
O ensaio a seguir busca, pelo prisma da análise literária e da personalidade das personagens, esclarecer sobre as questões do casamento, amor, status social; bem como paixão, ciúme, traição e desejo que aparecem como uma espécie de crítica à superficialidade burguesa da época. Há, de igual forma, o contraste existente entre o relacionamento de Anna Karênina e Vronsky com o de Levin e Kitty. O tema do matrimônio é uma constante no romance de Tolstói e aparece em diversos personagens paralelos na mesma obra. Como o próprio romancista russo inicia seu livro dizendo: “todas as famílias felizes são iguais entre si, já as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”.
Autora: Naida; Tradução: Eliseu Cidade
Leon Tolstói criou várias personagens femininas, cada qual diferente e única à sua maneira, ambas falhas e virtuosas – elas são socialites, religiosas e cheias de devotos piedosos, sedutoras, matriarcas, donzelas jovens que exploram. Dentre todos eles, sua personagem feminina mais famosa provavelmente é Anna Karenina. Talvez ela seja a personagem mais famosa de todas e seu nome tem a honra de ser o título de seu romance mais famoso. O romance Anna Karenina teve muitas adaptações para o cinema, balés e óperas.
Contudo, a maioria deles foca no romance apaixonado entre Anna Karenina e Alexei Vronsky. Pouquíssimos criadores de artes visuais, dão um tempo significativo ao romance que ocorre ao longo de Anna – aquele entre Kitty Scherbatskya e Konstantin Levin. Parece que, na falta de uma atração escandalosa e apaixonada, o amor lento e calmo que se desenvolve entre Kitty e Levin parece obsoleto. No entanto, na minha leitura do romance, sempre foi o relacionamento deles que eu, pessoalmente, admirei.
Os muitos tipos de amor
“Eu acho… se é verdade que há tantas mentes quanto há de cabeças, então há tantos tipos de amor como existem de corações”
Anna Karenina – Leon Tolstói.
O romance de Tolstói é, a depender da edição, uma exploração longa de 800 a 1000 páginas de conceito social de amor, casamento e amor individual. Ambas das suas principais personagens femininas, Anna e Kitty rompem as convenções sociais em busca de amor que as preenche como seres humanos e no qual elas e seus homens amados podem florescer e fazer um ao outro feliz. Ao longo do romance, há um contraste visível entre autenticidade do amor que vem do coração ou o casamento que é feito para o prestígio social e nossa riqueza.
Contudo, suas duas heroínas se rebelam contra a sociedade que vê o amor como de importância secundária, de muitas formas diferentes. O amor de Anna e Alexei é passional, amor consumidor – queima como fogo e os dois aparentemente não têm opções a não ser liberar esse fogo um ao outro. O amor deles não é pejorativamente julgado, mas ao longo do tempo, os ciúmes, as expectativas, mesmo o egoísmo, a inabilidade de escolher e deixar para atrás certos apegos, trazem a destruição e a tragédia para ambos Vronsky e Karenina.
Um leitor pode se perguntar então, se foi amor, ou se ambos viram um no outro um momento de liberdade, liberação das expectativas sociais e vida sem amor. Ou talvez foi a combinação de ambos. Mas a paixão deles não os feriu, mas, sim, suas famílias, incluindo o filho de Anna, Serioja. O romance de Kitty, no entanto, é inteiramente diferente, a situação dela talvez seja mais fácil pelo fato de que ela era solteira. Levin, assemelha-se a própria vida de Tolstói, estava habitualmente distante da sociedade, preferindo estar no campo, administar a propriedade e trabalhar com seus camponeses. Seu amor por Kitty era profundo e forte, ela representava para ele um ideal, vendo-a como uma espécie de anjo, uma divindade descida à terra.
Apesar de sua proposta, ela foi recebida com uma rejeição. Kitty naquela época estava desfrutando da sociedade e estava atenta em outro homem. Com coração partido, ele continuou com sua vida no campo. Kitty, por causa de seu próprio desgosto foi a um spa com grande mudança em seu coração e mente. A desilusão amorosa e o tempo sozinha a fizeram ver a verdade – ela não era uma sedutora, e nem tampouco uma socialite. A epifania de autoconsciência a fez compreender que ela poderia viver apenas com autenticidade e honestidade – firmando-se no seu terreno e seguir o que ela verdadeiramente desejava e o que seu coração realmente queria. A transformação de Kitty – de uma curiosa donzela que buscava afirmação dos outros para uma mulher que estava certa do que desejava na vida -, foi também enxergar valor em Levin e não no homem frequente, desleal e antiético que ela encontraria nos bailes.
O coração de Levin estava cheio de amor, e ele vencendo toda vergonha e orgulho, pediu novamente pela mão de Kitty. Humilhado pela segunda vez, Kitty aceitou. O amor entre Kitty e Levin, embora faltando de paixão e drama que Anna e Vronsky tinham, era o retrato do amor puro. O amor que é lento e altruísta. A longa espera de Levin e a força de Kitty em admitir seu próprio erro, que, demandou profunda autoconsciência, fé e amor generoso pelo outro. O amor deles, apesar de seus outros problemas, foi aquele que perdurou e se tornou maior e mais forte com o tempo.
O amante é aquele que espera
“Estou apaixonado? – Sim, desde que eu esteja esperando. O outro nunca espera. Às vezes eu faço o papel daquele que não espera; eu tento me ocupar onde quer que seja, para chegar tarde; mas eu sempre perco nesse jogo. O quer quer que seja que eu faça, eu me encontro lá, sem nada para fazer, pontual, mesmo antes do tempo. A identidade fatal do amante é precisamente esta: Eu sou aquele que espera.
