Aquela que deve ser obedecida

Irina Karkabi, 1960. Reprodução: Tutt’Art@

Carl J. Jung, em Dois Ensaios sobre Psicologia Analítica, descreve a Anima como o arquétipo do feminino no inconsciente masculino – a imagem da mulher no homem. O homem, na sua escolha amorosa, é fortemente atraído pela mulher que melhor corresponda a seu próprio inconsciente feminino – uma mulher que possa receber as projeções de sua Anima. A Anima é uma força interior espontânea e obscura, produzindo estados de espírito inexplicáveis, e ao qual não deve ser reprimida, mas integrada harmonicamente com a ação consciente e deliberada do Ego.

CologeroTradução: Tiago Barreira

Desde a minha mais tenra juventude até o presente, tenho sido inflamado com o mais exaltado e nobre amor. Meu amor era extremamente difícil de suportar: certamente não por causa da crueldade da dama que eu amava, mas sim por causa da paixão avassaladora acesa em minha mente pelo meu desejo desenfreado, que muitas vezes me fazia sofrer mais dor do que o necessário.

Giovanni Boccaccio, O Decamerão

Somente amando como um puro louco que você pode continuar seguindo em frente. Mas quantas vezes você acredita que ama alguém, quando na verdade não ama ninguém, nem mesmo a si próprio?

Nos: Livro da Ressurreição

A Anima

Ao final da Carta I: O Mago, Valentin Tomberg revela que o Mago representa o homem que alcançou a harmonia e o equilíbrio entre a espontaneidade do inconsciente e a ação deliberada do Ego (sentido consciente do Eu). Este estado de consciência é o Eu ou Eu Real.

Este processo de individuação ocorre em etapas descritas por Jung. A síntese final – falando do ponto de vista masculino – é a integração do arquétipo Anima, conforme descrito em Dois Ensaios sobre Psicologia Analítica. Os arquétipos são inatos na constituição psíquica, portanto a Anima é a imagem da mulher no homem. Isso é representado de três maneiras que serão descritas a seguir. Mas antes de ser percepção consciente, a Anima é uma força obscura, irrompendo na consciência como estados de espírito inexplicáveis, entre outras formas.

Na meditação, procura-se trazer a consciência do eu para as partes inferiores do ser. Particularmente, é necessário que haja mais consciência do funcionamento da psique ou do subconsciente. Lá encontraremos outros seres, ou seja, diferentes “eus” ou diferentes personalidades, cada um afirmando ser o verdadeiro eu.

A abordagem psicológica de Jung é útil para este processo, desde que as limitações da psicologia sejam compreendidas. Este artigo trata apenas de uma parte do processo, alcançar a harmonia com a Anima. As primeiras coisas a serem notadas são as mudanças de humor inexplicáveis, quaisquer que fossem. Além disso, é necessário que haja um encontro deliberado com a Anima. Por exemplo, iniciar uma conversa com Ela e anotá-la. Nos nossos grupos de trabalho, isto tem sido eficaz; às vezes o esforço resulta num poema. É claro que é necessária uma atenção cuidadosa aos sonhos; grandes sonhos – ou seja, aqueles que têm mais que um conteúdo pessoal – devem ser registrados.

Note que não recomendamos para leitura mais livros. Aprendemos de forma mais eficaz por tentativa e erro. Em última análise, o caminho hermético é bastante pessoal e uma lei para todos seria opressão. O livro chega no final da exploração, não antes. Tomberg descreve o processo:

O ato puro em si não pode ser apreendido; é apenas o seu reflexo que o torna perceptível, comparável e compreensível ou, por outras palavras, é em virtude da reflexão que nos tornamos conscientes dele. A reflexão do ato puro produz uma representação interior, que fica retida pela memória; a memória torna-se fonte de comunicação por meio da palavra falada; e a palavra comunicada fixa-se pela escrita, pela produção do livro.

