A Violência como Mito Fundador segundo René Girard – Tiago Barreira

Édipo Cego Recomendando seus Filhos aos Deuses (Benigne Gagneraux). Imagem: Wikimedia

As investigações de Girard sobre o desejo mimético não se limitam somente ao campo da crítica literária e psicologia, se estendendo também à compreensão de fenômenos sociais. A teoria do bode expiatório estabelece a violência social gerada pelo desejo mimético exerce um papel fundamental na construção do espaço do sagrado em culturas. Crises e tensões sociais exigem o sacrifício trágico de uma vítima inocente para unificar uma comunidade em conflito. Sobre esta violência sacrificial estão estruturados os mitos fundadores de povos e culturas, estando presente de forma universal no imaginário cultural humano.

Tiago Barreira

No artigo anterior, foram apresentados os principais pontos por trás da teoria do desejo mimético de René Girard, e sua aplicação na compreensão de fenômenos psicológicos humanos presentes na literatura.

Contudo, as investigações de Girard sobre o desejo mimético não se limitam somente ao campo da crítica literária e psicologia, mas se estendem também à compreensão de fenômenos sociais e antropológicos humanos, a uma escala macro. A obra de René Girard que melhor transplanta a teoria do desejo ao campo sociológico e antropológico é A Violência e o Sagrado.

Este artigo constitui uma continuação do anterior, aprofundando ainda mais os estudos sobre teoria girardiana, segundo o abordado na obra Mito e Teoria Mimética, do estudioso de Girard, Richard Golsan.

Conforme já descrito no artigo anterior, o desejo mimético pode ser definido como o desejo de se absorver a essência de um Outro, por intermédio da posse de objetos desejados por esse Outro. Se esse Outro deseja glória e conquistas militares, busca-se emular esse Outro desejando também conquistas militares e a posse de bens conquistados, tal como a aspiração do personagem Julien a ser Napoleão em O Vermelho e o Negro de Stendhal. O objeto desejado, portanto, estaria para esse Outro “assim como a relíquia está para o santo”, sendo uma fonte de ilusões enganadoras sobre coisas da realidade, possuindo um elevado potencial destrutivo.

 

Desejo mimético e mimesis conflitual

É de se esperar, como consequência dessa destrutividade, que o processo de assimilação mimética produza também conflitos no plano social. De fato, para Girard, o desejo mimético opera como um dos principais mecanismos impulsionadores da violência e conflito em uma sociedade.

Quando dois indivíduos possuem o mesmo modelo imitador de Mediação, estes tendem a desejar um mesmo objeto, tornando-se rivais e obstáculos uns aos outros no acesso a esse objeto. Nasce daí o confronto inevitável e a luta entre iguais pelo objeto desejado, em um processo que Girard denomina de mimesis conflitual. O processo de rivalidade da mimesis conflitual faz com que os oponentes, à medida em que se atacam, percam de vista o objeto disputado, concentrando-se somente em afirmar superioridade sobre o outro.

A mimesis conflitual cria a “ilusão de diferença” entre dois rivais, que buscam se afirmar diferentes quando na verdade se igualam tendo o mesmo desejo de imitação. A violência apaga as diferenças de status, hierarquia ou papel social, e os antagonistas se tornam espelhos um do outro.

Nas palavras de Golsan (2014):

“à medida em que se atacam, os antagonistas se tornam meras imagens especulares um do outro. A violência apaga as distinções que perduram entre eles. As diferenças de prestígio social, idade e sexo se vão ou se tornam insignificantes. Essencialmente indistinguíveis entre si, os antagonistas não passam, agora, de duplos violentos.”

Membros da comunidade parecem-se menos seres humanos do que moléculas idênticas que, “numa chaleira, se chocam umas contra as outras repetidamente” (Golsan, 2014). Uma pessoa imparcial, observando a luta de fora, pode concluir que eles estão se tornando cada vez mais idênticos. Mas o mesmo não pode ser dito do ponto de vista dos próprios rivais.

Se a imitação dos outros conduz inevitavelmente à rivalidade e conflito, se todos os homens agem mimeticamente, a humanidade como um todo parece fadada a um círculo apocalíptico de competição e violência. Girard considera, então, que a violência deve encontrar uma válvula de escape, buscando uma vítima inocente substituta.

 

O bode expiatório

Assim, diante de uma situação de crise e violência social, a comunidade escolhe sacrificar uma vítima inocente como bode expiatório, que leva a culpa de toda a confusão social e é tomada como a única responsável pelo desencadeamento da crise. Desse modo, a mimesis conflitual em uma comunidade é substituída por uma mimesis sacrificial. Membros individuais de um grupo conflituoso abandonam a imitação mútua de rivalidade e imitam uns aos outros na escolha alheia de uma vítima, para que reconciliem uns aos outros em favor do ódio a um inimigo comum.

Em geral, indivíduos excepcionais e marginalizados, diferentes física e psicologicamente dos outros, tendem a ser os principais alvos de hostilidade da multidão durante uma crise sacrificial. Entre esses indivíduos se encontram os doentes mentais, os enfermos e os deficientes físicos, uma vez que possuem os sinais de vitimação que os tornam facilmente identificáveis em uma multidão indiferenciada (Golsan, 2014).

Contudo, é possível que indivíduos não-marginalizados, porém diferenciados socialmente da massa, como reis e membros da família real, também sirvam como bodes expiatórios. E ainda, em culturas mais amplas e etnicamente mais variadas, minorias religiosas e étnicas tendem a ser alvos de violência irracional em tempos de revolta social. O antissemitismo é um exemplo óbvio da conversão de uma minoria religiosa em bode expiatório.

