O conflito ciência e religião: origens e implicações – Eliseu Cidade

Fonte: cittadellascienza.it

 

O presente ensaio propõe analisar os impactos da ciência moderna e tecnologia contemporânea na fé cristã e nos debates teológicos de forma geral. Serão investigadas as origens modernas do conflito entre ciência e religião, como propaganda difundida nos centros acadêmicos e no pensamento ocidental, de que a teologia e as descobertas científicas devem caminhar separadamente sem interação entre seus saberes, dado que a teologia seria uma inimiga do progresso científico. Como contraponto a essa visão, apresenta-se a conciliação feita por parte de teólogos, cientistas e religiosos ao longo da História, cuja tentativa era não dissociar o conhecimento divino do da natureza, mas contemplar ambos como uma unidade, que embora tenham diferença de métodos, abordagens e formulação de seus questionamentos, ambos possuem o mesmo objetivo, ou seja, o de tornar a vida humana melhor através das verdades descobertas ou reveladas.

Eliseu Cidade

O CONFLITO CIÊNCIA E RELIGIÃO: ORIGENS E IMPLICAÇÕES

Ao adentrar nos temas relativos ao domínio da ciência e da religião no século XXI, a reação mais usual é certo desconforto com a conciliação das teses respectivas de tais saberes. Nesse sentido, parece até intuitivo separar aquilo que é natural do sobrenatural, ainda que ambos estejam tratando do mesmo objeto com enfoques distintos. É mister analisar que a ciência objetiva alcançar a investigação da realidade física a fim de compreender os fenômenos naturais bem como seu funcionamento — tanto na escala macro e microcósmica — que são úteis ao conhecimento do universo material. Já os fenômenos e realidades que envolvem a escala dita suprassensível, a busca das verdades últimas e mais abstratas, e até mesmo questões de moralidade ficam sob a égide do aspecto religioso, e para ser mais preciso, espiritual. Em sua peça Hamlet, William Shakespeare afirma que existem mais mistérios entre o céu e a terra daquilo que imagina a nossa vã filosofia. Isso evidencia a postura de espanto humano diante do conhecimento ao perceber que há muito mais realmente a se conhecer do que aquilo que já é conhecido e, assim, a ciência está em permanente desenvolvimento, modificação e sofisticação dos seus conceitos, teorias e paradigmas.

De forma geral, a ciência tal qual conhecemos hoje começou com Galileu Galilei através do método científico preconizado por Francis Bacon que se propunha a investigar através de raciocínio indutivo e atestar por meio da empiria os fenômenos observáveis. Da mesma forma, Isaac Newton empreendeu avanços na mecânica celeste por meio de fórmulas matemáticas a partir dos avanços da álgebra árabe e cartesiana, bem como da geometria euclidiana. O problema moderno da ciência concentra-se na corrente filosófica do cientificismo ou cientismo — que valoriza o saber científico como o único fidedigno para se chegar ao conhecimento e à busca da verdade — e, por seu viés materialista, o conhecimento obtido é apenas o da physis, a realidade imanente natural. Nesse sentido, é bastante recorrente cientistas e até filósofos ateístas negarem quaisquer conhecimentos que a ciência ainda não tenha confirmado. Não obstante, a dificuldade de conceber a fé como um meio de conhecimento é o principal fator que gera o mítico conflito entre fé e religião, uma vez que majoritariamente o que se aprende passa por experiências de fé, pois nem tudo é devidamente demonstrável em todas as suas etapas como ocorre, por exemplo,  na matemática. ¹

Galileu em sua obra Il Saggiatore apresenta o universo como um livro aberto escrito em linguagem matemática e formado por figuras geométricas; e o homem, para compreender a realidade, deveria interpretar a natureza por meio de seus símbolos. Em nenhum momento há separação entre fé cristã e ciência, pelo contrário, ele afirma que o entendimento requer comparação simultânea das descobertas da natureza com o que está revelado nas Sagradas Escrituras. Deus — o Criador universal e o princípio inteligente — está comunicando à humanidade as verdades eternas, tanto mediante as Escrituras quanto a natureza, ou seja, são formas distintas de revelar o mesmo. Dado que Deus não pode se contradizer em seus atributos e tenha revelado sua majestade e verdade atemporais, ipso facto a bíblia, imbuída de simbologias e descrições metafóricas, não pode contrariar a lógica científica e os sentidos humanos. ²

Mas afinal, de onde surgiu o conflito ciência e religião? Factualmente trata-se de um mito em grande medida propagado por duas personalidades científicas norte-americanas: Andrew Dickson White e John William Draper. Nas palavras de Ronald Numbers:

White, jovem presidente da Universidade de Cornell, passou acreditar no conflito entre religião e ciência após críticos religiosos o taxarem de infiel por, como ele dizia, tentar criar em Ithaca “um refúgio para a Ciência – onde a verdade deve ser buscada pela verdade, não esticada ou decepada precisamente para se moldar à religião revelada” (NUMBERS, R., p.16).

