
O filósofo e crítico literário René Girard apresenta uma série de ideias notáveis sobre as obras literárias. Entre estas ideias se encontra a análise de um complexo mecanismo psicológico por trás dos desejos e paixões dos personagens literários, denominado de desejo mimético. Em O Vermelho e o Negro de Stendhal, Girard traz à tona uma dinâmica do apaixonamento profundamente enraizada naquilo considerado como o “mal ontológico” da modernidade: a busca constante e frustrante de ser um Outro idealizado e divinizado.
Tiago Barreira
O filósofo e crítico literário René Girard apresenta uma série de ideias notáveis sobre as obras literárias de autores como Stendhal, Proust, Cervantes e Dostoiéviski. Entre estas ideias se encontra a análise de um complexo mecanismo psicológico por trás dos desejos, das ambições e paixões dos personagens literários, desenvolvendo uma teoria que ele denomina de desejo mimético ou triangular.
O que seria o desejo mimético? Esta teoria é detalhada de forma minunciosa na obra do crítico literário e estudioso de Girard, Richard Golsan, em Mito e Teoria Mimética (2014). Golsan nesta obra nos introduz ao pensamento girardiano, e observa que o desejo mimético girardiano é o traço constitutivo da personalidade humana, ao considerar que o seu desenvolvimento enquanto Eu depende da imitação de um Outro, denominado de Mediador. Este Mediador abre o acesso do Eu imitador a objetos de desejo, que somente são desejáveis por serem desejados pelo Mediador. Este objeto desejado estaria para o Mediador “assim como a relíquia está para o santo” (Girard, 2009).
Girard exemplifica casos de desejo mimético entre os personagens na literatura ocidental, como em Dom Quixote de Cervantes. Dom Quixote, emulando o cavaleiro herói Amadis de Gaula, passa a ver o mundo segundo a ótica heroica dos romances cavalheirescos. É através da identificação com o herói medieval que Quixote passa a desejar objetos e utensílios como bacias de barbeiro, transformando-os em elmos e objetos mágicos. A personalidade de Quixote torna-se intrinsecamente associada ao seu Mediador ideal, através da posse destes objetos.
O desejo mimético em O Vermelho e o Negro
Girard exemplifica um outro caso de desejo mimético em O Vermelho e o Negro de Stendhal, expondo um interessante mecanismo psicológico entre os personagens. O jovem herói do romance, Julien Sorel, procura a todo momento emular a vida heroica de Napoleão Bonaparte. Julien imita o desejo de seu herói não apenas em suas aspirações à glória militar, mas também ao acreditar que é sua obrigação envolver-se em aventuras amorosas com mulheres.
O protagonista Julien, quando decide que deve possuir a madame Louise de Rênal, de cujos filhos ele é tutor, a deseja menos por qualquer tipo de atração pelos seus encantos, mas por querer copiar e imitar aquilo que Napoleão teria feito em seu lugar, assumindo como certo que Napoleão teria tentado conquistá-la. Golsan (2014) afirma que, pela mediação de Napoleão, “todos os estágios da sedução de Louise se transformam, na mente de Julien, em uma série de confrontos e triunfos militares”.
Julian descobre, contudo, que é incapaz de sentir prazer na sedução propriamente dita quando esta se concretiza. Após dormir com Louise pela primeira vez, o protagonista indaga: “Ser feliz e amado… é apenas isso?”
O desejo mimético, portanto, de forma alguma garante a gratificação sensual ou sexual plena quando na posse do objeto, mas sim decepção. Os outros, afinal, não são divindades, e possuir tanto eles quanto os objetos de desejo que eles cobiçam é algo incapaz de transformar o ser dos indivíduos desejantes (Golsan, 2014).
Portanto, o desejo mimético humano se funda em uma ilusão e engano sobre as coisas da realidade, divinizando objetos e atribuindo a estas propriedades mágicas que não possuem de fato, tal como bezerros de ouro.
