Os paralelos entre a teoria do desejo de René Girard e o pensamento hegeliano – Tiago Barreira

Tiago Barreira

Introdução

O desejo humano já foi alvo de reflexões de diversos autores na história do pensamento, sendo hoje um tema de estudo em diversos campos do conhecimento, seja através da filosofia, seja pela teoria literária, antropologia, economia ou sociologia. Qual a natureza do desejo humano? Duas teses importantes buscaram se levantar sobre esse tema. A primeira, desenvolvida pelo filósofo alemão Hegel, estabeleceu uma compreensão dialética do desejo humano, fundamentado no desejo por reconhecimento. A partir deste desejo por reconhecimento, Hegel formalizou um sistema de pensamento que compreende todo o desenvolvimento da consciência humana e o seu desdobramento na história social, denominado de dialética do senhor-escravo.

A segunda tese, elaborada pelo antropólogo francês René Girard em meados do século XX, expõe uma teoria do desejo humano que muito se aproxima da concepção hegeliana, denominada de desejo mimético. As investigações de Girard abrangem os campos da antropologia, crítica literária e psicologia. A obra de René Girard, a Violência e o Sagrado, expõe os principais aspectos de sua teoria do desejo mimético.

Embora o pensamento de Girard não empregue o instrumental metodológico dialético de Hegel, este apresenta conclusões muito similares à Hegel na explicação do fenômeno do desejo humano, e de sua dinâmica e impacto sobre a sociedade e a história. Grande parte das semelhanças encontradas podem ser atribuídas à forte influência do pensamento de do comentarista hegeliano Alexander Kojève sobre René Girard, sobre o qual concepção girardiana do desejo mimético é em grande parte tributária.

Este ensaio buscará realizar um estudo comparativo, traçando os principais paralelos entre a concepção do desejo segundo a dialética do senhor-escravo em Hegel e a concepção do desejo segundo a teoria do desejo mimético do antropólogo francês René Girard.

A concepção do desejo segundo Hegel

Hegel busca explicar, em termos lógico-dialéticos e conceituais, toda a realidade da dinâmica do desejo e cobiça humana e do seu processo de afirmação e de realização no mundo. Para Hegel, o Eu consciente individual, tal como concebido originalmente por Descartes, é somente um conceito vazio e abstrato se não compreendida em sua relação dialética com objetos do mundo exterior. Este Eu vazio e abstrato torna-se concreto e preenchido de conteúdo à medida em que busca incorporar o mundo objetivo exterior (o não-Eu) para si.

Contudo, este processo de apropriação do mundo pelo sujeito (o não-Eu pelo Eu) tende a ser expansivo e destrutivo. Analogamente ao processo digestivo, o Eu só pode crescer destruindo e absorvendo tudo o que está a sua volta. O desejo humano, nesse sentido dialético hegeliano, pode ser explicado como uma expressão desta vontade aniquiladora e expansiva do Eu.

Assim, o Eu consciente do homem, para Hegel, implica em desejo. E é o desejo pelo desejo do outro o que diferencia o desejo humano pelo desejo dos demais animais, uma vez que é somente pelo reconhecimento do Outro que o homem toma consciência de si enquanto homem, identificado como um sujeito agente, autônomo e histórico.

O homem se confirma como humano na luta de morte por reconhecimento, ao arriscar a vida para satisfazer seu desejo humano, isto é, seu desejo que busca outro desejo. Hegel identifica contradições nesse processo humano de luta de morte por reconhecimento. A derrota de um dos oponentes pela morte implica o fracasso na busca por reconhecimento, uma vez que o oponente morto não pode mais reconhecer e desejar o vitorioso. É preciso, que ambos os adversários continuem vivos após a luta, de modo que um abandone o seu desejo para satisfazer o desejo do outro, de reconhecê-lo sem ser reconhecido por ele, ou seja, de reconhecê-lo como senhor e ser reconhecido como escravo.

Toda realidade social humana implica, deste modo, a condição fundamental de violência, sujeição e dominação, uma vez que é somente pela luta entre o senhor e o escravo que o ser humano desenvolve sua consciência de si, seus valores e dignidade. Segundo Hegel, portanto, as relações de violência, dominação e subordinação constituem o motor do processo histórico social humano.

Ainda em Hegel, o escravo é responsável pela realização dos desejos e ambições do senhor, estabelecendo uma relação de dependência com este sob medo de ser aniquilado. Paradoxalmente, o senhor também cria gradualmente uma relação de dependência com o escravo. Enquanto o senhor vive uma vida ociosa e alheia à natureza, o escravo provê, através do trabalho forçado, o senhor de bens e alimentos. O escravo aos poucos reconhece o seu valor e dignidade através das marcas deixadas pelo seu trabalho no mundo natural, tomando gradualmente consciência de si e de sua condição, se revoltando contra o senhor. A dialética do senhor e o escravo em Hegel, portanto, define a vitória do escravo e a derrota do senhor como uma necessidade lógica de toda relação social de dominação.

