O sonho de Descartes e o mecanicismo das ciências modernas – Tiago Barreira

Fonte: Braccelli Giovanni Battista (all-art.org)

Tiago Barreira

O pensamento de Descartes representa um dos mais influentes em toda a filosofia ocidental moderna, vindo a contribuir fortemente para a formação do método das ciências modernas e ao advento do racionalismo científico, entre os séculos XVII e XVIII.  Sob que aspecto a filosofia de Descartes influenciou a ciência moderna e contemporânea? Proponho neste artigo esboçar algumas reflexões sobre um dos principais conceitos elaborados por Descartes, em especial a noção mecanicista de Mathesis Universalis, conforme exposto por Wolfgang Smith em Cosmos e Transcendência. Proponho também neste artigo realizar uma ponte entre esta visão mecanicista da Mathesis Universalis e o advento da ciência econômica moderna. O tema é de grande relevância para a história do pensamento econômico, vindo a exercer importantes consequências políticas, sociais, econômicas e culturais para o mundo ocidental.

Um dos principais canais de influência da filosofia de Descartes sobre o racionalismo científico moderno se encontra no conceito cartesiano de Mathesis Universalis. A Mathesis Universalis, exposto por Descartes a partir da visão de um sonho, consistiria precisamente na busca de um ideal de fundamentação e organização do conhecimento segundo uma álgebra universal quantitativa, que garantiria a formação de um sistema geral unificado de ciências baseado em ideias claras, evidentes e distintas.

Descartes, deste modo, propõe uma ampla confiança no uso do raciocínio lógico-matemático e quantitativo para a busca da verdade científica, pondo em questão o paradigma de conhecimento escolástico e aristotélico até então predominante, de base qualitativa e sensorial. Descartes expõe, em Meditações Metafísicas, que as qualidades de um objeto podem ser imagens ilusórias produzidas pelos sentidos humanos. Influenciado pelas novas teses científicas desenvolvidas em sua época, como a óptica, Descartes vê as imagens sensíveis apresentadas à mente como produto do estímulo de sinais de luz a nervos ópticos internos, separando assim radicalmente a representação de imagens sensíveis produzidas e imaginadas na mente humana com a substância real de objetos externos.

Nesse sentido, Descartes apresenta o célebre exemplo ilustrado na Meditações, sobre a definição da substância de uma cera. Segundo Descartes, as qualidades visíveis atribuídas a uma cera, como a cor opaca e textura sólida, são enganadoras e incapazes para fornecer um conhecimento claro da substância material da cera. Isso ocorre porque a cera pode sofrer inúmeras modificações qualitativas de temperatura, calor e pressão que pouco afetam a sua essência corpórea.

Logo, para Descartes, a ideia de cera, enquanto imagem e representação mental constituída de qualidades visíveis de cor e textura, não necessariamente corresponde à cera enquanto substância física exterior. Assim, não se pode inferir a essência desta última a partir das qualidades sensoriais percebidas na primeira, tal como faria o pensamento aristotélico.

Em seu lugar, Descartes busca novas representações mais claras e evidentes de corpos materiais que não sejam aquelas passíveis de cair nas ambiguidades da imaginação, do senso comum e dos sentidos humanos. Deste modo, Descartes propõe a substância material como constituída somente de atributos de extensão quantitativa, definida e conceituada segundo critérios de medição de largura, altura, tamanho, movimento etc. O conhecimento de corpos materiais, neste sentido, se reduziria apenas à descoberta de representações quantitativas e fórmulas algébricas que expliquem o seu funcionamento (causa eficiente) e constituição física (causa material). Os números, neste sentido, serviriam como base de ideias simples e claras para a construção de representações de ideias compostas mais complexas, como a matéria. 

Para Descartes, esta capacidade de decomposição de ideias compostas em ideias simples provenientes da aritmética pode ser generalizada a todo e qualquer conhecimento científico. Como consequência, todos os campos do conhecimento até então estabelecidos, neste sentido, devem sofrer mudanças em seus fundamentos para se adequarem ao sistema matemático universal da Mathesis Universalis. A ciência física, neste sentido, deve ter excluída as conceituações qualitativas provenientes dos sentidos e substituídas por representações de leis mecânicas e matemáticas como causas eficientes explicativas para fenômenos como movimento, aceleração, etc. Até a geometria euclidiana clássica deve ser depurada de todos os elementos provenientes dos sentidos visíveis, como o desenho de linhas e curvas, sendo assim reduzida a representações aritméticas.