Os jogos amorosos de Julien e Mathilde
Quando, na segunda parte de O Vermelho e o Negro, Julien Sorel se muda para Paris a fim de tornar-se secretário do marquês de la Mole, este se envolve num segundo romance. O objeto de seu afeto é agora Mathilde, filha do marquês. Assim como no primeiro romance com Louise, a paixão de Julien não é genuína em seu interior. Julien, que até então considerava Mathilde uma jovem arrogante e sem qualquer brilho, começa a sentir-se atraído por esta em um baile no Hôtel de Retz, estimulado tão somente pelo interesse que os outros jovens demonstram por ela (Golsan, 2014).
O interesse de Mathilde por Julien, por sua vez, nos fornece outro excelente exemplo de mediação girardiana no romance, uma vez que também não é espontânea e geunína. Cansada dos membros de sua casta aristocrática, Mathilde se refugia na obsessão que sente pelo seu antepassado Boniface de la Mole, e pelo caso que este tivera com a Rainha Margot. Os dois haviam sido amantes até Catarina de Médici mandar decapitá-lo. Quando da morte de Boniface, Margot pediu que buscassem a cabeça do amado e enterrou-a, ela mesmo, aos pés do monte de Montmartre (Golsan, 2014). Essa história fornece a Mathilde desejos as serem imitados e episódios a serem recriados. Logo, conforme observado por Golsen (2014): “Desde o início, portanto, a atração entre Julien e Mathilde está saturada de artificialidade, florescendo na imitação do desejo alheio”.
Uma vez estabelecida essa configuração de desejo mútuo entre dois amantes, um novo tipo de dinâmica mimética se expressa no romance a partir de então, denominada por Girard de Mediação interna. Tal qual a bacia que ocupava o papel de relíquia mediadora entre o Quixote e o herói medieval divinizado, a relação amorosa entre Mathilde e Julien do Vermelho e o Negro também é mediada por objetos. Porém, diferentemente de ser um objeto mediador externo, como a bacia do Quixote, esta mediação agora irá se dar de forma interna, sendo o próprio corpo da pessoa amada que passa a ocupar esse papel.
Conforme observado por Girard (2009), o mediador neste caso é o dono absoluto desse objeto (o próprio corpo) e é sobre o corpo do mediador que incide o desejo do sujeito desejante. Assim, o corpo de quem é amado converte-se em objeto e relíquia. Possuir este corpo é o único meio para imitar o mediador (dono do corpo) e ser como ele.
Porém, o processo de apropriação do objeto mediador pelo desejante não se dá de forma simples e envolve uma série de tensões e rivalidades. Pois o mediador, segundo Girard:
“é o dono absoluto desse objeto (o corpo), do qual pode permitir ou recusar a posse ao sabor de seu capricho pessoal. O sentido desse capricho não é difícil de parecer se tampouco esse mediador é capaz de desejar espontaneamente.” (Girard, 2009)
Assim, segundo Girard, basta que o sujeito desejante deixe transparecer seu desejo de possessão para que o mediador sem perda de tempo “copie” esse desejo e passe a desejar seu próprio corpo. Em outras palavras, o sujeito desejante lhe conferirá um tal valor que desapropriar-se dele lhe parecerá escandaloso (Golsan, 2014).
Como exemplo em O Vermelho e o Negro, o desejo de Mathilde pelo seu próprio objeto mediador (o próprio corpo) aumenta à medida que a paixão de Julien por ela se intensifica. E sempre que cede seu corpo a ele, prediz Girard, ela se escandaliza com sua concessão (Golsan, 2014). Assim, a mediação interna é marcada por uma relação de rivalidade, como se Julien e Mathilde competissem entre si pela apropriação do objeto mediador, o corpo de Mathilde.
Os amantes se veem num círculo vicioso em que o desejo jamais é saciado ao alcançar seu objeto, mas gera e alimenta novas frustrações e desejos opostos como obstáculo. A única forma de escapar deste ciclo em que Julien e Mathilde se encontram é interrompendo o próprio ciclo do desejo. (Golsan, 2014)
Esse ciclo é quebrado através da exploração de jogos amorosos de indiferença. Quando Julien finge ser indiferente à Mathilde, o desejo dele não está mais à disposição de Mathilde para ser copiado. Desse modo, Mathilde deixa de regozijar-se com a posse de si mesma e de ser rival e obstáculo de Julien. Paradoxalmente, portanto, é somente a indiferença de Julien ao desejo o que lhe dá acesso ao objeto que cobiça (Golsan, 2014).
