A Era do Transumanismo e a Imago Dei – Eliseu Cidade

Fonte: Alpha Coders

 

 

De que forma o ideal do transumanismo é capaz de alterar a vida humana e seu destino? Seria a tecnologia e a ciência um meio de o homem alcançar a tão sonhada divindade e controlar seu próprio destino? A vantagem humana é a Imago Dei, ou seja, somos os seres mais completos por possuirmos o atributo da racionalidade e da inteligência dados por Deus; somos cocriadores da realidade, mas ao mesmo tempo, estamos sujeitos ao poder da divindade, pois todo poder humano é limitado e, sendo seu ser imperfeito, pode-se utilizar do bem e do mal, uma vez que a dualidade humana é um estado advindo desde a queda adâmica.

Eliseu Cidade

Antes de abordar propriamente o assunto do transumanismo, através da criação de humanoides e ciborgues, que já aparecem com algum destaque nos debates científicos, midiáticos e tecnológicos, é preciso tecer algumas considerações prévias presentes nas Escrituras. No relato de Gênesis, quando Adão e Eva são colocados no jardim do Éden, Deus oferece liberdade para que comessem de qualquer árvore do paraíso, exceto a árvore do conhecimento do bem e do mal. A serpente persuade Eva de que se comesse dessa árvore, ela não morreria, mas seria como Deus. As consequências do pecado original se fazem presentes a partir do momento dessa decisão e o homem perde sua unicidade divina, vivendo na dualidade de uma comunhão divina inicial rompida, não só com Deus, mas também com a própria criação e seus semelhantes. Como os desejos e inclinações humanas passam a ser desordenados e ter influência do mal, automaticamente surge a necessidade de ética, moralidade, salvação do homem, valores religiosos et coetera. De que adianta ter acesso à árvore do conhecimento do bem e do mal, possuindo o entendimento distorcido e enganoso do bem e do mal? A partir desse momento, a humanidade passa a depender de um salvador que seja o redentor das almas.

A despeito da queda promovida pelo pecado original, o homem contemporâneo ainda tende para a indiferença moral ocasionada pela vontade de exercer o domínio e garantir suas necessidades materiais. Nesse sentido, a perfeição humana é vista como meta a ser alcançada através da força de vontade e evolução dos conhecimentos. Percebe-se aqui a natureza humana caída repetindo seu equívoco gnóstico de possuir o devido esclarecimento do bem e do mal, além de possuir o conhecimento para alterar a realidade caótica e malfazeja. Todo o arcabouço utilizado como engenharia social, psicológica, biológica e política seria o recurso empregado na condução dos humanos para sua condição de perfeição, fortemente embasado na crença do progresso ao longo do tempo histórico. Daí percebe-se a profunda crença no domínio pleno da tecnologia que, quando motivada por convicções ideológicas, pode causar consequências deletérias, a exemplo da própria eugenia baseada na tentativa de evoluir e atingir a perfeição biológica por meio da melhoria do pool gênico. Esse aperfeiçoamento humano levaria, em última instância, à superação do gênero humano, e portanto, criando o que convencionalmente se chama de “pós-humano”, isto é, seres novos e superiores criados a partir de humanos.

Os transumanistas acreditam que a ciência, a tecnologia, o conhecimento e a razão são chaves para a superação das limitações humanas tanto a nível físico como cognitivo. A manipulação do DNA pode ser utilizada para minimizar doenças, retardar o envelhecimento e eliminar gradativamente doenças fatais. Um dos grandes planos não é só promover a longevidade, mas chegar à imortalidade. A intervenção tecnológica por meio de seres híbridos  e modelos cérebro-máquina aparece como a vanguarda de uma nova era de perfeição física e cognitiva caracterizada pela supremacia das habilidades humanas. Há estreita correlação da futura realidade com o conceito de übermensch (super-homem) cunhado por Friedrich Nietzsche, o que seria o estágio de uma nova concepção de homem que eternamente está se superando, a partir da reinterpretação de seus próprios valores. Através desse processo, a construção da vida humana estaria completamente desvinculada das tradições e baseada na vontade de poder. 

É fato que o transumanismo considerará a natureza imperfeita do homem como um mero mito religioso do passado, uma vez que a condição transformadora da natureza através da criatividade humana seria capaz de lhe garantir um futuro imortal. Assim, a tecnologia se mostra como um meio de salvação para os humanos superarem os limites de sua biologia. E qual seria a consequência imediata disso? A suposta aquisição da divindade — aquilo que Yuval Harari denomina homo deus — a partir da convicção do discernimento do bem e do mal, assim como a autossuficiência de guiar suas próprias ações com o triunfo da técnica e sem o intermédio de um Deus onipotente. Ao meditar no Salmo 82:6 — “Vós sois deuses, e todos vós filhos do Altíssimo” —, conclui-se que a condição para ser deuses é justamente a participação no ser de Deus, posto que ele é a origem de todas as coisas e o princípio de identidade do homem, sem o qual ele jamais poderá se conhecer. Essa autossuficiência do transumanismo exclui o fato de sermos “filhos do Altíssimo” ao não reconhecer que a capacidade de criação, obtenção de domínio, compreensão pela inteligência são atributos que foram dados ao homem por Deus e, por isso mesmo, ele tem um lugar especial na criação divina.