A vítima é então acusada pela comunidade de crimes hediondos, como parricídio, regicídio, estupro e bestialismo. O objetivo dessas acusações é a justificação dos atos violentos da comunidade, de cujas práticas violentas são e muito superadas pela maldade atribuída pela vítima.

A violência coletiva das multidões, portanto, é justificada em nome de princípios morais superiores, como um ato santificado por deuses. A violência contra o bode expiatório é santificada; os membros da turba não se veem como indivíduos alvoroçados, mas como “guerreiros celestes” que vingam seu deus (Golsan, 2014). A violência então se torna um ato sagrado.

 

A divinização da vítima sacrificada

Girard salienta que, ao atribuírem suas ações a deuses, os perseguidores estão a caminho de se livrar da responsabilidade de sua própria violência. Portanto, o mecanismo que o bode expiatório desempenha se dá como se o próprio ato de violência fosse ditado e comandado por forças sagradas, na qual a multidão nada mais seria do que mero instrumento para sua realização.

Como consequência dessa responsabilização de forças transcendentes, quando o bode expiatório é sacrificado, com o subsequente retorno da ordem e da diminuição dos conflitos na comunidade, ocorre uma nova transformação (Golsan, 2014). O bode expiatório passa então a ser visto como salvador e cultuado como herói trágico, fundador de uma comunidade. Este se torna herói fundador justamente por ser o fiador desta união social, outrora dividida e ameaçada em dissolver-se.

Girard considera que a vítima sacrificial é, por um lado, uma figura triste e objeto de desprezo, oprimido pela culpa e alvo de todos os tipos de humilhação e violência. Por outro, a vítima torna-se também um objeto de culto, carregando uma aura de veneração quase religiosa. Paradoxalmente, o bode expiatório é tanto uma bênção quanto uma maldição (Golsan, 2014).

 

A violência e o nascimento da cultura

O mecanismo do bode expiatório, portanto, se desdobra em três etapas: 1) O início da rivalidade da mimesis conflitual e guerra de todos contra todos; 2) A escolha de um bode expiatório como meio de canalização do ódio social; 3) A pacificação social e a divinização trágica da vítima. É justamente sobre esse processo conflitual fundado no desejo mimético, Girard afirma, que estão estruturados os mitos fundadores de povos e culturas, estando presente de forma universal no imaginário cultural humano.

O mecanismo do bode expiatório também está ligado ao nascimento de instituições culturais, religiosas e sociais, sendo responsável pela construção do espaço do sagrado na cultura humana. Segundo Girard, ritos sacrificiais administrados por instituições buscam recriar e representar de forma periódica e regular os mecanismos do bode expiatório, como forma de manter a violência fora da comunidade e garantir a ordem social. O sacrifício ritual de vacas e bezerros terminam por cumprir essa função, sendo o sacrifício animal uma representação do assassinato fundador de uma vítima humana (Golsan, 2014). E após a morte animal, observa Girard (1990), o mesmo processo de divinização da vítima ocorre: “o desprezo, a hostilidade e a crueldade dirigidos ao animal […] são substituídos […] por uma demonstração de veneração ritualística”.

O mecanismo do bode expiatório, por fim, se encontra presente de forma marcante no nascimento da tragédia enquanto gênero literário. Girard afirma, como exemplo, que a tragédia está diretamente vinculada à violência, representando no palco a rivalidade e o conflito miméticos, a perda de diferenças e o colapso da hierarquia no seio da sociedade. Com isso, Girard afirma que a catarse pública experimentada em uma peça trágica nada mais seria do que uma sensação vitalizadora e unitiva que a multidão experimenta diante do sacrifício da vítima, da destruição do herói trágico (Golsan, 2014). Em peças trágicas, como Édipo Rei de Sófocles, se fazem presentes todas as etapas do mecanismo do bode expiatório.

 

Conclusão

Em resumo, a concepção de Girard sobre o desejo humano afirma que: 1) o desejo mimético é o traço constitutivo do comportamento humano; 2) A violência é um elemento onipresente na história humana como consequência do desejo mimético; 3) O espaço do sagrado é constituído em uma cultura como forma de administrar a violência gerada pelas culpas e frustrações do desejo mimético.

Girard tende a ver o conflito e a violência como onipresente e intrínseco à natureza do homem. Embora seja possível, através do culto religioso, pôr um fim ao mecanismo da violência e abrir caminho para uma sociedade pacificada, o tom de Girard sobre a história humana é em geral pessimista.  Posteriormente, ao longo da vida, Girard se converteria ao cristianismo, e passaria a vê-lo como a única religião que conseguiria garantir a paz social de modo eficaz e duradouro, ao estabelecer o rito sacrificial do Deus-Homem, representando e canalizando o mecanismo do bode expiatório de forma mais profunda e perfeita do que em ritos sacrificiais de religiões anteriores.

Contudo, Girard nota que os ritos sacrificiais religiosos, por maiores que sejam os seus efeitos atenuantes exercidos sobre a violência, não são capazes de eliminá-los por completo, como pode ser verificado nos casos históricos de perseguição a grupos minoritários, como judeus. Enquanto houver dois desejos humanos iguais por um mesmo objeto, haverá rivalidade e violência em uma comunidade, constituindo um ao outro um “escândalo irreconciliável”.

 

Referências

GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Editora Unesp, 1990.

GOLSAN, Richard J. Mito e Teoria Mimética – Uma introdução ao pensamento girardiano. São Paulo: É Realizações, 2014.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.

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