Se por um lado os jogos de indiferença realizados por Julien tornam Mathilde menos desejante de si própria, por outro há uma inversão nos papeis de mediador e sujeito na relação. A nova postura indiferente do protagonista faz com que Mathilde o deseje. Nas palavras de Golsan (2014), Mathilde agora, livre de sua autoabsorção, “se volta para um novo objeto, um ‘novo’ Julien – o qual é ainda mais atraente porque parece não nutrir qualquer desejo”.
O indivíduo indiferente possui um elevado poder de atração, uma vez que segundo Girard (2009): “parece sempre possuir esse domínio radiante cujo segredo todos buscamos. Ele parece viver num circuito fechado, usufruindo de seu ser, numa beatitude que nada pode vir a perturbar.”
O desejo como desejo metafísico
Em resumo, Julien parece cobiçar apenas a si mesmo ao pretender ser indiferente. E Mathilde, ao desejá-lo, deseja absorver o ser dele no seu (Golsan, 2014). Para Girard, essa é a verdadeira fonte de todo desejo mimético: cobiçar o que o outro deseja é na verdade cobiçar a sua essência. Girard (2009) expressa essa ideia de maneira sucinta: “O desejo segundo o Outro é sempre o desejo de ser um Outro”. O objeto desejado propriamente dito, tal como uma relíquia para o santo, é tão somente um “meio de alcançar o mediador”, tomado como divino (Golsan, 2014).
É preciso que o indivíduo tenha a dolorosa consciência do seu vazio para que almeje tão desesperadamente a plenitude do ser que parece se encontrar nos outros. Julien, afinal, apenas simula sua a indiferença e, portanto, sua autossatisfação. (Golsan, 2014).
Segundo Girard, estas pretensões vaidosas e imitações de comportamentos frívolos e superficiais são o destino de todos os homens do século XIX. Sendo o século XIX a era da morte de Deus, anunciada por Nietzsche, os homens tomaram o lugar de Deus e alcançaram um grau de autonomia espiritual e autossatisfação digno de uma divindade (Golsan, 2014). Quando as aspirações divinas dos seres humanos terminam em decepção e frustração, eles imaginam que os outros não vivenciaram um fracasso semelhante, permanecendo autossuficientes e plenos de si. Ao desejá-los e cobiçarem aquilo que estes outros cobiçam, eles procuram se apropriar de sua plenitude, de sua divindade (Golsan, 2014).
Nascido de um sentimento de inadequação espiritual, o desejo segundo Girard possui uma natureza “metafísica”, visto ser menos o desejo de possuir um objeto real do que o desejo e absorver, tornar-se um outro. (Golsan, 2014) Ele possui assim um alcance metafísico e não meramente econômico, biológico ou material, pois trata-se menos de ter do que de ser. Menos de agir segundo um instinto físico, como preconizaria a psicologia cognitiva e a neurociência moderna, e mais de se buscar uma completude existencial e interior do espírito, nunca alcançada de fato.
É justamente por nunca se poder alcançar esta completude metafísica que, em O Vermelho e o Negro, a maioria dos encontros sexuais se mostra decepcionante. O que os protagonistas buscam na gratificação física é a satisfação metafísica. Quando não conseguem alcançá-la, o sexo perde seu encanto (Golsan, 2014). Apenas quando os encontros sexuais não são governados pelo desejo metafísico é que o prazer físico pode acontecer. Assim, “no desejo o ‘físico’ e o ‘metafísico’ variam sempre à custa um do outro”. Quanto mais os indivíduos padecem do desejo metafísico – do “mal ontológico”, menos são capazes de desfrutar do prazer físico. (Golsan, 2014)
Referências:
GOLSAN, Richard J. Mito e Teoria Mimética – Uma introdução ao pensamento girardiano. São Paulo: É Realizações, 2014.
GIRARD, René. Mentira Romântica e Verdade Romanesca. São Paulo: É Realizações, 2009.
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