Nós, os inadaptados

Vicente Risco (1884-1963). Reprodução: Wikimedia

O filósofo e antropólogo galego e espanhol Vicente Risco (1884-1963) é considerado o maior pensador da Galícia do século XX e um importante nome da filosofia perene na Península Ibérica. Um dos seus ensaios mais conhecidos, “Nós, os Inadaptados” (1933), descreve sua trajetória biográfica intelectual. Risco, influenciado inicialmente pelas ideias individualistas e pessimistas do Fin de siècle e do decadentismo do século XIX, narra sua trajetória em direção ao espiritualismo e regionalismo galego. O ensaio traz interessantes reflexões sobre a crise europeia vivenciada pela geração do período de entreguerras (1918-1939).

Vicente Risco

I

Eu caracterizaria os homens do meu tempo, preocupados com as coisas do espírito, dizendo que éramos – e somos – os autênticos vencidos da vida. Muito mais vencidos que Eça e que Ramalho. Insatisfeitos, inconformados, muitas vezes rebeldes. Vencidos da vida por inadaptados.

O problema dos inadaptados é um dos grandes problemas dos declínios. Há nestes tempos de economia, de política, muitos homens de natureza extremamente delicadas e conscientes, detentores das essências mais depuradas da cultura, que embora não sejam desprezados nem perseguidos, ainda que se vejam limitados e tolhidos, não podem se solidarizar com a caminhada histórica do momento. E são os descontentes, os difíceis de agrado, os depreciativos, os descontentes de tudo, os que procuram as coisas distantes, estranhas e requintadas, os anormais dentre os supernormais.

Tal tipo foi muito comum no final do século passado, e encontrou talvez a expressão literária mais nítida em Des Esseintes de Huysmans. O título do romance de Huysmans diz tudo: À Rebours; porque é isso que são os inadaptados, os que vão à contracorrente do seu tempo, os que não se encaixam nos seus contemporâneos. Des Esseintes é realmente uma caricatura, porque obviamente o exagero do tipo pode ser mórbido, mas por mais caricatura que seja, ele não perde a nobreza.

Eu citei Huysmans de maneira oportuna porque ele era um dos nossos professores. Nossa cultura de autodidata, formada como Deus bem quis, lendo livros e livros à medida que chegavam às nossas mãos, enquanto alguns eram afetados por outros, era feita principalmente à base de livros franceses. O francês era então a única língua estrangeira que conhecíamos bem, embora naquela época da nossa juventude, aqui na Galícia, a mais em voga fosse o inglês. Sabíamos algumas palavras inglesas para misturar na conversa, pela moda, naquela altura em que a última expressão da elegância da nossa Terra eram os funcionários do Cabo de Vigo.

Da Inglaterra, lemos, em traduções, para Ruskin, Carlyle, Swinburne, Rossetti, e de escritores de língua inglesa, sobretudo, para Edgar Poe. Mas digo que nossas leituras predominantes eram francesas: na poesia, Baudelaire, Verlaine, Mallarmé, Rimbaud, Laforgue; em romance e conto, Huysmans, Péladan, Jean Lorrain, Rachilde; na crítica, Remy de Gourmont; no teatro, Maeterlinck. Mesmo nisso tivemos Ibsen e D’Annunzio, o único italiano entrando em nossa preferência. Nossos filósofos foram Nietzsche e alguns místicos que descobriram Maeterlinck, como Ruysbroek, o admirável; Novalis, Emerson, Ernest Hello. Então estávamos procurando outros escritores mais singulares ainda: Léon Bloy, o Conde de Lautréamont. Dos exóticos, Omar Khayyan de Nishapur, e mais tarde Rabindranath Tagore. Espanhol, muito pouco: Ganivet, sobretudo, e os primeiros modernistas; dos portugueses, Eça de Queiroz, Lopes Vieira e, principalmente, Eugénio de Castro; alguns catalães; Maragall, o Xenius da primeira fase, o esquecido Diego Ruiz. Da América, Ruben Darío e alguns originais argentinos que não se assemelham a ninguém.

Nosso espírito sugou dessas fontes uma ideologia vaga, não muito determinada, talvez contraditória, que entrou em nós profundamente e para sempre, e pouco a pouco, lentamente tomou corpo e determinou o que deveríamos ser, pensar e sentir.

Cultura própria dos introvertidos, filosofia abstratistas das quintas essências, dos habitantes das torres de marfim. De fato: introvertidos éramos enquanto não chegou até nós o galeguismo. Vivíamos sozinhos no sonho, muito mais do que no pensamento propriamente filosófico. Não é constrangedor, tínhamos naquela época, e temos, uma filosofia, um verdadeiro sistema orgânico e vivo, uma concepção de mundo e de vida tão valiosa quanto a de qualquer filósofo sistemático, mais, talvez, do que a de muitos professores atuais de filosofia.

