
Tiago Barreira
O debate sobre o aborto tem se acirrado nas últimas semanas, em meio à recente revogação pela Suprema Corte Americana do precedente do caso Roe v. Wade que legalizava o aborto, no último dia 24/06, e após mais de 49 anos em vigor. De um lado, os críticos do aborto legalizado se alinham ao discurso pró-vida (Pro-Life), alegando o direito natural inegociável ao nascimento. Por outro, os defensores do aborto se alinham ao discurso pró-escolha (Pro-Choice), alegando o direito à liberdade de escolha individual da mãe. Ambos os lados tentam legitimar os seus valores utilizando-se de argumentos éticos e científicos sobre o status biológico do embrião e de quando as atividades vitais de um organismo se iniciam ou cessam, entre outros pontos.
Abstraindo-se das questões mais técnicas sobre a origem da vida e dos critérios científicos que a determinam, observo que sob a discussão do aborto esconde-se uma outra questão, de ordem mais filosófica e metafísica, que pouco vejo ser discutida. Esta questão envolve o próprio conceito de liberdade humana e a legitimidade das escolhas individuais.
Este supostamente deveria ser o principal valor a ser apoiado pelos defensores do aborto legalizado, ao carregarem a bandeira Pro-Choice. O aborto legalizado traria uma ampliação das liberdades individuais, de conferindo às mulheres um maior poder de decisão sobre os próprios corpos.
Este argumento, contudo, quando analisado com maior cuidado, não se sustenta de forma eficaz. Primeiramente, e ao contrário do comumente defendido, o poder de abortar nunca se encontrará nas mãos da mulher quando legalizado, pois esta não está envolvida diretamente na interrupção da gravidez. O poder de abortar ou não reside e sempre residiu na comunidade médica, que aborta e legitima o aborto segundo critérios clínicos e científicos de risco de vida, complicações de gravidez, etc.
A comunidade médica, nesse sentido, detém não só o poder de legitimar a interrupção da gestação segundo critérios de saúde, como também de ter o poder de persuadir à mãe quando esta vida merece ser abortada ou não, podendo rejeitar ou aceitar o pedido de aborto quando solicitado. E ao exercer essa influência sobre as decisões maternas, o médico acaba detendo algum grau de controle sobre o corpo feminino. Portanto, sem a decisão final ou conivência da comunidade médica, não há prática de aborto.
Assim, o discurso clínico e médico da proteção à saúde acaba sendo uma importante fonte do controle social de pacientes. Este discurso pode tanto ser usado por médicos para legitimar uma determinada prática de aborto quanto de deslegitimá-la, caso o médico tenha interdições éticas quanto à prática. Porém, vejo que há um fator adicional que tende a fazer com que esse discurso seja usado com maior frequência em favor do primeiro caso, que é o de abortar. Este fator é o incentivo econômico em realizá-lo. Pois abortar é algo muito cômodo do ponto de vista financeiro e de economia de custos de saúde pública, uma vez que se economizam gastos hospitalares com assistência de gravidez de risco, realização de parto de risco, manutenção artificial de bebês prematuros em aparelhos e entre outros gastos.
Em resumo, nenhuma escolha individual hoje sobre o aborto pode contra a decisão de uma comunidade grupal científica. De modo que seja esta, e não a mãe individualmente, que praticamente tenha o poder de ditar quem deve nascer e morrer hoje em dia. O aborto legalizado tem essa função de transferir poderes do indivíduo para uma coletividade grupal exterior de especialistas. Uma coletividade de especialistas que condiciona o nascimento e a maternidade a critérios clínicos e financeiros.
O argumento Pro-Choice, no final das contas, nunca passou de uma grande falácia, uma vez que tende levar a maiores restrições à liberdade individual, ao invés de ampliá-la. No discurso, a defesa incondicional do direito à escolha como valor moral supremo. Na prática, a instrumentalização do direito à escolha aos caprichos de uma autoridade externa que dita a legitimidade ou não dessa escolha.
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