Brasil era menos pobre do que se imaginava no Império e início da República – Tiago Barreira

Gravura com vista da antiga Rua Direita, atual Primeiro de Março. Litografia do Institut von Wilhelm Greve. Oscar Canstatt. Brasilien: land und leute. Berlim, 1877. Fonte: Arquivo Nacional

Em artigo publicado recentemente pelo economista Samuel Pessôa, a série histórica de PIB brasileiro teve sua metodologia revisada para o período 1900-1980, sendo um marco na historiografia econômica brasileira. O Brasil do século XIX e início do século XX era menos pobre do que o imaginado, e o período do “milagre econômico” conduzido por políticas estatais de fomento à indústria foi de crescimento mais modesto.

Tiago Barreira

Em artigo publicado recentemente na Folha de São Paulo pelo economista do FGV IBRE Samuel Pessôa, a série histórica de PIB brasileiro teve sua metodologia revisada para o período 1900-1980. A revisão metodológica passou a considerar uma parcela expressiva da economia de serviços que havia sido ignorada no período pelas estatísticas oficiais. Recalculando para trás, isso significaria um aumento substancial de mais de 80% no nível de PIB em 1900. O Brasil do século XIX e início do século XX era menos pobre do que o imaginado.

Esta mudança representa um marco na historiografia econômica brasileira. Muito se especulou sobre o fenômeno do “milagre econômico brasileiro”, que transformou um país agrário atrasado nas 10 maiores economias do mundo ao final do século XX. Esse “milagre”, segundo interpretado por muitos economistas heterodoxos, teria sido puxado por uma pesada política de intervenção estatal sobre setores econômicos industriais, o nacional-desenvolvimentismo. Segundo esses economistas, o liberalismo econômico fundado em uma economia agroexportadora teria resultado em estagnação produtiva do país e conduzido a um ciclo de subdesenvolvimento e dependência internacional, a ser superado por um novo modelo econômico estatista de substituição de importações industriais, tal como introduzido em etapas sucessivas pelos governos Vargas, JK e governos militares.

A nova revisão comprova que o dito “milagre” impulsionado por tais políticas industrializantes, na segunda metade do século XX, na verdade foi bem mais modesto do que o previamente estimado. Segundo o artigo de Samuel Pessôa, com os dados corrigidos, o PIB per capita brasileiro cresceu, entre 1930 e 1980, ao ritmo de 2,7% ao ano, em vez de 3,7%. E ainda segundo Pessôa, tivemos a 17ª maior taxa de crescimento do produto per capita dentro de uma base de 56 países, sendo um “bom desempenho, mas longe de ser espetacular”.

O que os novos dados comprovam, portanto, é que o período econômico liberal vivido no Brasil antes da era Vargas não foi esse período de “trevas” pintado pelos heterodoxos, refletindo um maior grau de dinamismo e pujança econômica do que se imaginava, com a correção do setor de serviços. Se os dados anteriores colocavam o PIB per capita brasileiro inferior até mesmo ao país mais pobre da América Latina, como a Bolívia, os novos dados colocam o Brasil com níveis de renda per capita superiores a esta e mais próximos do México.

De nenhuma maneira podemos antagonizar o processo de desenvolvimento brasileiro, elegendo alguns setores como mais importantes e a serem privilegiados com incentivos estatais às custas do restante da economia, como o faz a teoria do nacional-desenvolvimentismo. E também de nenhuma maneira podemos colocar o processo de industrialização brasileira como concorrente ao desenvolvimento do setor agrário. Não existe setor econômico “bom” e setor econômico “ruim”. Esta tese infelizmente reverbera até os dias atuais, quando vemos discussões no atual governo em promover a “neoindustrialização” brasileira, em que novamente o agronegócio, um dos setores mais produtivos do país, sendo colocado em segundo plano pelo governo e ignorado como um dos principais motores de promoção desse mesmo desenvolvimento e industrialização.

