O cientificismo e a abolição do homem – Eliseu Cidade

Fonte: sevillaworld.com

 

Quão perigoso pode ser a ideologia cientificista ao considerar a ciência como a única fonte para obtenção de conhecimentos válidos? A ciência realmente tem o poder de tornar os homens subservientes a ela, e ao invés de ser instrumento útil nas mãos do homem, ele próprio poderia se tornar um instrumento nas mãos da ciência e dos cientistas? Clive Staples Lewis em sua obra Abolição do Homem demonstra como a ciência pode ser utilizada como instrumento de poder e manipulação por parte de tecnocratas, políticos e homens poderosos para conduzir a sociedade a seu bel prazer. A influência da psicologia behaviorista, a visão mecanicista de ciência e o dualismo mente-corpo foram chaves para a farsante ideia de eterno “progresso” da humanidade.

Eliseu Cidade

O sucesso da ciência se deve em grande parte a sua restrição em descrever os fenômenos naturais, já que seria impossível ela per se compreender a realidade de maneira ilimitada. Por exemplo, os estudos científicos sobre a música clássica se concentram em seus efeitos sobre o sistema nervoso, as reações e sensações fisiológicas do ouvinte, e de igual forma aborda a propagação física das ondas sonoras, mas não abrange temas como a beleza, a arte e a transcendência, posto que estão para além de sua esfera de atuação imediata. Quando se debate o cientificismo — que apresenta uma imagem mecanicista do mundo —, deixa-se de lado o potencial de livre arbítrio humano para atuar com liberdade em suas decisões intencionais, e assume-se a premissa do homem como um ser autômato.

A ciência moderna se inicia a partir de uma criação do universo ordenada por Deus. É a partir das teses iluministas que a supervalorização da razão culminará no descarte dos conhecimentos teológicos para obter respostas válidas. A ciência, então, vai adquirindo papel de critério de validade universal acerca da natureza da realidade física e condição sine qua non do progresso humano. Essa reação era acompanhada de otimismo por parte dos intelectuais da época ao afirmarem que a ciência subsistiria por conta própria. Entretanto, os críticos aos critérios de racionalidade concebidos na modernidade afirmam que, sem uma base de sustentação, a ciência entraria em descrédito.

Em sua obra A Abolição do Homem, CS Lewis descreve o imenso poder que o homem possui sobre a natureza por conta de seus empreendimentos científicos, mas adverte que esse poder somente é exercido por alguns homens, isto é, os mais poderosos — que utilizam a natureza como um instrumento para seus próprios fins. Os homens do futuro, segundo Lewis, teriam menor poder sobre si mesmos, já que os manipuladores e planejadores estariam entre os que realmente teriam algum controle efetivo. Lewis argumenta que, à medida que o homem conquista novos poderes, esses serão exercidos sobre ele mesmo. Portanto, há o desempenho favorável às descobertas científicas e soluções de problemas humanos, e em contrapartida à criação de novos entraves, por exemplo, o controle sobre as mentes e os corpos.

Ao longo da história recente — em especial a partir do século XIX com a guinada da psicologia behaviorista —, houve a tentativa de exercer poder e soberania sobre a sociedade de massa por meio de pesquisas laboratoriais para averiguar a resposta aos estímulos e condicionamento, como os experimentos dos cachorros de Pavlov, experimento com o pequeno Adler, a caixa de Skinner e assim por diante. Lewis cita a eugenia, a manipulação pré-natal e a pedagogia como instrumento da propaganda como letais ao espírito humano, consequentemente retirando-lhe a liberdade. A ruptura das tradições e valores que trouxeram o homem até aqui nada mais é do que a ruptura com o próprio homem em última instância. Em seus termos, seria ir contra a “lei natural”. Assim, reduzir os valores humanos e juízos pessoais a meros fenômenos naturais, resultantes dessa concepção mecanicista de mundo, é apenas o pretexto para o pleno condicionamento por parte dos manipuladores que a seu bel-prazer estarão aptos a moldar os indivíduos.

Sem dúvida, o grande perigo do século XXI é o controle sobre a consciência humana que será alvo dos projetos de poder do Estado em conjunto às tecnologias científicas. Assim, a partir da visão pessimista de que o homem é incapaz de decidir por ele mesmo, já que é totalmente moldado por seu ambiente, ele passaria a se resumir ao funcionamento de hormônios, neurotransmissores, reações bioquímicas e algoritmos. A tecnologia seria o meio de implementação de uma espécie de homem artificial, promovendo a queda do homem natural, civilizado e tradicional e, assim, gerar um ser projetado por tecnocratas como ocorre na distopia Admirável Mundo Novo. O processo de abolir o homem não é recente e é usado, por exemplo, como método pelas diferentes correntes ideológicas como fascismo, comunismo e nazismo que só se diferenciam nas estratégias de aplicação. CS Lewis compara a atividade da ciência aplicada à bruxaria, estabelecendo que ambas buscam subjugar a realidade aos desejos humanos e esse domínio mágico sobre o controle da natureza custaria, em última análise, o próprio valor das vidas humanas.