Podemos delinear, em resumo, dois elementos importantes pressupostos na dialética do senhor-escravo hegeliana: 1) o desejo por reconhecimento enquanto traço definidor da consciência humana; 2) A história humana é a história dos desejos humanos, sendo que o desejo por reconhecimento é o motor do desenvolvimento histórico-social humano, marcado pela luta violenta de dominação e sujeição entre os homens.

A concepção do desejo segundo René Girard

René Girard expõe uma teoria do desejo humano que muito se aproxima da concepção hegeliana. Segundo Girard, o desejo mimético é o traço constitutivo do Eu humano, ao considerar que a constituição do Eu requer a existência de um Outro a ser imitado, denominado de Mediador. Este Mediador abre o acesso do Eu a objetos de desejo, que somente são desejáveis por serem desejados pelo Mediador. Este objeto desejado estaria para o Mediador “assim como a relíquia está para o santo”.

Girard exemplifica casos de desejo mimético em personagens na literatura ocidental. Dom Quixote, emulando o cavaleiro herói Amadis de Gaula, passa a ver o mundo segundo a ótica heróica dos romances cavalheirescos. É através da identificação com o herói medieval que Dom Quixote passa a desejar objetos e utensílios como bacias de barbeiro, transformando-os em elmos e objetos mágicos. A personalidade de Quixote torna-se intrinsicamente associada ao seu Mediador ideal, através da posse destes objetos.

Embora o desejo girardiano seja caracterizado pela imitação, este processo de assimilação do Outro através da mimesis de nenhuma forma pode ser considerado pacífico. Para Girard, o desejo mimético opera como um dos principais mecanismos impulsionadores da violência e conflito em uma sociedade. Quando dois indivíduos possuem o mesmo modelo imitador de Mediação, estes tendem a desejar um mesmo objeto, tornando-se rivais e obstáculos uns aos outros no acesso a esse objeto. Nasce daí o confronto inevitável e a luta entre iguais pelo objeto desejado, em um processo que Girard denomina de mimesis conflitual. O processo de rivalidade da mimesis conflitual faz com que os oponentes, à medida em que se atacam, percam de vista o objeto disputado, concentrando-se somente em afirmar superioridade sobre o outro.

A mímesis conflitual cria a “ilusão de diferença” entre dois rivais, que buscam se afirmar diferentes quando se igualam tendo o mesmo desejo de imitação. A violência apaga as distinções que perduram entre eles, e os antagonistas se tornam espelhos um do outro. Uma pessoa imparcial, observando a luta de fora, pode concluir que eles estão se tornando cada vez mais idênticos. Mas o mesmo não pode ser dito do ponto de vista dos próprios rivais.

Se a imitação dos outros conduz inevitavelmente à rivalidade e conflito, se todos os homens agem mimeticamente, a humanidade como um todo parece fadada a um círculo apocalíptico de competição e violência. Girard considera, então, que a violência deve encontrar uma válvula de escape, buscando uma vítima inocente substituta, o bode expiatório. Se o bode expiatório se tornar o foco de todas as hostilidades do grupo mais amplo, este desviará ou canalizará as dissensões internas para fora do grupo. Tendo isso ocorrido, a harmonia social se reestabelece e o desenvolvimento da cultura se torna possível.

O bode expiatório desempenha, portanto, o papel de vítima substituta para todos os membros da comunidade. Daí que surge, segundo Girard, a necessidade de construção de mecanismos religiosos e sociais que busquem administrar a violência e tensão social, através de ritos sacrificiais. Inspirada mimeticamente, a violência sacrificial que a multidão direciona ao bode expiatório exerce uma função restauradora da ordem e paz social em uma comunidade.

O mecanismo do bode expiatório se encontra de forma marcante em ritos religiosos, no imaginário mitológico e literário, sendo uma das forças fundadoras da cultura humana e recorrente entre todas as civilizações. Girard cita o cristianismo como exemplo de religião fundada na ideia de Bode Expiatório, com a vítima sacrificial representada pela figura de Jesus Cristo, e a sua morte como uma forma de reconciliação entre o homem transgressor e Deus. Quando esse espaço do sagrado falha em administrar corretamente os desejos miméticos e conflitos sociais, como durante períodos de crises espirituais e sociais, há riscos do bode expiatório ser extravasado para perseguição a minorias e grupos étnicos-religiosos divergentes e desencadear uma onda de violência desenfreada, pondo toda uma civilização sob risco de colapso.

Em resumo, a concepção de Girard sobre o desejo humano afirma que: 1) o desejo mimético é o traço constitutivo do comportamento humano; 2) A violência na história e a construção do espaço do sagrado como forma de canalizar as tensões sociais ocasionadas pelo desejo mimético.

Paralelos e Divergências entre os dois autores

Podemos encontrar alguns paralelos e similaridades entre as teses de René Girard e de Hegel. O principal ponto em comum entre o desejo mimético e o desejo de reconhecimento hegeliano, está no fato de ambos definirem a consciência humana como desejante do Outro, à medida em que esta não é uma substância autônoma e independente do restante do mundo. A necessidade de apropriação do mundo surge como uma consequência lógica deste vazio conceitual e da necessidade da consciência se expandir.