Muito desse preconceito contra o agronegócio vem da tese do subdesenvolvimento econômico tão alardeada por economistas heterodoxos como Celso Furtado e Raul Prebisch, na qual um livre comércio baseado puramente em exportações agrícolas com ausência de proteção da indústria nacional agravaria no longo prazo o balanço de pagamentos e levaria a escassez crônica de capitais. Esta tese na verdade não se sustenta. As forças produtivas do setor privado que conduziram o nosso desenvolvimento agrícola são as mesmas que conduzem o nosso desenvolvimento industrial, e o avanço de um não é de nenhuma forma antagônico ao avanço do outro, mas sim complementares, como pode ser comprovado na própria história do nosso desenvolvimento industrial. Os capitais nacionais que instalaram as primeiras indústrias em larga escala em São Paulo vieram justamente da iniciativa de empreendedores do café, que reinvestiram os lucros de sua produção em setores de bens de consumo, como têxtil e alimentício. Trata-se de um processo natural de transição, ao qual capitais de um setor produtivo fluem espontaneamente para outros mais complexos de uma mesma cadeia produtiva.

Produzir café criou demanda para a instalação de todo um complexo industrial de beneficiamento do café, potencializado por uma infraestrutura de transporte já instalada de ferrovias e estradas para o escoamento do café. Nesse sentido, a indústria de bens de consumo final, como de alimentos e bebidas, seriam os candidatos naturais a se desenvolverem em uma economia agroexportadora, uma vez obedecida essa lógica de transbordamento de capitais de setores mais simples para mais complexos. E foi justamente o que aconteceu em São Paulo no início do século XX.

E por sua vez, uma indústria de alimentos e bebidas mais desenvolvida criaria demanda e abriria espaço posteriormente para instalação de setores industriais ainda mais complexos, como indústrias de base, compostas pelas indústria siderúrgica, celulose e papel e petroquímica. E novamente vemos isso acontecer no Brasil, quando observamos os primeiros rudimentos da indústria siderúrgica instalados sob liderança da iniciativa privada nas primeiras décadas do século XX. Vemos abaixo a imagem de uma das primeiras usinas siderúrgicas instaladas na década de 20 pela Companhia Siderúrgica Belgo Mineira, via capital privado nacional e estrangeiro, e antes da instalação da CSN.

Vista parcial da Usina de Sabará (MG), então a usina com maior alto-forno a carvão vegetal do país. Reprodução: ArcelorMittal

E deve-se por fim considerar que a existência de mão-de-obra industrial qualificada foi justamente possibilitada pela mão de obra imigrante atraída pelo trabalho agrícola em centros produtores de café no sudeste brasileiro, esta fornecendo o capital humano necessário para trabalhar nas primeiras manufaturas de larga escala no Brasil.

O processo de industrialização guiado pelo transbordamento de capitais do setor privado, portanto, em muito dependeria da existência de um arcabouço institucional que garantisse a isonomia legal entre os setores de produção, permitindo livre mobilidade de capitais entre setores. A economia de livre mercado é justamente esse arcabouço de regras e leis institucionais que garantem isonomia setorial e potencializam a mobilidade, o livre escoamento de capitais privados e o avanço das forças produtivas de uma economia.

É preciso salientar por fim que não há nada mais danoso ao desenvolvimento econômico de um país do que comandá-lo desde cima por decisões políticas e ferir a isonomia econômica taxando alguns mais produtivos para subsidiar e proteger outros menos produtivos. A história do desenvolvimento econômico brasileiro e seus sucessivos voos de galinhas poderia ter sido totalmente diferente caso compreendêssemos que em um país onde não haja respeito a essa isonomia, com economia guiada de cima e não de baixo, e com subsídios e proteções discricionárias à indústria às custas da taxação dos setores restantes, não pode nunca haver um avanço econômico duradouro. E que promover políticas econômicas nesta direção não pode nunca ser visto como uma das maiores causas do seu desenvolvimento, mas sim um dos seus maiores obstáculos e empecilhos.

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