
Por Eliseu Cidade
O Antropoceno constitui a era do protagonismo humano na Terra. Conforme o historiador Yuval Harari sugere em sua obra Homo Deus — uma breve história do amanhã, o homo sapiens foi capaz de alterar a ecologia global, alterando assim as relações com o ambiente. “O homo sapiens reescreveu as regras do jogo”. A partir dessa máxima, o escritor enfatiza o caráter reformador que o homem, sendo o expoente da gênese orgânica, provocou no planeta durante todo o processo evolutivo.
Em termos históricos, o homem altera a natureza desde tempos remotos datados da Idade da Pedra. Desde o surgimento humano na costa da África e sua posterior ocupação nômade nos demais continentes, o homem sempre modifica o ambiente ao qual ele está inserido. Segundo o autor, essa relação quase simbiótica entre homem e natureza foi marcada pelo desequilíbrio de ecossistemas e pela extinção de animais continentais devido a sua exploração indevida.
Após discorrer sobre a relação homem-natureza, o autor recupera as origens antropológicas humanas em relação às suas crenças mais primordiais. A crença animista, por exemplo, considerava os animais como seres quase indissociáveis de características humanas, uma vez que os animais teriam alma, e assim, manteriam conexão profunda com os homens. Essa visão leva em conta a existência espiritualista dos seres animados, e não somente a visão materialista de seres formados por aglomerados orgânicos.
Mais adiante, o escritor recorre às narrativas religiosas a fim de enunciar a relação estabelecida entre animal e homem. Ao recordar o relato do livro bíblico de Gênesis, o autor reafirma seu argumento por meio da explicação da origem do nome Eva dentro do contexto das línguas semitas, que significaria serpente. A narrativa do jardim do Éden, para o historiador, seria a ruptura da relação próxima do humano com o animal, devido à ocorrência da Revolução Agrícola.
Esse acontecimento histórico evidencia a descendência humana ao alegar que a existência humana é fruto da obra do Criador, e portanto, não derivada de outros animais como se supunha. A Bíblia refletiria o período da Revolução Agrícola, que era o novo estágio da relação entre o homem e os animais, caracterizado pela domesticação de animais. A partir desse momento, tem-se uma nova realidade econômica, baseada na supremacia do homem em relação ao animal, pois o animal passa a ser parte de suas riquezas e propriedade.
Assim, as necessidades dos animais se manteriam subordinadas ao desejo humano de suprir sua demanda nutricional. Sem exorcismos teoréticos para com o historiador, porém o autor com algum exagero ambiental tematiza o processo de subjugação animal vem acompanhado da banalidade da vida animal em que seres viventes são reduzidos, muitas vezes, à matéria inorgânica para a geração de um produto final. Nas palavras de Harari: “Eles prendem os animais em gaiolas minúsculas, mutilam seus chifres e suas caudas, separam mães de crias e seletivamente criam monstruosidades’’. É possível inferir a perda da liberdade animal a fim de garantir os interesses humanos, sejam eles de natureza econômica, pecuniária ou para o próprio lazer geradas a seu bel prazer.
Em seguida, o tópico foca no conceito e aplicação de algoritmos. A emoção seria, por assim dizer, um algoritmo bioquímico, já que ela faz parte de uma série de reações fisiológicas enumeradas assim como os algoritmos são capazes de desempenhar nos softwares. Em termos conceituais, o algoritmo seria o conjunto de etapas executadas de maneira lógica para a obtenção de determinado resultado. Desse modo, os algoritmos humanos seriam responsáveis por proporcionar sensações, sentimentos e pensamentos. O mundo animal está cheio de exemplos práticos de como esses algoritmos influenciam o comportamento dos agentes. A ideia do cálculo probabilístico é empregada a fim de enumerar vantagens e desvantagens para determinada ação e é, sem dúvidas, ferramenta valiosa decorrente do processo evolutivo. A identificação de uma presa que se aproxima, a observância de um parceiro sexual e o avanço na obtenção do alimento são estratégias importantes para a sobrevivência das espécies que são organizadas por algoritmos gerados pela bioquímica.
Harari tem uma cosmovisão exageradamente cientificista e reducionista — o que evidencia a decadência espiritual de sua era. Essa decadência não é só um sintoma patológico de ordem social e regional, mas mundial, isto é, o de tratar com desdém e distância a espiritualidade individual, tendo a religião como mero saber e meio na condução de pesquisas históricas, a saber, a velha e famigerada tese progressista — que os senhores bem conhecem e não preciso explicar — que vem sempre com discurso bonito, mas que é utilizado como instrumento de dominação.