Durante o século XIX, perante a forte influência do positivismo, a religião passa a ser vista como uma ameaça pela ciência para o seu pleno progresso. A partir de então, os círculos de debates científicos passaram a desprezar teólogos e homens de religião tratando-os como fanáticos e intrometidos que deveriam deixar os assuntos científicos apenas aos homens de ciência. Segundo Alister McGrath, o objetivo era incentivar a ciência per fas et nefas para pôr em perigo a posição da Igreja Católica e a consolidação do “cientista profissional” como o único capaz de discutir e compreender assuntos científicos, renegando assim as autoridades eclesiásticas e proclamando-as como inimigas da ciência. Essa visão equivocada, baseada numa falsa superioridade dos valores e verdades científicas, tornava a religião restrita às crenças enquanto a ciência atuaria em nome do “progresso”, ainda que de forma subversiva, tornando-as assim irreconciliáveis. A seguir, o discurso do físico Irlandês John Tyndall expressa o florescimento da propaganda antirreligiosa nas associações científicas:

A inexpugnável posição da ciência pode ser descrita em poucas palavras. Nós reivindicamos da teologia, e arrancar-lhe-emos o domínio completo da teoria cosmológica. Todos os esquemas e sistemas que infringem no domínio da ciência devem, contanto que assim o façam, submeter-se ao seu controle, e abrir mão de todo pensamento de controlá-la. Agir de outra forma provou ser desastroso no passado, e é simplesmente insensato nos dias de hoje (NUMBERS, R. p.20).

Fonte: Ruizhealytimes.com

 

UM OLHAR TEOLÓGICO: RELAÇÃO ENTRE A FÉ E O CONHECIMENTO RACIONAL

“Busque obter sabedoria; use tudo o que possuir para adquirir entendimento” (Provérbios 4:7 – NVI). A Bíblia, especialmente em seus livros sapienciais, expressa profunda e indissolúvel relação entre conhecimento da fé e da razão. O conhecimento é a via pela qual se pode conhecer alguns dos infindáveis mistérios da glória de Deus manifestada, e que à época foi dado ao povo de Israel através da revelação de Yahweh. O livro deuterocanônico da sabedoria explicita que Deus também se dá a conhecer por intermédio da natureza e, assim, o homem, através da sua inteligência, é capaz de conhecer o universo, os animais, as plantas, a posição dos astros e os elementos. Esse entendimento era comum entre os antigos, o que muitas vezes coincidia com os estudos das ciências naturais; era o próprio saber filosófico. Nesse sentido, ao raciocinar epistemologicamente sobre a natureza, é possível reconhecer seu Criador. “Pela grandeza e beleza das criaturas, pode-se, por analogia, chegar ao conhecimento do seu Autor” (Sabedoria 13:5). 

Na encíclica Fides et Ratio, o papa João Paulo II enaltece o papel da razão enquanto instrumento de se chegar à verdade, todavia, adverte que sua plenitude só pode ser alcançada pelo horizonte mais amplo da fé que permite a descoberta do sentido profundo e oculto de todas as coisas. A fé e a razão coexistem mutuamente, enquanto aquela necessita da razão para que seu objeto seja compreensível, esta, ao se deparar com seus limites naturais intrínsecos, deve admitir a necessidade da fé. ³

Como afirma São Tomás de Aquino, o “lume do intelecto”, considerado virtude finita, possui sua limitação quando se trata de apreender a essência da realidade dos objetos que percebemos e investigamos. Desse modo, o homem necessita do que ele chama de “lume sobrenatural”, em outras palavras, a participação da mente humana na mente divina para alcançar certos conhecimentos limitados, e esse dom sobrenatural seria o intelecto (intellegere: ler internamente). Ademais, o homem categoriza as certezas através das verdades da razão e, por isso, a ciência humana é chamada demonstrativa, enquanto a ciência divina seria caracterizada pela verdade através da intuição ou da percepção imediata e simultânea da realidade. Assim, a relação da teologia com a ciência deve ser de complementaridade, nunca de oposição.

NOTAS

 ¹ THOMAS, J.D. Razão, Ciência e Fé. 2 ed. São Paulo: Editora Vida Cristã, 2001.

² CREASE, Robert. As grandes equações. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2011.

³ JOÃO PAULO II, Papa. Encíclica Fides et Ratio.  Disponível em: Fides et Ratio (14 de setembro de 1998) | João Paulo II (vatican.va)  Acesso em:20/01/23.

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.

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