
A nostalgia é um sentimento humano que deve ser cultivado e se encontra incompreendido em demasiado em tempos culturais atuais. A nostalgia, definida como essa ansiosa tensão entre a melancolia de ausência e esperança de regresso ao lar, é hoje alvo de ataques por diversas correntes de pensamento, acusada seja de conduzir a um estado apático e depressivo no ser humano, seja de promover uma idealização reacionária do passado. Contudo, contrariamente às suas caricaturações ideológicas, o amor nostálgico ao ausente se mostra hoje tão necessário como chave para soluções e respostas da vida humana presente e do aqui e agora.
Tiago Barreira
A nostalgia é um sentimento humano que deve ser cultivado e não reprimido, que faz falta hoje e se encontra incompreendido em demasiado em tempos culturais atuais. Nostalgia vem etimologicamente do grego nóstos (νόστος – regresso à casa) e álgos (ἄλγος – desespero). É um termo surgido no século XVII na Alemanha, para descrever as ansiedades apresentadas por mercenários suíços que lutavam fora de casa. A nostalgia pode ser definida, portanto, como essa ansiosa tensão entre a melancolia de ausência e a esperança de regresso ao lar.
A literatura portuguesa tratou de traduzi-la para o termo “saudade”, o melhor correlato para a nossa língua. Heidegger cunharia uma outra expressão que evoca um estado similar à nostalgia e à saudade: a angst (angústia), definindo um estado sentimental parecido de melancolia existencial diante da efemeridade da vida e do imediato, e o desejo humano constante de superá-la.
Tanto o nóstálgos quanto a angst e a saudade expressam em comum esse sentimento de estranheza e exílio, de despertencimento ao presente e â realidade física imediata. O de preferir estar em um outro lugar. É a tensão entre o desejo impossível por bens inalcançáveis de um mundo ausente e ilimitado e a realidade de um mundo presente e limitado de recursos, tempo, escolhas e possibilidades de ações ao homem. Contém traços de tristeza, frustração e cansaço, que poderiam ser altamente objeto de censura aos olhos do utilitarismo e da felicidade epicurista ditada pela cultura coach do sucesso pessoal de Instagram. Pois estranhar-se com o redor, com a realidade sensorial imediata, desejar coisas intangíveis que não podem ser alcançadas nesta vida, não somente é improdutivo do ponto de vista social e econômico como alcança os limites do horizonte metafísicos de consciência ditados por uma época denominada por Guénon como o Reino da Quantidade, ao qual nenhum outro mundo além deste mundo imanente material e quantitativo pode ser concebido.
“Mas o que é isso que estás dizendo? Como dizes que um sentimento gerador de cansaço, frustração e melancolia faz falta, e ainda a ser cultivado e incentivado?” De fato, o sentimento nostálgico tende a estar associado a algum grau de vício. Todavia, de nenhuma forma o primeiro se reduz ao segundo. Este é o ponto que quero provar neste ensaio.
A nostalgia pode ser criticada por alguns pensadores moralistas e psicólogos por promover um estado de depressão e apatia no homem. A teologia moral católica denominaria de acídia, ou a preguiça. Pois, se tudo que é bom, belo, e verdadeiro não está nesse mundo presente e imediato, mas em outro, como no passado, o que resta para eu desejar hoje? Associada à acídia está a sensação de estar acuado, acossado. Neste sentido, a nostalgia por um passado não vivido induz a um espírito de desistência, porque nada vale realmente a pena. George Bernanos o chamaria de «espírito de velhice».
Neste sentido, a acídia e o espírito de velhice a ele associado sim, é um vício. Contudo, não devemos misturar as duas coisas. O espírito de velhice nem sempre é algo ruim em si. O espírito de velhice pode ser também um sintoma de sabedoria, e de desapego à realidade imediata ilusória, como vemos no Eclesiastes.
Ataca-se também a nostalgia de forma equivocada, sobretudo por parte dos progressistas, que a confundem com uma atitude reacionária frente ao mundo, enquanto uma idealização irrealista de tudo do passado ser bom em termos civilizatórios, uma espécie de atitude negacionista perante as conquistas humanas dos últimos séculos. E em contraposição a isso, o progressismo irá defender a ideia contrária, sendo diametralmente oposta â essa visão reacionária de que tudo do mundo moderno é ruim, para justificar que nunca vivemos em uma época tão boa. Os progressistas irão construir uma caricatura do sentimento nostálgico para impor sua visão ideológica de que não há nada de errado com os tempos presentes da modernidade, e que ela deve ser celebrada, e que não existe declínio civilizatório nenhum.
