
Artigo publicado originalmente no Boletim da Liberdade, no dia 24 de Maio de 2019.
Era eleição presidencial de 2006. Lula era visto como uma unanimidade, tanto entre os mais pobres com o Bolsa Família como entre os empresários, diante de uma economia em aceleração com as exportações de soja e carne à China. Mesmo diante de fortes denúncias de corrupção na época, o discurso político, retórico e moral estava sob controle da esquerda, que pautou todo o debate eleitoral, condenando as privatizações, o desmonte tucano do estado e o egoísmo dos ricos. A oposição quase foi liquidada. O PFL, acuado e envergonhado, buscava renegar seu passado liberal, mudando de nome para se assemelhar ao Partido Democrata americano. A esquerda parecia dominar todo o cenário cultural do Brasil e caminhava a passos largos para o domínio hegemônico do país, detendo influência nos meios de comunicação, academia, igrejas e sindicatos.
Esse era o Brasil de meados dos anos 2000. Uma época em que liberalismo e conservadorismo eram xingamentos indefensáveis e sinônimos certos de perda de reputação. Era esse o contexto em que o país vivia quando um jornalista conservador foi demitido de importantes veículos de mídia por expor um vasto esquema de poder continental que aliava movimentos sociais, guerrilhas e partidos marxistas. Este jornalista partiria para o autoexílio aos Estados Unidos, ostracizado por uma grande mídia financeiramente cooptada pelos donos do poder político e tendo sua família como alvo de constantes ameaças.
Diante de tal cenário hostil, este jornalista, que atuara durante décadas no front cultural como polemista e escritor de livros, teve então a ideia de articular um programa semanal de rádio para contrapor ao monopólio de pensamento marxista brasileiro. Este programa ganharia rapidamente visibilidade entre os brasileiros, com a sua linguagem obscena e satírica, inspirada no radialista paranaense Alborguetti.
Unindo a boa e velha linguagem escrachada do povo com filosofia, arte, política, literatura e história, o programa se revelou um verdadeiro turning point no cenário cultural nacional. Inovando em estilo e comunicação, o programa desconstruiu e profanou mitos e ídolos consagrados pelo establishment inquisidor da esquerda gramsciana, denunciando de forma demolidora seu double-standard e farisaísmo politicamente correto. Também inovou em realizar o feito inédito e único de trazer alta cultura em linguagem acessível e simples ao público comum, bem como introduzir e divulgar obras de autores inéditos no cenário cultural. Autores inéditos estes, tais como Roger Scruton, Mihai Pacepa, Andrew Lobaczewski, Eric Voegelin e Russell Kirk, que seriam posteriormente traduzidos e publicados em inúmeras edições. Este seu programa é o True Outspeak, organizado por ninguém menos que Olavo de Carvalho.
Em menos de 10 anos, o programa surtiria efeitos avassaladores sobre o clima de ideias e debates. Termos como marxismo cultural, gramscismo, socialismo fabiano, globalismo e estratégia das tesouras se tornariam correntes e cairiam na boca do povo. O conservadorismo brasileiro renascia das cinzas, com um repertório simbólico e retórico próprio, não mais envergonhado e pautado moralmente por adversários. Não era mais a política administrativa do PT que era questionada, mas toda a autoridade moral inquisidora do poder onipresente e invisível da classe falante, intelectual e artística nacional. O jogo finalmente virava. As manifestações populares de 2015 e 2016, sob os gritos de “Privatiza tudo” e “Basta de Paulo Freire”, levaram ao fim do predomínio petista no poder. Em 2018, seria eleito o primeiro presidente conservador brasileiro em décadas.
A história brasileira contemporânea ainda se encontra em processo de construção, seja por seus vencedores, seja por seus perdedores. Nesta narrativa, marcada por polarizações e pela construção de virtuais heróis e bodes expiatórios, uma verdade deve permanecer constante entre as diversas narrativas de espectros políticos antagônicos, que é o grande papel exercido pelo True Outspeak no renascimento da direita brasileira.
Que tipo de país o Brasil seria hoje, em 2019, sem os palavrões obscenos do Olavo? Provavelmente um país ainda adormecido e seduzido pela música encantadora de seus acadêmicos e artistas, tal como nas eleições de 2006. Um feitiço hipnótico tal qual o de Circe, que com um único ato de varinha de condão mantinha homens presos como porcos cativos. Era preciso que essa música e poesia hipnotizante e animalizante fosse quebrada e profanada pelo desrespeito à autoridade, para que o verdadeiro respeito ao senso humano de realidade se restabelecesse.
Olavo de Carvalho, que, nas palavras de Caetano Veloso, ensinou os brasileiros a serem “cafajestes”, nada mais fez do que aquilo recomendado há séculos pelos ensinamentos cristãos de Santo Agostinho. Agostinho ensinava que o indivíduo deve não reprimir e sufocar seus impulsos baixos e vícios, mas sim tomá-los como ponto de partida para sua vida espiritual, reaproveitando-a e canalizando-a para fins virtuosos. Desse modo, assim como ostras realizam um lento trabalho de converter suas impurezas interiores de grãos de areia em pérolas, assim também os homens devem proceder em converter suas piores impurezas morais em jóias de virtude. Desde que empregada de forma bem refletida e virtuosa, é desse modo que a torpeza cega dos xingamentos pode se converter em atos de caridade ao próximo, trazendo a este não escuridão, mas luz e a visão do que é sensato e do que é insensato. E é desse modo que da imundície do palavrão se consegue fazer com que pessoas se banhem de verdades há muito tempo esquecidas.
Mais do que cafajestagem, Olavo ensinou de forma didática e acessível a milhões de brasileiros comuns, através do verniz externo da linguagem impura, verdades essenciais. Aí está um dos grandes paradoxos da verdade, que se manifesta com todo o esplendor aos cegos humildes, da maneira mais inconvencional e inesperada possível, e se esconde dos soberbos eruditos que veem. Como dizia o evangelho de João, após a cura de um cego, Cristo justifica seu milagre realizado aos fariseus incrédulos: “Eu vim a este mundo para juízo, a fim de que os que não veem vejam, e os que veem sejam cegos.”
Tiago Barreira
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