Conforme bem explicado no livro Cosmos e Transcendência, de Wolfgang Smith, esta visão de mundo mecanicista e quantitativista da Mathesis Universalis se tornará o paradigma dominante do pensamento ocidental, entre os séculos XVII a XIX. Esta exercerá forte influência sobre os novos campos de conhecimento nascentes na época, entre as quais a nova filosofia política de Hobbes e a física moderna de Isaac Newton, de base mecanicista e quantitativa. Também influenciará o nascimento da ciência econômica moderna, que teve suas origens na obra A Riqueza das Nações por Adam Smith no século XVIII.

Na teoria econômica, tanto em suas vertentes mais à direita (liberalismo neoclássico), quanto as mais à esquerda (keynesianismo e marxismo), são influenciadas em maior ou menor grau pela concepção racionalista, quantitativa e mecanicista dos processos de produção, organização e distribuição econômica, herdados da Mathesis Universalis. Como exemplo, o liberalismo neoclássico e o keynesianismo tendem a trazer em sua teoria o reducionismo abstrato e quantitativista das ações sociais humanas à dimensão da maximização e realocação racional de recursos (“o homo economicus”).

Outros elementos qualitativos da ação humana (ético-morais) são ignorados e considerados como alheios e irrelevantes ao funcionamento econômico, sendo colocados como meros valores subjetivos, por serem imensuráveis. Quanto ao marxismo, este herda em seu fundamento a concepção abstrata do valor trabalho dos economistas clássicos (Adam Smith e Ricardo), reduzindo a questão do valor econômico em uma mercadoria a uma única dimensão quantitativista (do valor de troca como número de horas de trabalho “cristalizadas” resultante da exploração do trabalhador) e ignorando outros fatores qualitativos e subjetivos responsáveis pela formação do valor de troca em um mercado.

Alguns autores estabelecem uma visão crítica à aplicação da visão de mundo cartesiana das ciências naturais ao campo das ciências econômicas. Entre esses autores se destacam aqueles filiados à Escola Austríaca de Economia, como Ludwig von Mises e Murray Rothbard. A visão destes autores tende a valorizar a concepção da ciência econômica como uma ciência social norteada para a busca de “Verstehen” (compreensão) da ação humana, similarmente àquela defendida por Max Weber ao campo da sociologia. Assim, a Escola Austríaca põe em questão o conceito de “homo economicus” e propõe uma abordagem menos quantitativa, mecanicista e preditiva e mais compreensiva da ação econômica. Esta nova concepção metodológica da economia esboçada pelos austríacos representa uma ruptura com o paradigma cartesiano na ciência econômica, reincorporando a objetividade do elemento qualitativo. A metodologia econômica austríaca, ao romper com o reducionismo quantitativo e determinístico de Descartes, abre uma interessante perspectiva de harmonizar o estudo da ação econômica com as dimensões subjetivas e não-quantitativas de outras disciplinas como a Ética e a Psicologia.

Referências

DESCARTES, RENÉ. Discurso do Método. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

____________. Meditações. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

GOTTLIEB, ANTHONY. The Dream of Enlightment: The Rise of Modern Philosophy. Nova York: Liveright Publishing Corporation. 1ªed., 2016.

GUEROULT, MARTIAL. Descartes segundo a Ordem das Razões. Tradução de Érico Andrade.  1ª ed. Discurso Editorial, 2016.

HAMELIN, OCTAVE. El Sistema de Descartes. Losada, 1949.

ROTHBARD, MURRAY. Economic Controversies. Alabama: Ludwig von Mises Institute, 2011.

SMITH, WOLFGANG. Cosmos e Transcendência: rompendo a barreira da crença cientificista. Tradução de Percival de Carvalho. Campinas: Vide Editorial, 2019.

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.

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