fundaram organizações para a abolição da escravatura, o banimento da prostituição e do aborto, a supressão da embriaguez e da jogatina pública. Mantiveram orfanatos e sociedades como a Associação Cristã Feminina (YWCA) para ajudar as mulheres solteiras nas cidades. Inauguraram movimentos para a abolição da mão-de-obra infantil, estabeleceram tribunais de menores e fortaleceram as leis sobre alimentos e remédios.

Esta rede interligada de sociedades reformistas foi cognominada o império benevolente, e na ocasião certo reformista de destaque creditou sua construção às mulheres: “Quase sem exceção”, disse ele,”foram os membros das organizaçõs das mulheres […] que garantiram todas as melhorias na legislação […] para a proteção do lar e das crianças”.

A era progressiva também marcou o começo do movimento feminista secular, que analisarei mais tarde. Mas a maioria destas primeiras expedicionárias não era feminista: elas não fundamentaram a reivindicação de trabalhar fora de casa no argumento feminista de que não há diferença importante entre homens e mulheres.Justamente o oposto: elas aceitaram a doutrina de que as mulheres são mais amorosas, sensíveis e piedosas e depois argumentaram que eram precisamente essas qualidades que as equipavam para o trabalho benevolente fora dos limites da casa. Como disse uma mulher daquela época,”por muito tempo” os assuntos governamentais e industriais “são dominados pelas qualidades rudes, hostis, gananciosas, pertinazes e amorais dos homens”, e agora eles “não devem mais ser privados da influência temperante da compaixão, espiritualidade e sensibilidade moral das mulheres”.

O local de muitas destas atividades reformistas foi a igreja, as quais foram apoiadas impulsivamente pelo clero, que declarou que a influência piedosa das mulheres era crucial para a sociedade. Mais uma vez Joseph Buckminster nos dá exemplo eloquente: Contamos com vocês, senhoras, para elevar o padrão do caráter de nosso sexo [i.e., dos homens]; contamos com vocês para vigiar e fortalecer essas barreiras que ainda existem na sociedade, contra a usurpação do descaramento e da licenciosidade.

Contamos com vocês para a continuação da pureza nos lares, o reavivamento da religião nos lares, o aumento de nossas instituições beneficentes e para o apoio do que resta da religião em nossos hábitos particulares e instituições públicas.

Mas observe a mesma dinâmica perigosa que notamos anteriormente: Quando as “senhoras” recebem a responsabilidade de “elevar o padrão do caráter” dos homens, então estes ficam livres para ser menos responsáveis. Eles são ajudados a sair da situação difícil. “O cuidado das populações dependentes” era “antigamente o dever cívico dos pais em cidades e dos professores pobres”, escreve certo historiador. Mas no século XIX, se tornou “conhecido como instituições beneficentes […] e esfera de ação das mulheres”.

Continua na parte III

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