Tenha isso em mente. A Anima é um mistério e nossas descrições verbais são de sua representação interna. Ela não pode se esgotar com nossa verbosidade.

Ela

Jung refere-se à personagem do romance Ela, de Rider Haggard – aquela que é chamada de “Aquela-que-deve-ser-obedecida” – como descritiva da Anima. Ela é uma personalidade de mana, ou seja, “um ser cheio de certa qualidade oculta e encantadora, dotado de conhecimento e poder mágico”. Isso, afirma Jung, é uma projeção de um autoconhecimento inconsciente, descrito desta forma:

Reconheço que existe algum fator psíquico ativo em mim que escapa à minha vontade consciente da maneira mais incrível. Este pode colocar ideias extraordinárias na minha cabeça, me induzir a estados de espírito e emoções indesejadas e indesejáveis, me levar a ações surpreendentes pelas quais não posso assumir qualquer responsabilidade, perturbar as minhas relações com outras pessoas de uma forma muito irritante, etc. Eu me sinto impotente frente a este fato e, o que é pior, estou apaixonado por ele, de modo que tudo o que posso fazer é me maravilhar.

Obviamente, um homem que já se apaixonou tão totalmente reconhecerá partes de si mesmo nessa descrição. Mas se ele conseguir integrar a Anima, ele ganhará a sua mana. Isso o elevará arquetipicamente ao “grande homem”, por exemplo, um herói, chefe, mágico, santo, governante dos homens e dos espíritos, um amigo de Deus. É um daqueles tipos que nos interessa particularmente, a saber:

Na verdade, é a figura do mago que atrai para si o mana, ou seja, o correspondente autônomo da Anima.

Dante e outros textos iniciáticos

Este ensinamento certamente não é novo. René Guénon menciona alguns textos iniciáticos europeus. Os principais deles são a Divina Comédia de Dante e o poema medieval O Romance da Rosa. Ambos estão focados, de formas diferentes, na integração da Anima.

Para Dante, Beatriz era uma projeção de sua Anima, uma mulher irreal que o conduziu a estados superiores. Já Dante viveu uma vida de homem: constituiu família, foi um guerreiro nas batalhas da época, foi poeta, filósofo, místico e iniciado no Fedeli d’Amore. Boccaccio afirmou que a fisionomia de Dante exibia uma melancolia saturnina, o que não surpreende num pensador tão profundo.

Consequentemente, seus escritos não eram abstrações áridas, mas foram retirados de sua própria vida. Na sua obra como um todo, ele descreve pessoas, acontecimentos pessoais, sonhos, impressões, etc. A tendência de alguns escritores tradicionais de deixar de fora o elemento pessoal enquanto algo inferior não é algo necessariamente melhor.

O Romance da Rosa é um poema alegórico sobre a união com a Rosa, apesar de uma série de obstáculos. Vários personagens representando, por exemplo, a Razão, o Gênio, a Amizade, a Velha, oferecem opiniões diferentes sobre a empreitada. Considerá-lo simplesmente como uma divertida história de romance seria um erro.

Guénon também menciona surpreendentemente o Decamerão de Boccaccio e o Gargântua e Pantagruel de Rabelais como outros textos iniciáticos. Eles podem ser muito obscenos para alguns, mas essa pode ser uma técnica para esconder o verdadeiro significado daqueles apenas curiosos.

O principal ponto, então, de todos esses trabalhos é mostrar como a integração com a Anima é essencial no caminho hermético.

A Rosa Azul

Os contos populares muitas vezes contêm sabedoria oculta, ao contrário de muitas histórias modernas que são cínicas e com lições inspiradas ideologicamente. Por exemplo, a Lenda da Rosa Azul é um desses contos da China. Observe como a lição da história se opõe à sabedoria serpentina comumente aceita de nosso tempo. Por exemplo, o filho do jardineiro, em alguns círculos do MGTOW, seria ridicularizado por estar na “friendzone”, enquanto a princesa se sente realmente atraída por algum “bad boy” que a maltrata. Contudo, no conto popular, a princesa é psicologicamente mais saudável do que a mulher ocidental de hoje. Ela reconhece seu verdadeiro Animus e eles vivem uma vida feliz juntos.