Nosso pensamento é o de uma geração que ainda viveu os últimos esplendores de um mundo moribundo, esplendores que, provavelmente, os jovens que venham depois de nós não poderão mais ver na vida. Tal como uma vela, ou uma lâmpada a óleo, quando vai morrer, a sua chama acende antes do fim súbitas e cintilantes luzes. Assim a Europa moribunda ostentou, no final do século passado, os ouros triunfais luminosos da poesia simbolista, da pintura impressionista e pós-impressionista, da música de Wagner e Strauss.

II

Em primeiro lugar, aprendemos com nossos mestres a odiar nosso tempo.

Os inadaptados são, por definição, os insatisfeitos com o mundo sensível, os inimigos da realidade cotidiana, aqueles que buscam escapar do ambiente que os cerca. Daí a consciência da arte como evasão.

Mas, entende-se: não descartamos o ambiente natural, não condenamos a natureza. Pelo contrário, rousseaunianamente – melhor eu diria: superrousseaunianamente – andamos pelo campo, vasculhamos a aldeia, e mais além da aldeia, a montanha; sentimos a intimidade da paisagem àquela altura, e achamos melhor sabor o do selvagem, quanto menos ele parecia profanado pela mão do homem.

O inimigo estava em outro lugar; não fugimos do ambiente natural, mas do meio social que nos cercava.

Aqui é preciso que nos expliquemos bem, porque há uma parte da juventude agora em franca rebelião contra a sociedade de hoje, que é naturalmente a mesma do nosso tempo. Mas entre a rebelião desses jovens e a nossa, não há nada comum; eles são bastante rebeldes no sentido oposto. Esses tipos se movem por um interesse social, carregam, enganados ou não, uma ideia de melhoria, de perfeição pretensiosa, de reforma da sociedade. E eles extraem suas ideias de reforma, é claro, de conceitos e sentimentos comuns na sociedade atual, na qual vivem; sua própria reforma social visa responder às tendências ou necessidades dos homens modernos, isto é, dos homens espiritualmente formados nos pressupostos dessa sociedade a ser reformada. Eles opõem à sociedade atual uma sociedade futura em que as exigências dos homens da sociedade atual devem ser satisfeitas com o desaparecimento das condições sociais vigentes. Numa palavra: são utopistas.

Pois bem, não éramos assim. Em nós não nos movia nenhum interesse social, não queríamos nenhuma reforma, não opúnhamos à sociedade atual nenhuma sociedade do futuro.

Nossa rebeldia consistia em nos segregar espiritualmente da sociedade, afastar-nos de suas tendências e de seus problemas, isolar-nos em nossa alta indiferença aos seus afãs e agitações, a suas lutas e disputas, e cumprir nosso papel sem alegria e sem tristeza e, principalmente, sem qualquer interesse. Aqui devo recordar a impressionante observação de outro dos representantes da decadência, o Sar Péladan; põe este como um dos fenômenos mais característicos do nosso tempo, a era contemporânea, “a indiferença dos atores sociais pelo seu papel”. Isso que ele constatou como fato, nós tivemos como doutrina. Para nós, a profissão, o emprego, o trabalho, não era e não deveria ser mais do que uma forma de tirar um salário para viver, não podia ser levada a sério, e era ainda vergonhoso demais mostrá-la fora do escritório, do local de trabalho, da oficina. Fora do lugar onde se trabalhava, recuperava cada um sua personalidade inteira de Fulano de Tal, e já não tinha nada que ver com os patrões, professores ou colegas. Pertencia a outro mundo.

A camaradagem, a solidariedade profissional ou de classe eram como a política, os interesses públicos, a reforma social, a sociedade futura, a revolução, a utopia, preocupação e tolices típicas dos filisteus.

O filisteu era, por definição, o homem preocupado com a coisa pública e seus assuntos sérios: política, sufrágio universal, programas partidários, banda municipal, jornalismo, formas de governo, academias, jogos florais, vontade popular, pavimentação, iluminação, problema social, instrução pública, capital, trabalho. Todo homem daquele modo constituído, fosse conservador ou revolucionário, amotinador ou cacique, guardião ou perturbador da ordem, era – e sempre será – um filisteu. Sua representação simbólica era o senhor da sepultura, tabelião, magistrado, controlador da Fazenda, com cartola e leontina de ouro; mas também o trabalhador de blusa ou macacão era filisteu.

