Tiago Barreira
Não consigo ver melhor exemplo da idolatria tecnicista no mundo moderno que o apresentado nesta notícia.
“Michel Faro Praddo costumava ficar fascinado com figuras mitológicas e monstruosas que via em filmes desde garoto. Por isso, inspirado em obras como “Legião”, “30 Dias de Noite” e “Hobbit”, ele começou a realizar uma série de alterações radicais em seu corpo. Ele o cobriu de tatuagens, adicionou presas a seus dentes, chifres a sua cabeça e, mais recentemente, retirou um dos dedos de sua mão e colocou dentes de prata.“
“Quando comecei a modificar o meu corpo, não tinha metas a alcançar, mas tinha uma sede de fazer mais modificações corporais. Hoje, gostaria de chegar a ser o homem mais modificado do mundo”, afirma ele em entrevista ao UOL.“
“Michel não pretende parar. O tatuador recentemente tirou seu dedo anelar, fazendo com que suas mãos assumissem uma aparência de garras.“
“A retirada do dedo foi feita com um amigo mexicano considerado um dos maiores modificadores do mundo, e essa modificação foi uma das melhores em questão de pós, muito tranquilo. Em uma semana eu já estava fazendo musculação. Foi uma semana de antiflamatorio e só”, contou ele.”
“Agora, o tatuador tem planos de alterar a mão ainda mais e seguir mexendo no corpo.“
“Vai ter uma bifurcação no meio da mão para deixar ela mais aberta. Tenho um certo número de implantes de silicone no antebraço e braço. A ideia final é de produzir algumas partes metálicas externamente, para dar um ar de algo ‘biomecânico’.”
A notícia mostra até que ponto a idolatria tecnicista, manifestada através da ideologia transhumanista de manipulação do corpo, é capaz de degenerar-se nas formas mais grotescas de apologia ao satanismo. Pois se é permitido manipular a vida em laboratório, por que não se pode manipular o corpo, cortar o nariz e amputar dedos das mãos, até virar um “Diabão”?
Vemos a cada dia que passa manifestações crescentemente explícitas do corpo dessacralizado na cultura e sociedade, o que nos leva a refletir sobre o estado atual de um mundo influenciado há mais de quatro séculos pela cosmovisão cartesiana mecanicista e quantitativista, o qual não possui nenhuma outra finalidade ou sentido transcendental além de sua mera instrumentalidade técnica.
Um mundo em que o corpo humano não é mais visto como uma obra acabada e pronta por uma divindade Criadora, com uma forma e atributos definidos e estáveis, a serem conhecidos e aceitos em sua realidade tais como são, mas sim um barro amorfo, a ser moldado, (de)formado e manipulado por nós, os homens demiurgos.
Ainda que seja possível, dentro da mentalidade moderna, levantar discussões éticas sobre a normalidade e os limites dos procedimentos cirúrgicos adotados, e os potenciais danos acarretados à saúde, ainda assim raciocina-se os padrões de “normalidade” do corpo dentro de referenciais médicos e de “saúde física”, submetidas tão somente a categorias materiais.
É como se não conseguíssemos escapar destes referenciais, ficando preso sempre em uma espécie de circularidade autorreferencial dos padrões de medida quantitativos, e enxergando a realidade do corpo somente dentro da caixa limitadora destes padrões.
Discussões que busquem tomar referenciais de normalidade fora deste campo quantitativo, mais qualitativos e não-mensuráveis, como ideais morais e estéticos de Beleza, Terror e Asco, são encarados como meros sentimentos sem nenhuma conexão com a objetividade das coisas em si, e situadas dentro da esfera da subjetividade. Sentimentos estes que, na melhor das hipóteses, não passam de meros pontos de vista, geradores de “erros de percepção e julgamento”.
Logo, somente o que pode ser medido e contado é real. Os batimentos cardíacos, a taxa de glicose, os níveis “ótimos” de produção hormonal de serotonina e dopamina contam para determinar o que é bom ou não para uma pessoa. Já o conteúdo de seus valores, ambições, fantasias e aspirações, e a adequação de suas expectativas com a realidade são praticamente ignorados.
Todo este reducionismo quantitativo está está inserido neste contexto de manipulação técnica da matéria na modernidade. De uma modernidade que se encontra presa a essa cosmovisão de onipotência humana, e que paradoxalmente tende a produzir uma visão altamente limitante e empobrecedora da natureza e do homem. E ainda, uma manipulação que atende não a fins de ideais humanistas e emancipatórios coletivos humanos, mas a meros caprichos e vaidades individuais.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.