Tiago Barreira
Há alguns anos, realizei um conjunto de discussões e debates com colegas sobre o tema do romantismo e os seus seus impactos sobre a cultura moderna. Tomando como ponto de partida a análise de Isaiah Berlin sobre o fenômeno do romantismo no ocidente, como exposto em As Raízes do Romantismo, bem o fenômeno do esteticismo abordado por Mário Vieira de Mello, busquei estabelecer alguns nexos entre a mentalidade romântica e a política e a sociedade contemporânea, em especial no Brasil.
Hoje, relendo de forma mais crítica estas investigações que venho realizando desde 2015, noto que deixei o conceito de romantismo como amplo e vago demais para relacioná-lo a todo um conjunto de transformações culturais e sociais. Pois um conceito muito vago que tem a pretensão de explicar tudo acaba não explicando nada. Resta justamente agora delimitar esse campo conceitual e definir o que seria esse “romantismo”.
De fato, o conceito de romantismo a que me refiro é muito distinto da noção usualmente conhecida de romantismo, como um movimento estético-literário situado no século XIX. Tampouco se trata de um conjunto doutrinal de ideias definidas e prontas, tal como se esperaria de um sistema filosófico, ético-moral ou político, ao qual pessoas aderem por convicção e subordinam conscientemente sua vida a esses princípios.
O romantismo a que me refiro está menos para um sistema doutrinal e mais para um estado e disposição mental, psicológico e subjetivo de espírito. Um estado de disposição mental caracterizado por um deslocamento do centro epistêmico e ontológico da realidade para o Eu. Um Eu que pode ser entendido seja em sua forma individual, seja em sua forma coletiva (nação, raça, classe, gênero).
Proponho adotar o mesmo método fenomenológico que Voegelin utilizou para definir o conceito de gnosticismo. Voegelin captou esta unidade conceitual de gnosticismo por trás dos estados de consciência de múltiplos autores patrísticos, medievais e modernos, com ideias e doutrinas muitas vezes divergentes e antagônicas entre si. Voegelin é por isso muitas vezes mal compreendido por se acreditar que este vê gnose em “tudo que é lugar”. Mas esta incompreensão é esclarecida quando se entende que todos os estudos voegelinianos são consequências da sua filosofia da consciência. Compreender manifestações e ideias culturais, sociais e econômicas tomando-se como ponto de partida os estados de consciência vivenciados pelos autores destas mesmas ideias é a base de qualquer estudo seguro e objetivo das ciências sociais e políticas. Pois estudar ideias puras e abstratas, sem estudar as consciências dos autores que a pensam, é recair em paralaxe cognitiva.
Portanto, se existe em Voegelin o fenômeno mental do gnosticismo, também pode existir o conceito de romantismo enquanto estado de consciência. Ambos são aspectos distintos de um mesmo problema, que é o advento das ideias da modernidade. Do mesmo modo, é possível que os dois elementos se interseccionem. É possível haver um autor simultaneamente romântico e gnóstico (anarquismo de Nietzsche), como também é possível ser também gnóstico antirromântico (A filosofia da imanência em Henri Bergson/Deleuze), ou romântico antignóstico (conservadorismo estético de Roger Scruton).
O movimento estético pode ser considerado um dos primeiros campos sobre o qual a consciência romântica emergiu, mais precisamente na Alemanha dos séculos XVII e XVIII com o Strum und Drang (Goethe, Schiller, Herder e Hoelderlin),se estendendo posteriormente aos demais campos filosófico, político e social. O pensamento kantiano é um dos canais pelos quais o romantismo se propagaria no meio político, tal como descrito por Isaiah Berlin em Raízes do Romantismo. A exaltação da noção romântica de gênio, inexistente em épocas anteriores, torna-se também um paradigma importante na cultura moderna, sobre as quais se desdobra a noções de busca de autenticidade e originalidade no meio artístico, intelectual e econômico. Encontramos a ideia de autenticidade nas filosofias de Nietzsche, Foucault e Sartre, o cume do pensamento romântico subjetivista na pós-modernidade.
Contudo, ainda na pós-modernidade, e contrapondo-se à corrente existencialista que privilegia a subjetividade, uma outra corrente surge negando-a. Trata-se da nova filosofia da linguagem desenvolvida pelos estruturalistas e pós-estruturalistas na França. Os estruturalistas franceses rejeitam fortemente o papel da autoria dos textos, privilegiando a estrutura linguística como fundadora e mediadora epistêmica e ontológica entre sujeito e a realidade. Em outras palavras, a linguagem não é mais um produto, uma obra criada por uma mente criadora, mas a própria fonte produtora de formas de se pensar, de sujeitos e objetos, ao delimitar o campo do dizível e do não-dizível. Nada do que esteja fora do campo do dizível pode ser conhecido, e portanto não existe.
A filosofia da linguagem entranhou-se de tal maneira na contemporaneidade que tem levado à uma reversão do paradigma romântico de centralidade do sujeito, ao menos na literatura. Segundo Foucault, a filosofia da linguagem do século XX levou à morte do conceito consagrado de homem moderno. Os estruturalistas e desconstrucionistas do século XX mataram o Sujeito, assim como os românticos do século XVIII mataram Deus. A consciência romântica no mundo contemporâneo, nesse sentido, em meio ao seu momento de maior triunfo no campo político, cultural e social, começa a dar os primeiros sinais de ocaso justamente no campo de onde se originou, na literatura e estética.
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