A Escola iluminista escocesa e a Ciência da liberdade humana – Tiago Barreira

Tiago Barreira

O pensamento escocês, originado de uma nação de homens de kilt e gaitas de fole, talvez soe exótica para a tradição intelectual brasileira, tomada por influências ibéricas e francesas do positivismo e catolicismo. Contudo, não podemos deixar de notar que termos tão disseminados como “progresso”, “civilização”, “senso comum”, “evolução” e “divisão do trabalho” são conceitos originados e cunhados pelos pensadores iluministas das Universidades de Glasgow e Edimburgo do século XVIII, a Escola Escocesa. É o que mostra o livro How the Scots Invented the Modern World (Como os Escoceses Inventaram o Mundo moderno), do historiador americano Arthur Herman. O livro relata o importante papel da Escócia na formação da mentalidade liberal do mundo moderno, do Brasil está indiretamente inserido. 

Fundada pelo professor de filosofia moral da Universidade de Glasgow, Francis Hutcheson, e tendo como maiores expoentes Adam Smith, David Hume, Adam Ferguson, Shaftesbury, Lorde Kames e Thomas Reid, os traços da Escola Escocesa são marcantes na modernidade.

Muito influenciado por ideias de Aristoteles, Cícero, do empirismo inglês e pelo método científico newtoniano, a Escola iluminista escocesa seria uma das primeiras a buscar compreender fenômenos morais e sociais humanos como eles realmente são e ocorrem de fato. Fenômenos morais estes que seriam compreendidos à luz das ciências naturais e de forma separada do aspecto normativo religioso e de como deveriam ser. Esta noção abriria espaço para o desenvolvimento de ciências humanas modernas como economia, antropologia, sociologia e psicologia.

Os pensadores escoceses consideram que é possível, a partir da observação de condutas e ações humanas locais, estabelecer padrões universais de conduta moral generalizáveis e aplicáveis para a explicação de todo tipo de época e contexto local. Como exemplo, foi Adam Smith, um escocês, quem formaria as principais noções da economia moderna, do homo economicus e a propensão a barganha e troca. Noções estas que seriam usadas para a explicação de processos de enriquecimento e empobrecimento de civilizações. É justamente esta concepção originada nos escoceses que torna possível aos economistas explicarem, por exemplo, o porquê da inflação ter sido possível ocorrer tanto no Império Romano como na Alemanha de Weimar, ou do porquê de ter havido aumentos explosivos de preços durante a greve dos caminhoneiros do Brasil de 2018. 

Outro marco importante da Escola escocesa é ter introduzido o evolucionismo como parte do processo de formação histórica de civilizações. O evolucionismo se caracterizaria pela ideia de que civilizações humanas são marcadas por um contínuo processo de adaptação ao meio natural, sobre a qual se aperfeiçoam e progridem, economicamente e moralmente, ao longo da história. Trata-se de uma tese que Darwin tomaria emprestado para a biologia no século XIX para desenvolver sua teoria evolucionista  de seleção natural, e que seria contestada nas ciências humanas somente no século XX.

Esta tese seria esboçada inicialmente na Escola Escocesa por Lorde Kames. Um dos pais intelectuais de David Hume, Kames desenvolveria a teoria dos quatro estágios civilizacionais humanos, da qual este subdivide a história da humanidade segundo quatro graus de complexidade social. A primeira etapa histórica corresponde à fase mais simples e primitiva de organização, a caça e coleta. A segunda representaria a etapa agrícola. Sucessivas etapas implicam em maior grau de complexidade, até alcançar a quarta e última, do estágio da sociedade comercial. Neste sentido, à medida em que sociedades evoluem de estágios de complexidade social menos elevados para mais elevados, homens se emancipariam progressivamente das influências externas da natureza e do meio coletivo, ganhando um maior espaço para autonomia individual.  Os escoceses viam com bons olhos o progresso econômico e civilizacional não somente do ponto de vista econômico, em função de um melhor padrão de vida, como também do ponto de vista de justificação moral, por conduzir a uma vida de maior liberdade, virtude e autonomia individual.

Aperfeiçoamento, adaptabilidade e progresso. A Escola Escocesa pode ser considerada uma ciência da liberdade humana, assim como a liberdade é um valor onipresente na cultura escocesa. Fundado na tradição presbiteriana calvinista, o escocês é marcado pela valorização da livre iniciativa empreendedora e pelo forte senso prático. Além disso, os escoceses historicamente verificavam elevados níveis de conhecimento técnico e educacional, tendo sido um dos primeiros povos a apresentarem uma população plenamente alfabetizada e um sistema de educação universalizado.  Foram os escoceses os principais grupos imigrantes responsáveis pelo desenvolvimento dos Estados Unidos, Canadá e Austrália, constituindo importantes investidores em linhas de ferrovia, telégrafo e barco a vapor. Grande parte dos homens de negócios, inventores e cientistas eram escoceses, dentre eles James Watt, Alexander Graham Bell e Andrew Carnegie. Dentre todos os grupos culturais, apenas os judeus verificariam performance semelhante.

A obra de Herman guarda vários insights interessantíssimos sobre as origens da modernidade. A Escócia, através da sua escola de pensamento desenvolvida no século XVIII, forneceria um sistema de justificação ética da mentalidade comercial burguesa, por meio da disseminação dos valores otimistas de progresso que celebra a sociedade comercial como o cume civilizacional. Também considera que esta sociedade segue em contínuo processo de desenvolvimento adaptativo institucional, liderados de forma espontânea por indivíduos autônomos e livres. Uma visão de progresso que, embora compartilhe o otimismo do nosso positivismo militarista brasileiro, diferencia-se deste ao colocar o indivíduo, e não o estado autoritário instrumental, como o motor de promoção deste progresso, seja a nível econômico, moral ou civilizacional. A história brasileira talvez seja outra completamente distinta se nossos militares tivessem lido Hume e Smith, ao invés de Comte.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.

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