Tiago Barreira
Tornou-se comum em meios políticos, de uns tempos para cá, denunciar uma suposta “religião do bolsonarismo” como uma seita política de natureza autoritária e ameaçadora das instituições democráticas. Que este discurso vem sendo alardeado há uns tempos pela esquerda, não é novidade alguma. A grande surpresa está no bombardeio diário e constante de críticas e ataques vindos dos próprios conservadores de direita, repetidos e reproduzidos de modo crescente a cada denúncia ou manchete veiculada pelos meios de imprensa.
Dentre as críticas, quero ressaltar em particular esta entrevista ao youtuber cristão Yago Martins na Gazeta do Povo. O entrevistador faz uso de vários pontos e lugares-comuns exaustivamente repetidos pela mídia. Até aí nada de novo. Porém, o que mais me chamou atenção em particular é o uso da linguagem conservadora e de pensadores teóricos conservadores para isso. O Bolsonarismo, neste sentido, seria um tipo de ideologia utópica gnóstica que busca a política como meio de salvação, similar aos messianismos socialistas e nacionalistas. Ao buscar na política um meio de “imanentização do escathon”, segundo o conceito de Eric Voegelin, o entrevistador considera o bolsonarismo como uma ideologia autoritária e totalmente dissociada dos genuínos valores cristãos conservadores.
A Síndrome do Isentismo
Gostaria de esclarecer que não me cabe neste artigo entrar no mérito de avaliar o conteúdo das críticas ao governo Bolsonaro, se são factuais ou não, e nem de fazer um exame extensivo dos erros ou acertos do governo. A questão a ser ressaltada aqui está na própria atitude reativa dos ex-apoiadores do governo. Como explicar o fato de haver um governo com discurso conservador, que propõe medidas conservadoras e com quadros ministeriais assumidamente conservadores, ser acusado por conservadores de não ser conservador?
Percebo, primeiramente, que uma certa síndrome isentista parece ganhar força na direita como nunca antes, em meio a um governo combalido de popularidade e extremamente desgastado, e perto de um ano do início do período eleitoral. Percebo também uma certa necessidade de aprovação e validação externa junto ao establishment cultural e midiático, como marcante entre os conservadores “Prudência e Sofisticação”.
Posar de pensador isento ideologicamente e antigovernista parece ser o contraponto virtuoso em um país cronicamente dominado pelo patrimonialismo e pela dependência cultural e econômica aos meios estatais. Ao se posicionar como isentista, garante-se automaticamente perante o público de que o debatedor possui credenciais de pureza e honestidade intelectual e moral, acima das disputas e dos interesses mesquinhos partidários, e na melhor das hipóteses, alguém que “não se vendeu”. Logo, criticar um governo conservador torna-se uma ostentação pública de virtude, enquanto parte do livre exercício da autonomia de pensamento. E se alguém questiona as críticas formuladas pelos isentistas, este é automaticamente rotulado como um fanático defensor do governo e, portanto, só pode ser um “vendido” e inimigo das liberdades.
A Ideologia do Democratismo
Ser de direita e conservador, portanto, torna-se rejeitar tudo aquilo que os isentistas rejeitam, assim como defender tudo o que estes defendem. E o que os isentistas defendem? Mais precisamente, um dos elementos mais característicos está naquilo denominado por Voegelin como a ideologia do “democratismo”. O democratismo consiste em colocar como essência da política o equilíbrio ideológico entre direita e esquerda, buscando a sucessiva alternância do poder e eliminação dos “extremos” perturbadores deste equilíbrio.
Desse modo, as ideologias, especialmente de esquerda socialista, ao serem consideradas forças políticas cruciais para a manutenção desse equilíbrio e alternância, não são vistas como negações revolucionárias da realidade e ameaças perigosas à ordem social que são, tal como denunciadas por Voegelin. Essa concepção democratista do poder, que encara a política como produto de uma eterna disputa entre partidos de direita e de esquerda, implica que a intenção da direita de combater a esquerda é revolucionária e utópica. Logo, não é de se espantar que estes vejam as intenções da “ala ideológica” do governo de promover guerra contra o marxismo cultural e “desesquerdizar” as instituições políticas e culturais como autoritarismo.
Para o democratismo, a idéia de aniquilar politicamente a esquerda e remover a sua influência na sociedade é como querer acabar com as classes sociais, ou raças. Daí também a sua atração pelo centro. Porque os extremistas querem destruir o equilíbrio do cabo de guerra entre esquerda e direita. E o papel do “centro democrático” e desses “conservadores literais” (que querem conservar tudo como está) é manter o cabo de guerra permanente, pra sempre.
O horror, para o democratismo, são países como a Polônia, a Hungria, ou Israel, as tais “democracias iliberais”. Onde há eleições em que partidos políticos disputam governos, mas praticamente não há socialismo e comunismo. O comunismo é criminalizado tal e qual o nazismo, e isso é parte do consenso estabelecido. A ausência de esquerda socialista nestes países parece escandalizá-los mais do que o passado brutal de ditaduras totalitárias nestes mesmos países.
