
Tiago Barreira
A presidente do Banco Central Europeu (BCE), Christine Lagarde, afirmou recentemente que a inflação na zona do euro “vai perder força no horizonte à frente” e, por isso, não há motivos para a autoridade monetária realizar uma política de aperto, pois isso poderia sufocar a recuperação econômica. Lagarde também insistiu que o BCE não deveria pisar no freio na política de compra de títulos, mas sim continuar adicionando mais estímulos à recuperação da economia.
Contudo, ao contrário do que afirma a presidente do BCE, deve-se ressaltar que a inflação europeia não é um fenômeno inócuo a desaparecer no “horizonte à frente”, mas também um efeito de uma demanda superaquecida por emissão monetária. Demanda esta que, se continuamente alimentada por políticas expansionistas de estímulos monetários e compra de títulos, pode desencadear uma espiral ascendente de preços, e agravar ainda mais o quadro inflacionário presente na Europa e no mundo, incluindo o Brasil.
A declaração da presidente do BCE confirma mais uma vez temores de que a espiral inflacionária vivenciada no mundo em 2021 veio para ficar, e que isso parece não ser uma preocupação central do BCE. Uma espiral inflacionária que vem sendo agravada não somente pela pandemia e pelos estímulos monetários, como também pela implementação das novas leis de acordo climático e pelo ativismo ESG do mundo corporativo.
Lagarde preferirá ignorar este novo normal inflacionário como algo a desaparecer sozinho “no horizonte à frente”, e olhar tão somente para a retomada de atividade em uma economia já superaquecida. Esta atitude heterodoxa no tratamento da inflação é inédita e, na prática, um retorno não-declarado ao keynesianismo dos anos 70.
É um retorno ao keynesianismo dos anos 70, pois vivemos em uma época em que a inflação voltou a ser vista como uma coisa desejável. O que mostra que, se há alguma lição a ser aprendida nos dias atuais, é o fato de que o consenso quanto a certos temas econômicos, outrora tidos como óbvios, pode facilmente ser erodido e esquecido. As declarações de Lagarde, assim como as novas teorias inflacionistas que ganham terreno no debate público como a MMT, são parte desse contínuo esquecimento quanto ao que significa ter uma moeda estável.
O esforço de relembrar esse papel deve permanecer constante no debate público. No passado, liberais como Hayek e Friedman se empenhavam em expor argumentos concisos e claros contra a inflação, e as suas consequências negativas. Naquela época, fazia-se aquilo porque era comum haver defensores da inflação, algo que soaria estranho por parecer uma obviedade. Nos dias atuais, isso deixou de ser óbvio de novo.
O inflacionismo, no final das contas, nada mais é do que a idealização de um mundo fantasioso. É o que fazem os nossos atuais expoentes progressistas da economia. Querem simultaneamente estrangular a produção e atividade (com pandemia, acordos climáticos, governanaça ESG) e garantir que a população tenha o mesmo padrão de vida de antes, via estímulos e auxílios governamentais financiados por impressão de dinheiro e endividamento.
Questionar a ESG, os lockdowns e os acordos de clima são tidos como inaceitáveis perante a sensibilidade de 2021. A saúde primeiro, o planeta primeiro. Só não é primeiro o compromisso com a estabilidade fiscal e monetária. Mas o preço desse compromisso é ver mais pessoas desempregadas e mais miséria. Logo, temos que salvar o planeta e a Saúde pública mundial, e ao mesmo tempo garantir que as pessoas continuem vivendo bem como antes. E dá-lhe estímulos.
Trata-se de uma sensibilidade fantasiosa e irrealista, que quanto mais irrealista, mais tida como nobre, pois sinaliza intolerância com velhos hábitos e uma superação de práticas do passado. Esta hiperssensibilidade é parte do espírito de nossa época, e de tudo o que ela mais representa de mais negacionista quanto às leis morais naturais que regem o funcionamento de uma sociedade humana sadia e próspera.
Vemos ao longo da história recente do ocidente um acúmulo progressivo de expectativas quanto à vida humana. Cada geração acrescenta mais itens obrigatórios à lista de direitos essenciais para a dignidade da pessoa humana. E cada geração olha para a anterior sob ares de escândalos, acusando-a de ser injusta e insensível a demandas básicas humanas por carecer destes direitos. Viver como se vivia a vida de um homem comum durante a crise da Gripe Espanhola há 100 anos, sem a cobertura de direitos sociais estatais, é tido hoje como tão imoral e desumano quanto ser encarcerado em campos de concentração forçados.
Essa obsessão de cada geração de ampliar o escopo de direitos obrigatórios, tratando a anterior que as ignoravam como monstros morais, é um dos fatores cruciais que definem o progressismo político, que teve como inspiração a metafísica hegeliana no século XIX. Precisamos ver a história da humanidade e de suas instituições como um contínuo processo de conflito e autossuperação dialética de senhores e escravos, de modo que o ontem nada mais era senão barbárie e destruição. A Primeira Revolução Industrial foi imoral e desumana. A família vitoriana do século XIX foi opressiva e criminosa com mulheres. A democracia pré-sufrágio feminino foi terrível. A união civil pré-direitos gays foi injusta. É preciso a todo custo comprar a crença que a humanidade, por pior que seja a sua situação, já foi no passado muito pior do que é hoje.
A perda do senso de proporções quanto ao que é essencial à vida humana (liberdade econômica, civil), e ao que é supérfluo (direitos sexuais, renda básica universal, direito à saúde), a incapacidade de discernir moralmente o mal enquanto tirania política do mal simples e suportável gerado pelo desconforto material ou “mal-estar civilizacional”. Tudo isso contribui para o estado de confusão em que se afundou o ocidente pós-moderno. E não há sinais deste estado desaparecer.
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