Mulheres Germânicas

Tácito na Germânia, seções 18 e 19, descreve as mulheres germânicas de seu tempo. Jung os usa como exemplos desta qualidade:

A mulher, com sua psicologia tão diferente, é e sempre foi fonte de informações sobre coisas para as quais o homem não tem olhos. Ela pode ser sua inspiração; a sua capacidade intuitiva, muitas vezes superior à do homem, pode lhe dar avisos oportunos, e o seu sentimento, sempre dirigido para o pessoal, pode lhe mostrar caminhos que os seus próprios sentimentos menos acentuados nunca teriam descoberto pessoalmente.

Tácito observa que o vínculo matrimonial é bastante rígido entre os alemães, sendo a monogamia a norma. A mulher não é o elo fraco dessa relação; em vez disso, ela participa plenamente de sua vida comum:

Para que a mulher não se considere dispensada dos esforços de coragem, ou isenta das baixas da guerra, ela é admoestada pelo próprio cerimonial de seu casamento, de que se aproxima do marido como parceira nas labutas e nos perigos; sofrer e ousar igualmente com ele, na paz e na guerra: assim ela deve viver; assim morrer.

A sociedade é baseada na castidade, sem “espetáculos sedutores”, o adultério é extremamente raro e imediatamente punido. Espera-se que os casais jovens sejam virgens, portanto o casamento dura a vida toda. Eles não tentam limitar as crianças através do controle da natalidade, nem através do infanticídio como em outras culturas.

Essa oposição ao divórcio, à promiscuidade, ao adultério e ao controle da natalidade teve grande influência na Igreja Romana. Até os gregos (ortodoxos) permitem o divórcio e têm sido inconsistentes na contracepção. É claro que os neopagãos não acreditam em nada disso.

Uma vida moderna

O mundo moderno tenta impor-nos certas falsidades presumivelmente baseadas na “ciência”. Uma delas é que o homem é geneticamente programado para a promiscuidade. A vida tradicional dos germânicos revela a mentira. Um verdadeiro homem protege sua esposa e filhos, desejando mantê-los seguros e protegidos, psicológica e espiritualmente, não apenas fisicamente. O homem afeminado busca o prazer em vez da proteção; esse não é nosso modelo.

Três Manifestações da Anima

Friedrich Schlegel em seu Roman a Clef Lucinde descreve três manifestações da Anima: como esposa, como amante e como âme-soeur (alma gêmea). Ele reconheceu essas três qualidades em sua esposa Dorothy. Ou seja, o relacionamento deles atingiu todos os três níveis: hílico, psíquico e espiritual.

A imago da mulher (a imagem da alma) torna-se um receptáculo para estas aparências e é por isso que um homem, na sua escolha amorosa, é fortemente tentado a conquistar a mulher que melhor corresponda a seu próprio inconsciente feminino – uma mulher, em suma, que possa sem hesitação receber as projeções de sua alma. …pode acontecer que o homem tenha se casado com sua pior fraqueza.

Esposa e mãe

O primeiro relacionamento feminino de um homem é normalmente com sua mãe. Isso fica gravado em sua psique:

Seus parentes mais próximos, que exercem influências imediatas sobre ele, criam nele uma imagem que é apenas parcialmente uma réplica deles mesmos, enquanto a outra parte é composta de elementos derivados dele. A imago é constituída pelas influências dos pais mais as reações específicas da criança; é, portanto, uma imagem que reflete o objeto com características muito delineadas.

À medida que ele amadurece, isso muda, como Jung descreve:

Em lugar dos pais, a mulher assume agora a sua posição como a influência ambiental mais imediata na vida do homem adulto. Ela se torna sua companheira.