Contudo, contra todas as construções narrativas, o declínio civilizatório é uma realidade e não um discurso ideológico. É um dado social percebido, debatido e discutido por diversos pensadores ocidentais nos últimos 2 séculos, tanto a esquerda quanto a direita, socialistas, conservadores, liberais. Todos eles, divergências à parte, concordam que algo de importante se perdeu no ocidente a partir do século XIX. O ser humano ocidental moderno em alguma dimensão e grau se tornou menos humano. Nietzsche atacava a razão iluminista e clássica ocidental como fonte da perda de vitalidade criadora do homem europeu. A Escola de Frankfurt fala de indústria cultural que padroniza consumos e gostos em um mínimo denominador comum. Freud falava do mal estar civilizatório ocasionado pela moral sexual burguesa. Ortega y Gasset denunciava a sociedade de massas como geradora de totalitarismos. Não precisamos refletir muito sobre a grande catástrofe que foi o século XX, com duas guerras mundiais seguidas, genocídios, ameaças nucleares, etc. A capacidade humana de destruição se ampliou a níveis inimagináveis em séculos anteriores. A barbárie se industrializou e se massificou a níveis nunca vistos antes.
Ademais, e ainda contrário às distorções do credo progressista, ser nostálgico com o passado de nenhuma forma implica em retorno a práticas condenáveis hoje como escravismo ou submissão em relações de gênero. Deve-se reconhecer sim, que as civilizações passadas de fato não eram esses modelos idealizados pelos reacionários. Por outro lado, também não podemos dizer ao certo o que elas realmente foram em termos culturais, morais, e por isso não podemos emitir um juízo certeiro sobre elas. Pois hoje sabemos apenas fragmentos do passado, do que pôde chegar até nós. O que sabemos atualmente do livro mais popular lido por Aristóteles no mundo antigo? Se chamava “Sobre a Filosofia”. O livro se perdeu. Um exemplo de conhecimento que hoje nós, os modernos e fina flor da civilização, nunca saberemos como foi, e que nunca mais recuperaremos.
Se o pouco de Aristóteles que chegou a nós já influencia um bocado a nossa cultura moderna, imagine tudo aquilo que os antigos sabiam, e quanto ainda mais poderia influenciar? E a biblioteca de Alexandria, que foi incendiada? Manuscritos valiosíssimos de ética, filosofia, ciência, que nunca mais saberemos. Tudo o que sabemos do passado, ou o que chegou a nós por textos, documentos, é apenas um fragmento ínfimo do passado verdadeiro.
O ponto aonde eu quero chegar é que nunca saberemos exatamente como pensaram os gregos, os romanos, os medievais. Nunca entenderemos exatamente as suas razões e o porquê de eles terem cometido coisas que parecem a nossa vista coisas absurdas e incompreensíveis. Eu prefiro o benefício da dúvida.
Por isso, reviver os clássicos, venerar o passado e todo o seu cânone referencial de obras e autores que vem sendo tão atacado hoje em dia e banido em círculos universitários, não é simplesmente uma idolatria cega ou uma imposição colonialista. Mas é o reconhecimento de que há algo nele lá que falta em nós, e que vemos um pouco de nós nele. Sim, os cristãos do passado escravizavam. Existia a escravidão exterior, contratual. Mas e hoje, que enfrentamos a escravidão interior, com dependência de drogas, depressão, medicamentos? Um escravo do período romano tinha mais dignidade e liberdade interior que um homem livre hoje (Sêneca foi escravo e filósofo). Tudo isso leva à seguinte pergunta. O mundo hoje está mesmo mais livre? O que é liberdade? Não encontraremos respostas a estas dúvidas e angústias humanas, a estas perguntas, que se repetem e são permanentes na história da humanidade, se não fizermos essa busca constante de dialogar e compreender as lições do passado. Reconhecer isso, entender que nele há algo valioso que podemos aprender para melhorarmos, que eles não são esses monstros como dizem atualmente, é um exercício de humildade.
O mundo precisa de mais nostalgia, e de abrir-se com amor a este ausente que não está aqui. Um ausente vazio, embora triste, melancólico e fonte de dúvidas humanas, é também presença e chave para soluções e respostas do aqui e agora. Um ausente, embora carregado do desespero álgos, é também uma presença esperançosa de chegada a um nóstos, ao porto final, à Ítaca homérica, aonde finalmente nos encontraremos com aquilo que somos e buscamos.