“A Lover’s Discourse: Fragments“, Roland Barthes
A impaciência e a miopia são frequentemente companheiras. A impaciência, apresenta frequentes expectativas amigáveis, medo e necessidade de controle. Já as expectativas, medo e necessidade de controle em numerosas ocasiões causam feridas letais nos relacionamentos. Esses fatores consomem o outro muito rapidamente, a doçura da liberdade e sua inocência acabam se tornando uma prisão. O amante é paciente porque o amante é confidente e seu amor é porque o amante ama a busca do outro, não a busca de um prazer pessoal. O amante é paciente, pois o amante tem fé e não desiste com o desconforto e desagradáveis batidas na porta. Levin espera por Kitty crescer e vir junto dele – apesar da rejeição dela, ele nunca observou outras mulheres, e mesmo assim, se aproxima novamente dela. Como um observador que, contra as razoáveis sugestões de todos, não aceita que sua visão seja falsa, então faz o amante, com fé na luta por seu amor, independentemente de qualquer rumor e conselho prático de desistir. Não é só Levin que deve ser paciente e esperar pela sua amada, Kitty deve fazer o mesmo.
Profundamente religiosa e devotada, ela se casa com um homem que não possui fé, que luta com isso e frequentemente se sente separado das pessoas ao seu redor. Kitty, contudo, não o instiga, mas com seu comportamento, devoção, profunda compaixão por todos e força, ela conduz Levin a fé. E não foi uma grande e forte visão como muitos pensam que seria – não levou nada além de um campo e um céu aberto. É frequente nos romances de Tolstói, a mulher ter a função de conduzir seus homens a fé, em direção a uma existência dedicada e significativa.
Da força de Kitty, Tolstói diz: “ Na vista do homem doente, Kitty sentiu piedade dele. E a piedade em sua alma de mulher não produziu nada dos horrores e escrúpulos que fez em seu marido, mas uma necessidade de ação, de encontrar todos os detalhes de sua condição e ajudar com eles. Como ela não tinha a menor dúvida que tinha de ajudá-lo, então ela não tinha dúvida que era possível, e ela pôs-se a trabalhar de uma vez. Aqueles mesmos detalhes, o mero pensamento dos quais horrorizaram seu marido, de uma vez atraiu a atenção dela”.
Kitty, nesse sentido, tem que esperar pelo seu marido para juntar seu mundo de devoção, significado e beleza, e assim esperar por ele deixar essa existência precedente cheia de irritabilidade, dúvida, medo e às vezes niilismo. Mas isso não era a única coisa que Kitty tem que esperar – Levin luta para se conectar com seus filhos, ele acha difícil amá-los.
No final do livro, Levin encontra em seu coração, sentimentos e amor por seu filho: “O bebê foi tirado do banho, encharcado com água, enrolado em toalhas, secado, e depois de um grito estridente, entregado à mãe. Bem, eu estou alegre que você está começando a amar ele, disse Kitty ao seu marido, quando ela havia se acomodado confortavelmente no seu lugar usual, com o bebê no seu peito. Eu estou alegre! Isso começou a me afligir. Você disse que não tinha sentimentos por ele. Não; Eu disse isso? Eu apenas disse que estava desapontado. (…) Não como ele, mas no meu próprio sentimento; eu tinha esperado mais. Eu esperava mais. Eu esperava que uma onda de novas emoções prazerosas viriam como surpresa. E então ao invés disso – desgosto, piedade …’ Ela escutou antentamente, olhando para ele sobre o bebê, enquanto ela recolocava nos dedos esguios os anéis que havia tirado enquanto dava banho em Mitya. — E, acima de tudo, por haver muito mais apreensão e pena do que prazer. Hoje, depois daquele susto durante a tempestade, entendo como o amo.”
Ambos Kitty e Levin crescem durante seu relacionamento, frequentemente, sutilmente, influenciando ou desencadeando o crescimento de um ao outro, ambos devem pacientemente, sem julgamentos esperar pelo outro, acompanhado por profunda fé do outro em seus corações. O relacionamento de Kitty e Levin não é perfeito, mas em toda dificuldade que vinha no caminho, o amor e ligação deles era mais importante para ambos do que as expectativas que eles tinham de cada um, do que a necessidade maníaca que consomem um ao outro. Kitty e Levin, então, se tornam dedicados não só um ao outro, mas de qual amor eles compartilhariam, prometendo, nunca permitir que fosse rompido.
No final, eu devo compartilhar a seguinte citação de Ann Patchett: “Quando eu tinha 21, eu li Anna Karenina. Eu pensei que Anna e Vronsky eram almas gêmeas. Eles estavam profundamente apaixonados e portanto tinham que estar juntos. Eu achei Karenin cruel e opressivo por manter sua esposa longe de seu destino. Levin e Kitty e seus camponeses me entediavam. Eu li essas partes rapidamente. Último ano eu completei 49, e eu li o livro novamente. Nesse período, eu adorei Levin e Kitty. Eu adorei o fato de que depois que ela recusou sua proposta, ele esperou por longo tempo para reparar seus sentimentos feridos e, então, pedi-la de novo em casamento. Eu adorei que ela tivesse crescido nesse ínterim e agora me sentia grata por uma segunda chance. Anna e Vronsky me entediavam. Eu pensei que Anna era egoísta e estridente. Meu coração se compadeceu do pobre Karenin, que tentou ser decente. O que a literatura me ensinou sobre o amor? A literatura (juntamente com a experiência) me ensinou que o amor significa coisas diferentes em diferentes pontos de nossas vidas, e que muitas vezes, à medida que envelhecemos, gravitamos em torno de enredos mais calmos e gentis e os descobrimos mais ricos do que pensávamos originalmente ser”.
Artigo publicado originalmente por Naida no blog Orphic Inscendence.