As religiões teístas colocaram o homem como o ponto mais importante da criação. Nesse sentido, o cristianismo é respaldado pelas próprias sagradas escrituras que afirmam o domínio do homem sobre a criação. O homem seria o único composto por uma alma imortal submetida a um Deus onipotente. A questão da alma será enfaticamente discutida depois por muitos filósofos, incluindo Aristóteles, que acreditava na existência da alma em todos os seres animados, desde os de maquinaria celular mais simples até os mais complexos.
A lógica das relações agrícolas usa sempre o animal como instrumento disponível para o desenvolvimento humano e portanto, subordinado a este. No contexto dessas crenças, a hierarquia do homem em relação ao animal é algo natural. Portanto, na visão de Harari, a Revolução Agrícola foi tanto econômica quanto religiosa. A partir desse momento, após a domesticação animal, as atitudes e o modo de pensar dos animais, por parte dos humanos, foi radicalmente diferenciada. Animais não possuem mais atributo divino, eles fazem parte da criação, mas estão à disponibilidade do homem. Esse comportamento em relação aos animais se constitui, por assim dizer, em um periculum iminente para sua sobrevivência, uma vez que suas existências foram reduzidas às necessidades alimentícias e lucrativas humanas.
Na última parte deste capítulo, o autor analisa a relação entre a Revolução Agrícola e a Revolução Científica. Enquanto aquela estabeleceu relação direta entre o homem e os deuses e colocou os animais como coadjuvantes, esta rompeu a relação do homem com Deus. Através das novas descobertas científicas iniciadas no século XVII, o homem foi capaz de romper seus próprios limites e, na minha opinião, posteriormente, romper com ele mesmo. Dessa maneira, o ser humano passa a ser o protagonista do conhecimento e investigação, uma vez que antes o saber era monopolizado e selecionado pelas autoridades eclesiásticas.
Os resultados da Revolução Científica foram categoricamente importantes para o avanço das técnicas e das ciências empíricas. Desde as contribuições de Newton para a dinâmica das forças na mecânica, William Harvey e Vesalius com as descobertas sobre a circulação sanguínea e Galileu com suas descobertas astronômicas proporcionadas pelo primeiro telescópio. Nessa época, o homem tentou sair de sua menoridade, como afirma Immanuel Kant, é a Aufklärung, iluminação fornecida pela razão, posto que o indivíduo estaria apto nesse estágio a guiar-se de maneira individual e independente pelo seu próprio entendimento.
Por fim, a Revolução Agrícola teria formado a religião teísta, o que justifica a agricultura em nome de Deus. A Revolução Científica originou o humanismo, que justifica o mundo moderno, em seu sentido industrial e tecnológico, cultuando o humano. A ciência e a tecnologia atuais são capazes de tornar o homem independente da ação dos deuses e fazer do homo sapiens senhor absoluto de seu próprio destino através do estudo e previsibilidade de fenômenos — chegando ao último estado, o de homo deus.
O estágio atual da ciência moderna permite ao homem o aprimoramento da qualidade de vida, a previsibilidade de infortúnios causados pela natureza e a profunda investigação sobre o destino que o espera. Porém, é importante salientar que o cientificismo barato, jamais levará o homem a qualquer progresso, mas pelo contrário permite apenas arrogar sobre si mesmo a verdade suprema — o que é a visão ideal do que seria a própria ciência e não aquilo que a realidade demonstra, pois a ciência está em constante mudança e alternância.

Afinal, ao longo da história, quantos modelos teóricos, teorias consolidadas que cientistas aclamados enchiam a boca para defender estão hoje desacreditadas, defasadas, foram superados e não atendem mais os questionamentos e necessidades do atual curso da história? Além disso, por quantas vezes a atividade ao longo da história foi utilizada como um processo de controle que visa — através de uma hipnose reincidente — convencer de que a ciência é a dona da verdade e está acima do bem e do mal? Até quando a manipulação do ideal de ciência irá perdurar?
Portanto, acreditar cega e piamente na ciência coloca a própria ciência em descrédito, já que sua força vem da possibilidade de duvidar e questionar, senão do contrário a ciência seria só uma crença. Ou melhor, na verdade, ela se tornou uma crença, uma nova religião que visa substituir as demais tradições ao longo do próprio processo histórico.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.