Quando a Escritura afirma que fomos feitos à imagem e semelhança divina, na realidade, o correto é que somos a sombra do Criador, conforme a tradução do vocábulo original hebraico tselem. Portanto, ao ser a sombra, o homem é capaz de manifestar o Criador através dele sem, no entanto, jamais poder ocupar o lugar divino. O homem só pode ser comparado à divindade, caso o referente seja os deuses mitológicos gregos conhecidos por seus poderes e imortalidade, porém, sem jamais serem considerados perfeitos e virtuosos. Por último, o grande erro do transumanismo será a substituição de Deus, encarnado na pessoa de Jesus Cristo, pela tecnologia, razão e criatividade. 

A TRANSGRESSÃO ADÂMICA E A REDENÇÃO DIVINA

A criação do homem por Deus possui uma característica especial que foi o livre arbítrio concedido por Ele. A autonomia foi dada para que o homem tivesse liberdade de escolher ou não seguir seu Criador e, assim, a partir das próprias leis naturais do universo criado, o homem iria gradativamente se desenvolvendo segundo essas mesmas leis. Todavia, o pecado original rompe definitivamente com a plena comunhão do homem com Deus e, portanto, em vez de ter plena liberdade a partir da direção divina, tem-se a corrupção moral advinda do pecado, causa primeira do desvio humano de sua essência eterna ao ser tentado pelas paixões malignas. A queda deve ser vista como um afastamento progressivo e deliberado do homem para com Deus e ela continua atuando desde o Jardim do Éden –– fonte primeva da raça humana — até os empreendimentos transumanistas que visam substituir Deus pela tecnologia em nome do progresso. Esse distanciamento nada mais é do que o orgulho nascente no coração do homem que é a fonte da idolatria, colocando o homem como agente da criação e não Deus, como afirma Protágoras, Homo omnium rerum mensura est (o homem como medida de todas as coisas)

Outro simbolismo da queda é o surgimento da dualidade, resultado natural da separação, e a fragmentação com a essência divina. A unidade está na pessoa de Adão como uma manifestação do dom sobrenatural de Deus que é a vida eterna e o domínio sobre os demais seres terrestres. É nesse sentido que a serpente, conhecida no esoterismo como Ouroboros, a serpente ou dragão que morde a própria cauda, aparece como uma figura ambígua, um animal astucioso e perspicaz, que também está relacionado à sabedoria, porém, à sabedoria enganosa e imperfeita de fornecer o conhecimento divino do bem e do mal impossível de ser abarcado pelo homem. A partir desse momento, surge a necessidade da redenção a fim de restaurar a unidade que havia sido perdida. 

O pecado original passa aos demais homens a partir da transgressão adâmica, tanto no nível da alma quanto do corpo físico. Sendo assim, a herança da corrupção de Adão é passada biologicamente por meio da hereditariedade. E o que exatamente é a causa do pecado original? O desequilíbrio da vontade humana ou, como afirma Agostinho, um desejo desordenado que se desvia do supremo bem que é Deus para as ilusões de satisfação das concupiscências transitórias. 

A consequência mais direta sobre a raça humana do pecado original é o sofrimento, tornando o mundo lugar de provas e expiações. Para que houvesse o retorno à plenitude da unidade, isto é, o estado paradisíaco figurativamente ilustrado no Jardim do Éden, era necessário um salvador que absorvesse em si mesmo todo o sofrimento humano. Isso ocorreu também em um jardim, dessa vez, o Jardim do Getsêmani, local de início da agonia de Jesus Cristo até sua morte, libertando assim a humanidade de sua transgressão e restaurando a comunhão do relacionamento perdido entre Deus e Adão. A salvação é completada na encarnação do Messias, a divindade que se fez carne, como afirma no Evangelho de João, no princípio era o logos, o logos era Deus e estava com Deus e, portanto, se fez carne por meio do filho Jesus Cristo. Portanto, o homem do século XXI não pode salvar a si mesmo e atingir o bem através de seu limitado e imperfeito entendimento científico e tecnológico, mas deve sujeitar-se ao Redentor que restabelece a ligação entre Céu e Terra através da remissão de Adão e cujos pensamentos são muito mais elevados que os dos homens.

REFERÊNCIAS

CAVANAUGH, William et al. A evolução e a queda: implicações da ciência moderna para a teologia cristã. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021.

 

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