Atração Sexual

O impulso mais forte da Anima é a atração sexual, que irrompe na consciência de várias formas. Isto é agravado pelas distorções da psique resultantes da Queda.

A primeira é a nossa faculdade imaginativa no corpo astral (alma animal), que é entregue a fantasias sexuais de todos os tipos. Estas obstruem a imagem do Feminino como Sophia, ao mesmo tempo que a degradam. Ela só tem um valor instrumental. Embora um relacionamento saudável envolva elementos visuais, auditivos e táteis, estes são usados não por suas qualidades atraentes a outro ser humano, mas sim como estímulos para prazer pessoal. Assim, no caso de Dante, a sua fantasia de Beatriz leva-o a reinos mais elevados, enquanto a fantasia de um suposto poeta hoje (como na música pop) seria mais adequada para as revistas Penthouse.

Outra distorção ocorre ainda mais embaixo, no corpo etérico (alma vegetativa). Um Eros saudável estará orientado para o Amado. Na maioria das vezes, porém, o Eros é indiscriminado e é atraído por outras mulheres que não a Amada. Além disso, o Eros pode até ser direcionado para outros objetos, como nos fetiches, por exemplo. Visto que o Eros se destina idealmente a uma pessoa específica, a estimulação artificial do Eros pode ser um obstáculo ao progresso espiritual.

Seres polares e amor cortês

Como o psicológico é o reflexo de algo superior, a Anima precisa ser compreendida na sua realidade espiritual. A história de Adão e Eva revela isso, já que Eva se separou de Adão. Ela é então seu duplo espiritual, a representação externa de sua Anima. Embora o arquétipo de Jung deva ser entendido num sentido universal, ele também é intensamente pessoal.

Com a Queda, esta ligação foi perdida. Isso se refere ao sentido de Tomberg do arquétipo que se manifesta infinitamente tanto na história quanto em cada indivíduo. A tarefa da integração da Anima está interligada com a descoberta da alma gêmea ou âme-soeur. Boris Mouravieff refere-se a esse casal como Seres Polares. Baseando-se nas tradições cristãs orientais do Monte Athos, ele afirma que na Ressurreição geral, a elite humana será formada por casais polares. O encontro do Casal Polar é uma nova iniciação.

É necessário muito esforço esotérico para que isso aconteça. A primeira etapa é a purificação do próprio ser. Se você descobrir que está consistentemente entrando em relacionamentos tóxicos, isso provavelmente se deve a defeitos em sua própria psique, especialmente com a Anima. Não estamos falando aqui dos chamados bons relacionamentos, que são principalmente um acordo mútuo para “se estabelecer”, o que elimina o elemento de risco, mas também impede a plena realização de algo superior.

Isso foi compreendido muito melhor na Idade Média com o ideal do Amor Cortês envolvendo o Cavaleiro (ou Guerreiro) e a Dama dos seus Sonhos. Temos os Trovadores e os Fedeli d’Amore como exemplos. Este era o Amor no nível espiritual e objetivo, além do nível carnal e psicológico.

O Cavaleiro e a Dama consideravam-se espiritualmente unidos. No entanto, eles renunciaram a qualquer ideia de casamento como tal. Normalmente, os papéis sociais de esposa, marido, mãe, pai eram atribuídos a outra pessoa, não ao Ser Polar. Além disso, um relacionamento físico deve ser evitado como um sacrifício. Certamente, este não é um amor platônico “nobre” desprovido de paixão. Pelo contrário, a atração física é bastante intensa, por isso a sua renúncia pode ser bastante dolorosa.

O Cavaleiro e a Dama se encontrarão uma vez na vida, mas raramente se reconhecerão, porque não estão prontos ou não avançaram o suficiente. Às vezes lhes é dada uma segunda chance e isso deve ser obedecido.

Artigo publicado originalmente no blog Gornahoor

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