Sob o nome de filisteu, de bom burguês, do Sr. Prudhomme de Celui que ne comprend pas, esse personagem muitas vezes encarnava, para nós, o sentido social da vida. Portanto, ele era o inimigo. Até certo ponto, era lícito seduzir seus filhos e sequestrar suas filhas.

Indo mais além ainda: Enquanto muitos jovens vivem hoje bastante satisfeitos com seu tempo, porque seu pensamento cai bem com o jornalismo, o industrialismo, o politcismo, etc., reagindo contra o ambiente real, mas obedecendo às correntes de ideias que atravessam esse mesmo ambiente, nós reagimos, não apenas contra o ambiente real, mas também contra o ambiente ideal, contra os ideais de toda a sociedade moderna.

Éramos numa palavra, antigregários, antissociais.

III

Éramos simplesmente individualistas.

Contra o meio social, real e ideal, de nosso tempo, opomos o zelo por nossa liberdade, o que para jovens de agora parece algo dissonante. Ainda mantemos esse zelo da nossa liberdade. Bem sabemos que passaram os tempos em que a liberdade podia ser preservada na vida social; sabemos que hoje, na vida moderna, a liberdade é impossível; mas não abrimos mão de forma alguma da nossa liberdade interior que temos de afirmar muitas vezes, impreterivelmente, frente a todos os imperativos que os tempos querem nos impor. Ficamos livres de todos os laços, sem remover nenhum. Há muitos jovens hoje, e também muitos homens do nosso tempo e muitos velhos, que se dizem livres da pátria, da religião, da família, de todas aquelas coisas que chamam de preconceitos, sem por isso serem livres, porque, ou são vítimas de preconceitos contrários, ou pelo menos, ficam ainda mais sujeitos ao pensamento que se manifesta dominante na época – porque esse “temos que viver de acordo com os tempos” também é um preconceito,  uma obrigação e uma escravidão – e de todos os modos alienam a sua liberdade a serviço de utopias e programas sociais e políticos.

Tem que ser assim, porque assim como o nosso tempo era centrífugo, o de agora é centrípeto e gregário. As forças destrutivas da cultura – pelo menos da cultura atual e tradicional, como conhecemos – estão unidas de um lado. Temos o comunismo; ajuntam-se noutro as forças defensivas, e temos o nacionalismo. Muitas vezes há entre essas duas tendências gregárias – porque hoje até para desagregar é preciso agregar – conivência e acordo. Nesse ambiente, no pensamento e no sentimento dos jovens, predomina a solidariedade. Sentem solidariedade para com aqueles que têm mesma ideia, com os da mesma classe. Mas não é só isso: os da mesma idade sentem-se solidários, o que não acontecia desde as classes etárias de certos povos primitivos, o que pode querer indicar que as culturas acabam onde começam.

Não tem mais nenhuma relação a diferença de significado entre o que agora tem e o que tinha até então a palavra nós. Quando alguém do meu tempo dizia nós, se ele nunca se referia aos da sua geração, nem aos da sua classe; Referia-se muitas vezes a um pequeno agrupamento associado ao pensar ou fazer uma escola, uma capela, uma tertúlia — o nosso tempo era a das tertúlias literárias e artísticas. Em vez disso, quando um jovem agora diz nós, ele se refere mais frequentemente aos de seu tempo, à sua geração. Não foi outro o sentido de “movimentos juvenis”.

Nossa atitude tinha, naturalmente, um desdobramento moral. Era aquela uma verdadeira doutrinação moral sem obrigação nem sanção, confiada à consciência de cada um de nós. Moral individualista, vinha ser no fundo a moral do culto ao eu, pouco antes pregada por Maurice Barrès. Tudo nos estava permitido a não ser a infidelidade a si mesmo, tudo menos uma traição à própria personalidade, tudo excluindo um enfraquecimento do indivíduo. A regra suprema era ser o que se é até o fim, ser fiel à lei pessoal do eu concreto e liberto, sem concessão a ninguém ou a nada. Era uma moral de orgulho.

Portanto, e obedecendo ao axioma “ser diferente é ser existente”, cada um de nós se esforçava para não se assemelhar aos outros nas opiniões, nos gostos, nos costumes, em dar a toda a sua vida um tom pessoal e distinto. Não andávamos um atrás do outro, como muitos hoje fazem, não seguíamos a moda, nem mesmo nas roupas; até nisso cada um procurava carregar algo que os outros não carregavam. Não admitíamos nada uniforme ou em massa, antes buscávamos muitas vezes o que nos alienava da multidão, do uso geral. Tínhamos nojo do água-com-açúcar, do vulgar, do comum, e qualquer esquisitice, qualquer extravagância, encontrava em nós entusiasmo e aplausos.