O democratismo ignora que o termo esquerda e direita são relativos. O socialismo radical ao estilo PC do B ou PSOL é de fato imensamente fraco em países como a Polônia. A direita conservadora de fato criminalizou o comunismo, mas não criminalizou a esquerda ou a alternância ideológica neste país. Na verdade, basicamente empurrou-se o centro do espectro político para a direita, tornando os liberais e os centristas a esquerda. Combate ideológico não necessariamente implica em homogeneização ideológica ou visão “totalitária” de mundo.
O “PT ao Contrário” ou a Newtonização da Política
Outro erro também característico da ideologia democratista é que esta, contrariamente ao discurso pregado de manter a maior pluralidade e diversidade ideológica possível, assume na verdade um caráter claramente homogeneizante, e terminando por reduzir a diversidade ideológica. Pois o democratismo reduz a diversidade de opiniões ideológicas à questão quantitativa, de intensidade numérica, posicionando a esquerda como um pólo e a direita outro pólo. E o centro se colocando como a posição média que equaciona os dois pontos.
Ora, isso pressuporia que esses dois pontos mantivessem uma essência comum, sobre a qual pudessem ser metrificados e quantificados. Como se houvesse uma comparabilidade de opiniões em termos de grau de assertividade. Nesse sentido, uma opinião muito assertiva e radical deve ser moderada em relação a outra opinião contrária, igualmente assertiva. O debate político é quantificado, com a aplicação dos pressupostos cartesianos e newtonianos, de caráter quantitativo, ao âmbito do discurso político.
O que podemos considerar, contudo, é que a direita não possui uma divergência quantitativa com a esquerda, mas qualitativa. Esta, portanto, difere em essência com a esquerda, e não em grau ou intensidade. Este é o problema de se pensar o espectro político em termos de uma régua, de um ponto a esquerda e de outro a direita. Isso seria metrificar as opiniões, como se houvesse uma unidade de medida comum e igualmente comparáveis entre si, passíveis de serem “equilibradas”. A ciência política moderna, nesse sentido, acaba pecando ao “newtonizar” o debate político.
Essa newtonização quantitativa uniformizante das coisas e o desprezo pelas singularidades qualitativas que as diferenciam é o elemento mais expressivo do pensamento moderno homogenizador. Tanto para a ciências naturais quanto para as sociais. Este é um elemento sistematicamente denunciado por René Guenon, que associa a modernidade ao Reino da Quantidade.
Vivemos um mundo político e social que é nitidamente delineado por essa uniformização e quantificação, no aspecto do comportamento, moral, dos costumes. O pensamento pós moderno é a radicalização desse esquematismo. Encontramos este esquematismo de forma nítida em conceitos pós-modernos, como a microfísica do poder em Foucault. Todas as relações humanas se reduzem a um princípio único de construções de mecanismos e dispositivos de poder, sobre a qual se impõem discursos e relações de sujeição. É mais um exemplo do newtonianismo físico abstrato. Discursos em si são aparências e artificialidades construídas convenientemente segundo uma lógica de poder. Logo, não existe diferença alguma entre as relações de poder no PCC e as relações de poder entre um médico e paciente, ou entre um padre e um leigo. Não há, em suma, diferenças qualitativas, somente quantitativas. De ter acesso a mais ou menos meios de poder.
Do mesmo modo, para os isentistas, não há nenhuma diferença qualitativa entre a natureza do bolsonarismo e a natureza da ideologia comunista ou nazista. O conteúdo ideológico e qualitativo de cada um destes grupos, que requerem uma análise cuidadosa de conexão destes discursos com a realidade, pouco importa. Pois para o quantitativismo político, discursos são apenas um pano de fundo para interesses reais de dominação e de desejo de controle totalitário da sociedade. Temos nesse caso um exemplo típico de como a mentalidade moderna opera sobre as mentes, até mesmo as mais conservadoras e tradicionais. O bolsonarismo, por mais que condene enfaticamente regimes totalitários de extrema-esquerda em Cuba e Venezuela, se torna segundo estes um “PT ao contrário”.
Conclusão
Os isentistas brasileiros, da maneira como se desenvolveram, cumprem um papel importante na política nacional. Que é o de reprimir todo e qualquer movimento conservador espontâneo, e blindar os erros e os crimes das ideologias socialistas e comunistas, de natureza revolucionária e gnóstica, em nome do equilíbrio das instituições. Além disso, assistimos a um acirramento do controle de opinião como nunca visto no país, em meio à judicialização da política e interferência crescente do STF sobre os demais poderes. Sob nome do “equilíbrio” e imbuído da ideologia democratista, o STF assume um papel, aí sim, messiânico, de arbitrar as disputas políticas e terminando por suprimir a pluralidade democrática. A democracia e as instituições brasileiras perdem com estas manobras, empobrecendo o debate público, crescentemente homogeneizado e padronizado segundo a lógica do Reino da Quantidade.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.
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