Reino da Quantidade x Reino da Qualidade – Tiago Barreira

Tiago Barreira

O advento do Reino da Quantidade no ocidente moderno trouxe a newtonização quantitativa na sociedade e política (ver artigo). Além disso, e de forma paradoxal, o Reino da Quantidade parece estar umbilicalmente ligado ao seu contraponto também presente na sociedade, o Reino da Qualidade, representado pelo subjetivismo romântico.

Um dos elos originários possíveis estaria no pensamento racionalista dos séculos XVI a XVIII de Galileu, Hobbes, Newton e, sobretudo, no pensamento de René Descartes, que trouxe uma separação radical entre mundo subjetivo e objetivo. Descartes, em sua obra Meditações, chegou a se perguntar no que consistia a substância material da cera, uma vez que nada de visível sobrevivia nesta quando colocada junto ao fogo. O visível, segundo Descartes, é uma ilusão óptica, produzida por um gênio maligno. Toda substância material somente deve ser explicada por suas propriedades matemáticas de extensão espacial.

Daí temos o plano cartesiano. Tudo que é visivel deve ser decomposto espacialmente segundo a matemática. Pois temos aí um exemplo clássico da rejeição moderna ao sensorial visível e qualitativo e de valorização do quantitativo. E como também dito no artigo já mencionado, a cosmovisão moderna consiste justamente nesta unidimensionalização do mundo físico em suas propriedades quantitativas (medida de peso, movimento, extensão), jogando todas as suas propriedades qualitativas e simbólicas ao aspecto de ilusão subjetiva sintetizada no interior do sujeito.

É notório ver as implicações desta unidimensionalização do mundo físico sobre a vida social ao longo dos séculos posteriores a Descartes. Como exemplo, assiste-se a uma progressiva igualitarização das relações sociais. É como se todas as diferenças qualitativas que singularizam indivíduos entre classes, religião ou gêneros fossem gradualmente apagadas.

Como exemplo, havia no período pré-moderno um modo de existir qualitativo para cada casta social. Os nobres mantinham um código de vestimenta próprio, e eram educados desde jovens para o cumprimento dos deveres específicos à sua classe. Essa educação diferia totalmente de outras classes, tais como a classe clerical, burguesa e camponesa. Cada uma destas com distinções qualitativas, de caráter moral e expectativas sociais distintas.

Não se esperava da classe militar aristocrática o mesmo rigor com a sexualidade que se esperaria com a classes camponesas ou burguesas, como exemplo. Por outro lado, os nobres cumpriam deveres sociais da “noblesse obligé”, e atitudes associadas ao autossacrifício pessoal eram fortemente encorajadas. Paralelamente, outras ações motivadas segundo o egoísmo e auto-interesse pessoal eram desprezadas pelos nobres, diferentemente do que se esperaria de um comerciante burguês.

Em sua obra o Reino da Quantidade, Guenon mencionava exatamente este fenômeno de igualitarismo como uma consequência do Reino da Quantidade inaugurado pela modernidade. A atomização social e a homogeneização de classes, gêneros, hábitos, gostos e preferências nada mais seriam do que uma consequência deste reducionismo quantitativo.

Um outro importante exemplo em que notamos os efeitos do advento do Reino da Quantidade é o sistema educacional. Hoje o nosso sistema educacional não busca mais preparar pessoas para atender a papéis ou funções sociais específicas, segundo a sua vocação ou disposição de caráter e personalidade. Este busca atender ou à finalidade pedagógica liberal rousseauniana de preparar cidadãos abstratos para a “sociedade democrática”, ou à finalidade pragmática e utilitarista de preparar trabalhadores abstratos para o mercado de trabalho. Cidadãos estes abstraídos de qualquer caráter moral ou qualitativo singularizador.

O caráter moral torna-se então um conjunto genérico de preceitos ou de condutas práticas voltadas para a mera convivência civil ou êxito profissional. Preceitos estes frágeis, pois enraizados em imperativos de um homem ideal abstrato, e logo ignorantes de qualquer tipo de conhecimento sobre as nuances da natureza e experiência histórica humana e social. E ainda, estes preceitos do bom cidadão, por serem frágeis, são passíveis de serem manipulados e alterados conforme as conveniências políticas do momento.

O princípio da qualidade, por assim dizer, foi enxotado da vida social exterior e teve de se refugiar no subjetivismo. E foi nestes termos que se deu seu retorno inevitável, através da rebelião romântica contra o racionalismo cartesiano. Vimos esta rebelião eclodir na arte e estética, inicialmente com a Strum und Drang alemã do século XVIII, para se disseminar aos demais campos culturais, sociais e políticos. O apreço romântico pelo mistério, pelo preternatural, é uma negação do mundo homogêneo consagrado pelos racionalistas, onde nada mais haveria no mundo do que somente peso, massa, matéria e leis físicas universais.

Além disso, valores qualitativos não seriam mais dados ou impostos externamente, mas criados pelo sujeito. A consciência criadora torna-se a palavra de ordem desta revolução copernicana do sujeito. Os movimentos pedagógicos construtivistas pós-modernos, especialmente em suas versões mais puras, carregam o legado do romantismo: cada criança tem algo de especial e o papel da educação é criar condições pra trazer isso à tona. E nisso há essa rebelião subjetivista contra o Reino da Quantidade. É interessante notar essa tensão, entre um ensino técnico, das matérias mais quantitativistas, e a rebelião contra isso, vinda da pedagogia romântica, que quer formar uma nova sociedade, composta por novos homens.

Podemos ver então como o bifurcacionismo entre sujeito e objeto, produzido por Descartes, promoveu de forma não-intencional a consciência romântica nos séculos posteriores. Ora, se de um lado o quantitativismo cartesiano produziu a matematização do mundo físico, por outro também terminou por criar de forma involuntária um outro mundo, o da subjetividade qualitativa romântica, ou o Reino da Qualidade. O bifurcacionismo cartesiano se encontra expresso de forma muito clara nesta passagem do poeta e ensaísta inglês Joseph Addison que, em 1712, ao analisar a obra do Ensaio sobre o Entendimento Humano de John Locke, apontava com perplexidade e estranheza o novo pensamento racionalista moderno que surgia em sua época:

“Nossas almas estão neste momento deliciosamente perdidas e confusas em um agradável delírio, e caminhamos como o herói encantado de um romance que vê belos castelos, bosques e prados, e ao mesmo tempo ouve o gorjeio dos pássaros e o ronronar dos vapores; mas, após o término de algum feitiço secreto, a cena fantástica se desfaz, e o cavaleiro desconsolado se encontra em uma estepe árida ou em um deserto solitário … Supus aqui que meu leitor esteja familiarizado com essa grande descoberta moderna, que atualmente é universalmente reconhecida por todos os investigadores da filosofia natural: a saber, que a luz e as cores, conforme apreendidas pela imaginação, são apenas ideias da mente, e não qualidades que têm existência na matéria.”[1]

Comentando sobre a obra do Locke, Addison deixa claro nesta passagem o viés quantitativista do pensamento lockeano. Negar a objetividade das luzes e cores, enquanto meras ideias na mente e dissociadas de qualquer propriedade qualitativa da matéria. Trata-se exatamente a questão da cera mencionada pelo Descartes. Quando posta a substância da cera ao fogo, as cores e solidez desaparecem. Reflexo de um mundo ilusório e subjetivo.

[1] Joseph Addison, Spectator, no. 413, 24 de Junho 1712. Tradução Livre.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.

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