IV

Daí vinha também a busca pelo exótico.

Não éramos, claro, internacionalistas ou cosmopolitas. O internacionalismo, o cosmopolitismo, o desaparecimento das fronteiras, a fraternidade universal eram ideias que pertenciam à alçada dos outros, dos filisteus. Mas também não éramos patriotas. O patriotismo naquela época era o patriotismo de massas, que pertencia ao comum do povo, ao vulgo profano; até o purismo era coisa oficial, acadêmica e filisteia. Éramos exotistas, partidários do distante, do recuo, do desconhecido. Nosso sonho era ir para as terras exóticas, onde se não conhecessem as máquinas e os homens não levassem cartolas: os cantos ainda quase inéditos da Índia, da África central, do “misterioso” Tibete, ou dos tempos antigos do Egito e da Babilônia.

E andamos peregrinando por cosmogonias e culturas em busca do inusitado. Interrogamos os mistérios dos egípcios em Jâmblico, em Plutarco, nos hieróglifos, em livros modernos, como o do egiptólogo alemão Adolf Erman, sobre a magia egípcia. Buscávamos o retorno ao budismo; nos consolávamos na Teosofia, buscamos revelações no Popol Vuh da Guatemala, no Livro da geração de Adão do Nabaen De Mirville, no Kalevala de Finlândia, em Éliphas Lévi e ainda em De Mirville. Eu mesmo estudei as religiões da Índia, os seis Darsanas ortodoxos, os sistemas dissidentes de Siddahartha e Mahavira, as filosofias malditas dos Lokayata, dos Saktistas e dos Thugs; Fui aprender declinações e conjugações sânscritas, ler de corrido o alfabeto devanagári.

Éramos indiferente ao que chegava em mãos, e se em relação à Europa éramos orientalistas, em relação a Espanha éramos europeístas. E quanto a outros escritores modernistas, que nós pensávamos que dialogavam conosco, se envolveram com o purismo e os clássicos, e foram por nós condenados ao esquecimento e ao desprezo.

V

Claramente, essa busca pelo distante e pelo exótico vinha do ódio ao nosso, que encontrávamos repleto de vulgaridade e feiúra.

Sabíamos, aliás, que essa vulgaridade, que essa feiura não tinha reparo, e por isso éramos pessimistas. Em geral, o mundo, para nós, era algo que tinha que ser suportado com uma postura de dandismo.

Nosso tempo, ciente do declínio, era geralmente pessimista. Depois de nós surgiu um traço de otimismo. Seja na forma de doutrinas e teorias que escondem a verdadeira realidade sob seu falso brilho de ouro, seja ela qual for, a maioria dos jovens agora parece não se dar conta de serem homens do apagar das luzes, e muitos acreditam ou fazem crer que estão inaugurando um novo ciclo histórico. Alguns chegaram até a uma solução desesperada: inverteram as noções tradicionais do belo e do feio, e passaram a defender a beleza das quinquilharias e engenhocas do chamado progresso. Outros, mais sinceros, chegaram a dizer que a arte não tinha nada a ver com beleza, mas com feiúra. Parece que essas atitudes já estão ultrapassadas; mas o otimismo segue, e a maioria está satisfeita em seu tempo e identificada com as correntes que se mostram dominantes. Por certo, que neste mundo não se contenta o que não quer.

VI

Entende-se também que nossa moral individualista do culto ao eu não era uma moral pensada para todos os homens, e que não pretendíamos que fosse universalmente valiosa.

De fato, longe de pretender uma validade universal, como fizeram os filósofos e os professores de filosofia fazem hoje, nós a mantínhamos como um privilégio.

Era uma verdadeira moral de casta, mas não era de casta social, senão de casta espiritual.

Tínhamos um conceito hierárquico de homens, como se indica nas ditas alusões ao vulgo profano e aos filisteus. E também não descartamos completamente as distinções sociais, quando elas tinham uma origem superior ao consensus, como é no caso da nobreza de sangue e das diferenças de educação – entendendo essa palavra no sentido que a sociedade dá, e não no que a pedagogia dá. De tal forma que alguns de nós, nobres de patente não muito elevada, nos preocupamos com nossa árvore genealógica, procurando ramificações e ancestralidades. Mas o essencial sempre foi, para nós, a superioridade do espírito.

Em todo caso, percebíamos mais profundamente o que nos afastava do que nos aproximava dos outros homens. Levávamos o pathos da distância, como dizia Nietzsche. Nada poderia estar mais distante da nossa alma do que o pensamento ou sentimento de igualdade, que considerávamos antinatural e repressiva. Púnhamos a ênfase no espírito, e o espírito é muitas vezes hierárquico.