Um segundo ponto comum entre os dois autores está no fato de que tanto o desejo mimético quanto o desejo por reconhecimento estão fundados não no desejo por coisas, mas no desejo que outros têm por estas coisas. O desejo por objetos em Girard é somente um instrumento para absorver o ser do Outro. Do mesmo modo, em Hegel, o desejo de ser desejado é uma forma de apropriar-se do Outro para si, uma vez que ser desejado implica querer que o Outro se torne igual ao Eu desejante.

Kojève, em seus comentários à Fenomenologia do Espírito, observa que, em Hegel, o alvo de interesse do desejo humano, diferentemente do desejo animal e biológico, não está em coisas, mas no desejo de outro ser humano. Segundo Kojève, “um objeto perfeitamente inútil do ponto de vista biológico (como uma condecoração ou bandeira do inimigo) pode ser desejado porque é objeto de outros desejos”. Esta noção em muito se aproxima do conceito de desejo mimético em Girard.

Por fim, ambos os autores ressaltam a natureza violenta do desejo e o seu caráter indutor do desenvolvimento histórico-cultural humano. Em Girard, as disputas e rivalidades nascem do desejo de semelhantes por um objeto, e uma sociedade e cultura é construída a partir do desenvolvimento de instituições que canalizam desejos em mecanismos de ritos religiosos e sociais. Em Hegel, o desejo por reconhecimento é inelutavelmente violento, enquanto fonte das relações de dominação e submissão, através da dialética do senhor-escravo. Contudo, são essas mesmas relações de dominação que criam condições para o desenvolvimento de uma consciência histórica humana, desencadeadora de revoluções e da construção de instituições políticas garantidoras de direitos e liberdades civis.

Alguns autores discordam dessa aproximação no pensamento de ambos os autores. Um dos principais motivos se encontra no fato do próprio Girard ser crítico ao pensamento de Hegel e à sua abordagem dialética, considerada excessivamente formal e conceitual, buscando se distanciar tanto de Hegel quanto Kojève ao longo de sua vida intelectual. Girard também tende a ser crítico à concepção teleológica otimista de Hegel sobre a história, como um processo que culmina na superação dos conflitos senhor-escravo e o fim da luta violenta por reconhecimento. Girard tende, em contraste, a ver o conflito e a violência como onipresente e intrínseco à natureza do homem. Embora seja possível, através do culto religioso, pôr um fim ao mecanismo da violência e abrir caminho para uma sociedade pacificada, o tom de Girard sobre a história humana é em geral pessimista.  Os ritos sacrificiais religiosos possuem um efeito atenuante sobre a violência, mas são incapazes de eliminá-los por completo, como pode ser verificado nos casos históricos de perseguição a grupos minoritários. Enquanto houver dois desejos humanos iguais por um mesmo objeto, haverá rivalidade e violência, constituindo um ao outro um “escândalo irreconciliável”.

Contudo, embora de fato haja esse distanciamento metodológico e teleológico entre Hegel e Girard, não se pode negar em Girard a forte influência obtida de Hegel através de Kojève. George Erving ressalta a importância de Kojève em formular as concepções girardianas do mimetismo e de sua ênfase no desejo por objetos através da mediação pelo desejo de outro. O mesmo autor também ressalta que Kojève apresenta uma leitura mais antropológica e menos conceitual e formal da consciência humana do que Hegel, inspirada nas concepções heideggerianas do homem. E foi essa visão antropologizada e heideggeriana da dialética do senhor-escravo em Kojève que teria exercido nítidos impactos sobre a visão antropológica girardiana do desejo.

Podemos concluir, portanto, que o desejo mimético girardiano e o desejo por reconhecimento hegeliano-kojèveano representam perspectivas distintas da temática do desejo humano, que compartilham uma essência comum: a ideia de uma consciência vazia que necessita se expandir relacionando-se com o mundo. Ambos compartilham a mesma visão de que o homem sozinho não consegue realizar-se como humano isolando-se do mundo, pondo em xeque as noções de autonomia e autodeterminação individual cartesiana do sujeito. O homem é, afinal, um ser de natureza social, e suas aspirações e desejos dependem daquilo que o mundo exterior lhe impõe.

Referências Bibliográficas:

ERVING, George. René Girard and the Legacy of Alexandre Kojeve. Journal of Violence, Mimesis and Culture Vol 10, 2003, pp. 111-125.

GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Editora Unesp, 1990.

GOLSAN, Richard J. Mito e Teoria Mimética – Uma introdução ao pensamento girardiano. São Paulo: É Realizações, 2014.

KOJÈVE, Alexander. Introdução à Leitura de Hegel. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2002.

WILMES, Andreas. Portrait of René Girard as a Post-Hegelian: Masters, Slaves, and Monstrous Doubles. The Philosophical Journal of Conflict and Violence Vol. I, Issue 1, 2017.

 

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