Como o comércio promove a liberdade: o caso holandês do século XVII – Tiago Barreira

Em Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, Goethe relata a história de Wilhelm Meister , um jovem idealista alemão do século XVIII que se revolta contra a sua condição familiar burguesa e decide embarcar junto com uma trupe de artistas pelo mundo para se dedicar ao teatro. Uma das passagens memoráveis do romance está na justificativa de Wilhelm a um parente para se rejeitar a carreira profissional de comerciante em nome da carreira de artista: de que adianta ter as finanças em ordem, se eu terei a alma em desordem? Diversos dilemas e angústias morais são enfrentados por Wilhelm Meister ao longo do romance. Dilemas estes que são produtos do confronto, como artista de teatro, de suas aspirações estéticas e humanistas com as necessidades lógicas de mercado do nascente mundo industrial do final do século XVIII.

É sobre essa dicotomia de valores expressa na obra de Goethe, típica do romantismo alemão, entre a autenticidade criativa do artista e as necessidades econômicas do mercado (entre o reino da liberdade e o reino da necessidade), que o filósofo marxista húngaro Georg Lukacs se basearia para promover, no início do século XX, uma das críticas mais violentas já realizadas contra a economia capitalista.

Segundo Lukacs, um dos fundadores da Escola de Frankfurt, o capitalismo é um sistema arbitrário que “reifica” e escraviza impulsos criativos pessoais às necessidades externas do mercado. Um mercado impessoal, voltado para a maximização do lucro, que terminaria por produzir trabalhadores retalhados espiritualmente e “coisificados” conforme suas habilidades e qualificações. Para Lukacs, é esta mentalidade de lucro e cálculo econômico o responsável pela desumanização e decadência cultural do mundo ocidental, devendo ser aniquilado e superado para o florescimento das aspirações humanas mais sinceras e elevadas.

A Escola de Frankfurt tornou-se desde então uma das principais fontes de ataque ao capitalismo por parte dos intelectuais da nova esquerda anti-soviética da segunda metade do século XX. A Escola de Frankfurt encontraria receptividade pelos protestos de maio de 68. Os ecos de Wilhelm Meister repercutiriam na aversão à ética tradicional do trabalho pela juventude hippie e pelos festivais de Woodstock. O anticapitalismo que repercute na esquerda contemporânea, mais do que uma mera crítica a distribuição econômica desigual de bens, representa uma revolta espiritual profunda à conformação do homem à vida moderna e ao cálculo econômico.

Porém, ao contrário do que a Escola de Frankfurt afirma, pode-se demonstrar que esta mesma mentalidade comercial, ao invés de promover a destruição das liberdades humanas, é um dos principais motores do florescimento de sociedades livres ao longo da história. Esta relação entre comércio e liberdade na história das sociedades é colocada de forma esclarecedora pelo historiador Henry Méchoulan em sua obra Dinheiro e Liberdade. O livro, em contraponto às acusações que o dinheiro é inimigo da liberdade, visa mostrar como o comércio permitiu que a liberdade se instalasse na república holandesa do século XVII. Liberdade esta que, inicialmente manifestada nas guerras de independência promovidas pela classe comerciante calvinista holandesa contra a nobreza católica espanhola, resultaria nas proteções conferidas pela Holanda às liberdades de consciência, de circulação, de empresa, de imprensa, de tolerância étnica e religiosa.

É o interesse pelo lucro e comércio, movidos pela ativa classe comerciante holandesa, que promoveria a moderação de paixões e o respeito pelo outro. De uma sociedade dominada pela monarquia espanhola, composta inicialmente de nobres guerreiros e clérigos ortodoxos, a Holanda se converteria em uma sociedade de negociantes pragmáticos. Graças aos laços entre dinheiro e liberdade, foi possível a erradicação do sectarismo religioso, representada de um lado pela Inquisição católica espanhola e de outro pelos clérigos calvinistas ortodoxos que zelavam pela moralidade local. Em contraste, sociedades como a espanhola, de alto desprezo ao comércio, eram aquelas que mais promoviam um clima de hostilidade a liberdades pessoais e religiosas. Os espanhóis, ao contrário do pragmatismo holandês, valorizavam um código de honra ascético e de desapego a bens materiais. Código de honra este que muitas vezes resultaria em imprudentes decisões econômicas que resultariam em seu declínio, como a expulsão de judeus e irresponsabilidade fiscal resultante de guerras expansionistas.

O grande legado dos holandeses ao mundo atual foi provar que comércio e liberdade não são incompatíveis, mas reforçam-se mutuamente. A tão criticada “reificação” do capitalismo que escravizaria vontades, gostos e sentimentos pessoais à lógica do ganho, como apresentada pelos marxistas de Frankfurt, é na verdade um outro nome para as virtudes burguesas de prudência e adaptabilidade, que geram tolerância social e prosperidade. Ou vivemos em uma sociedade de gostos e paixões moderadas e “reificadas” pelos negócios, ou regressaremos à guerras pré-capitalistas de todos contra todos. E neste mundo utópico, todos terão a oportunidade plena de imporem seus sonhos e ideais. Até mesmo os sonhos e ideais dos tiranos e déspotas.

Tiago Barreira

 

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