Duas Caras e a Crise da Linguagem Gramsciana no Brasil dos anos 2000 – Tiago Barreira

 

Estava revendo nesses últimos dias, para fins nostálgicos, uma das cenas mais impactantes da TV brasileira da década de 2000. A novela da Globo, Duas Caras, escrita por Aguinaldo Silva, remete a um passado não muito distante. O ano que foi lançado, em 2007, foi o auge da era PT. Lula iniciava seu segundo mandato, sobrevivendo incólume ao escândalo do Mensalão. A corrupção petista vivia o seu ápice. A sociedade vivenciava um período de forte hegemonia cultural da esquerda gramsciana, e isso se refletia no discurso e linguajar adotado nas novelas.

Mesmo levando em consideração o fato de que as novelas sejam produtos de consumo da indústria cultural, e que visam sentimentos superficiais e reações fáceis do público em busca de audiência, destaco aqui neste artigo o caráter peculiar de documento histórico e social que o folhetim em questão possui. Nada que melhor represente e capte o espírito da década de 2000 no Brasil que a novela Duas Caras. A discussão de temas sociais como a desigualdade, favelização, neoliberalismo, estava em voga, sendo uma das novelas mais sociológicas e acadêmicas já produzidas pela Globo. Não se pode deixar de mencionar o maniqueísmo batido de capitalistas corruptos e vilões e pobres honestos e heróis, que se fazia presente nessa novela de forma exaustiva. O maior vilão da novela, Marconi Ferraço, é um empresário de sucesso no ramo da construção civil da Barra da Tijuca, que construiu um império às custas do estelionato praticado em cima de uma familia, dando um golpe do baú ao se casar e abandonar uma órfã rica do interior do Sul (Maria Paula – Marjorie Estiano), roubando todos os seus bens.

Empresário bandido. Um legado de décadas de hegemonia marxista gramsciana nos meios culturais. Mas ao mesmo tempo, em meio ao período de ouro do gramscismo brasileiro, coroado pela vitória de Lula em 2003, algumas fendas de rachadura já se faziam notar no discurso esquerdista. A linguagem esquerdista, vivendo em seu auge naqueles anos de 2007, já começava a mostrar os primeiros sinais de esgotamento. E o grande mérito essa novela é mostrar, de forma honesta, algumas destas primeiras fissuras entre discurso e realidade que começavam a se delinear.

E a melhor maneira de demonstrar esse esgotamento é através da apresentação da hipocrisia e dissonância cognitiva dos personagens. E isso se refletia na trama. Por exemplo, um dos personagens da novela, Juvenal Antena (Antonio Fagundes), era miliciano de uma favela da Zona Oeste carioca, a favela da Portelinha. Uma favela resultante da ocupação ilegal de terreno por ex-operários grevistas de uma empresa de construção falida. Juvenal Antena agia como miliciano, ao impor a lei do poder paralelo na comunidade. Só que seu poder era camuflado e floreado pelo linguajar esquerdista. Ele se dizia líder comunitário, e reivindicava direitos sociais dos moradores junto ao estado, tal como um Guilherme Boulos. Mesmo criminoso e loteador ilegal de terrenos, era um miliciano com “consciência social” e porta-voz das “aspirações legítimas da comunidade”, e que por isso mesmo se perpetuava no poder sob o respaldo e aval de advogados e políticos de esquerda.

Outro núcleo interessante é o universitário. A novela exibiu uma cena de greve estudantil, de universitários comunistas. O líder do DCE era ativista do movimento negro e combatia abertamente o capitalismo, mesmo pagando para estudar em uma universidade privada. E ainda, era um mimado podre de rico que andava de carro conversível. Mais uma hipocrisia. A novela expõe enfim a hipocrisia esquerdista, de forma franca e aberta. Algo inédito de se observar durante o auge da era PT. Seja no discurso habitacional reivindicatório dos “movimentos sociais”, seja no discurso universitário do “movimento estudantil”.

As fissuras do discurso esquerdista somente se aprofundariam mais no decorrer dos anos. O discurso gramsciano, em seu floreamento e encobrimento de interesses político-ideológicos comunistas sob as máximas éticas de “justiça social”, “combate à desigualdade” e “cidadania democrática” não convencia mais as camadas populares, tornando cada vez mais inevitável o divórcio entre intelectualidade revolucionária e povo. Um colapso que se concluiria na década de 2010, com as grandes massas de manifestações anti-corrupção e pró-impeachment de 2016.

Destaque dou a esta cena, em que o estelionatário bandido, Adalberto Rangel, aplica o golpe do baú na moça recém-casada e foge, para se tornar o empresário Marconi Ferraço. Daí o título da novela, Duas Caras. Eu lembrava dessa cena quando assisti. Reverbera nos meus ouvidos até os dias de hoje o grito de desespero da Maria Paula – “Adalberto!”. Um grito que ganha uma dimensão profética, de clamor de justiça contra os corruptos e bandidos, e contra o pântano moral das elites políticas e econômicas que afundaram o Brasil na história recente. Creio ser um retrato perfeito do Brasil da década de 2000.

Tiago Barreira

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.

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