Ainda que se tenha discutido a ênfase na ciência moderna e contemporânea em mimetizar as capacidades e potenciais humanos, tal como a Inteligência Artificial ao reproduzir em máquinas, computadores e robôs operações lógicas baseadas no funcionamento do cérebro, o homem jamais poderá se resumir a um modelo de “máquina pensante”. De acordo com o filósofo italiano Enrico Berti, o pensamento é por si mesmo uma forma de vida, não podendo ser feito por outros, por conseguinte sendo uma atividade autônoma e independente, não artificial e que possui iniciativa própria.

Aristóteles distingue os termos Physis (Φύσις), a natureza, de Techné (τέχνη), a arte a fim de diferenciar os corpos naturais dos artificiais. Enquanto os naturais seriam aqueles que possuem em si o princípio do movimento, os artificiais — que são inventados pela técnica através da intervenção humana — não podem retornar a seu estado original, por isso não são naturais, mas antes produzidos a partir de um princípio, neste caso a própria inteligência humana. Nesse sentido, a tecnologia digital assume seu caráter mecânico justamente por não ser capaz de se autoprogramar, mas necessitar de uma inteligência humana que, através de uma premissa ou raciocínio inicial, a tenha gerado para que, por aprendizado de deduções lógicas, realize sua tarefa. Essa distinção pode ser facilmente compreendida com as palavras nous (νοῦς) cujo significado é intelecto/inteligência e é capaz de apreender pelos princípios, enquanto o termo episteme (ἐπιστήμη), vastamente traduzido como ciência, é a faculdade de deduzir as etapas finais por meio da demonstração. Assim, a tecnologia deve ser sempre pensada como algo complementar ao trabalho humano, sendo resultado de séculos de avanços científicos, mas nunca como substituição ao valor inerente do ser humano.

O conceito da cognição estendida aborda as capacidades mentais como muito além dos corpos, não como simplesmente algo reduzido à fisiologia cerebral, mas, sim, que inclui aspectos do ambiente físico e social em que o indivíduo se encontra conectado. Os processos mentais de pensamento e memória não estão isolados, porém amplamente conectados com o ambiente externo que interage com outras mentes, sendo essas participantes do engajamento com o mundo ao redor.


A ciência desenvolvida ao longo de séculos resultante de exaustivos trabalhos intelectuais serve ao mundo não só como legado de sua inteligência, mas como novas maneiras de superar os desafios existentes. O homem sempre buscou entender e conhecer a si mesmo e superar seus próprios limites, seja através da ida à lua, do design de robôs e humanoides, da descoberta de exoplanetas, de novas tecnologias capazes de superar doenças, deficiências, problemas ecológicos e promover a automatização da vida cotidiana. Diante dos novos cenários, o homem tenta substituir Deus por uma tecnologia, uma máquina híbrida, um algoritmo, ou seja, por uma espécie de elixir capaz de fornecer poderes sobre a natureza em busca da tão sonhada imortalidade e divindade.

Destarte, a principal conquista do século XXI não será o domínio supremo sobre a vida humana e a superação de suas limitações biológicas, sejam elas físicas ou cognitivas, mas o reconhecimento do Criador como fonte de iluminação e inteligência, tanto do intelecto quanto da criatividade humana no domínio da técnica e manipulação da natureza para seu próprio progresso. O grande desafio está na superação da dualidade da separação humana de Deus — através da remissão salvadora de Jesus Cristo — a fim de fazer o homem retornar ao estado de comunhão original do Éden, resgatando a unidade entre Deus e o homem. Enquanto o homem estiver separado de seu Criador, as descobertas e superação de seus limites consistirá em uma busca insaciável, ilusória, autodestrutiva e autossuficiente. Uma das principais características da essência humana está justamente no relacionamento com Deus e na possibilidade de viver a transcendência espiritual como parte de sua missão terrena. Assim, o homem, ao buscar aquilo que está para além de si mesmo, não pode se reconhecer sem a parte divina integrante de seu ser.

REFERÊNCIAS

POLKINGHORNE, John. O debate sobre ciência e religião. Faraday Papers. Disponível em: Microsoft Word – Faraday Paper 1  [Polkinghorne]_PORTUGUESE_MARCH-2.doc (cam.ac.uk) Acesso em: 20/01/23.

TRIGG, Roger. A Ciência precisa da Religião? Faraday Papers. Disponível em: Microsoft Word – Faraday Paper 2 [Roger Trigg] PORTUGUESE_MARCH-4.doc (cam.ac.uk) Acesso em: 20/01/23.

BERTI, Enrico. Novos estudos aristotélicos volume I. São Paulo: Edição Loyola, 2010.

 

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