Portanto, se atravessamos por muitas coisas, não passamos nunca pelo socialismo, nem por nenhuma das doutrinas semelhantes; se algum de nós alguma vez expressou simpatia pelo anarquismo, foi porque viu nele a destruição de uma ordem de coisas que achamos repugnante, não porque fomos menos antipáticos à ordem das coisas que o anarquismo veio a instituir.

Nem a nossa moral, nem o nosso pensamento, nem a nossa arte, eram para todos os homens. Pelo contrário: um livro, uma pintura, uma música, eram para nós de muito mais valor, quanto por menos pessoas tinham sido compreendidas. A arte não tinha papel social; Era o gozo esotérico dos escolhidos, era uma revelação mística, era a janela de Mallarmé da qual o mundo fora virado de costas, era a evasão dos insatisfeitos, o triunfo dos vencidos da vida.

VII

Para obter a revelação suprema da arte, era necessário, segundo nós, possuir um ingrediente psíquico, que, por não termos outra palavra melhor, chamávamo-nos de espírito.

Não é fácil para nós explicar o que é o espírito.

Desde logo, talento não o é. Certamente, há muitos filisteus com talento, só que não há nenhum que tenha espírito. Com talento, pode-se ser tudo: ministro, engenheiro, presidente da Suprema Corte, arqueólogo, professor, inventor revolucionário, bispo, matemático, médico, agitador operário, arquiteto, cônego, general, escritor, frade, escultor, pintor, talvez músico, sobretudo cantor, ainda em atividade. O que não parece mais possível é ser verdadeiro artista, verdadeiro filósofo, verdadeiro santo. E também é fato que, tendo espírito, é no mínimo indesejável, e de mau gosto, ser ministro, engenheiro, presidente da Suprema Corte, etc.

Não por isso se venha a pensar que o espírito é o gênio. Talvez o gênio não se dê sem espírito, pelo menos o verdadeiro gênio, porque por exemplo o falecido Edison, que todos tiveram por um gênio, para nós era um ser absolutamente desprovido de espírito. Por outro lado, o espírito pode-se dar sem gênio, porque, caso contrário, nós, que não éramos gênios – não se venha a pensar que nós nos tínhamos por gênios desconhecidos – não poderíamos ter espírito.

O espírito também não é o sentido estético, embora o verdadeiro, o fino sentido estético, quando é excepcional, seja compreendido no espírito. Mas este abrange muito mais. É, claro, algo que tem estreita relação com a razão e lhe serve de guia. É uma coisa que se resume a valores verdadeiros, e até mesmo àquilo que vai além dos valores, e poderíamos chamá-lo de sentido último das coisas.

O espírito não é patrimônio de todos os homens. Com relação a isso, nós vínhamos a classificar os homens, virtualmente, em três tipos, que venham a corresponder aos três tipos em que os diferenciavam os gnósticos e priscilianistas: hílicos, psíquicos e pneumáticos.

Homens vulgares, homens comuns, correspondem aos hílicos ou materiais; homens de talento, os meramente cerebrais, correspondem aos psíquicos; Os homens de espírito correspondem aos pneumáticos.

Ora, bem se pode compreender que as diversas épocas históricas se caracterizam, ou melhor ainda, resultam, do predomínio de um desses três tipos humanos.

Toda grande cultura surge de um estado anterior em que homens vulgares, hílicos, predominam e fazem história. E surge a grande cultura pelo aparecimento, senão repentino, pelo menos imprevisível e devido a causas desconhecidas, de um grupo de almas notórias, supernormais, de homens com espírito, que olham para o sentido e criam a protoforma daquela cultura. Aquela cultura cresce e se eleva pelo progressivo crescimento do espírito, até chegar a um ponto em que o impulso espiritual, caracterizado pela fé, pela inventividade, pela fantasia, pela felicidade, vai lentamente desaparecendo, e o talento, caracterizado pela razão raciocinante, pela crítica fria, pela regra e a medida, vai dominando o espírito. Lentamente vai crescendo a preponderância social dos filisteus, enquanto a crítica, rompendo com os fundamentos de tudo, minando a base espiritual da cultura e trazendo o primado da utilidade, da preocupação econômica, preocupação filistina por autonomásia, materializando a vida, vai fazendo com que esta volte a cair nas mãos dos vulgares, dos hílicos, que não são mais os vulgares ingênuos do primeiro estágio, senão os bárbaros armados de armas da cultura, aos que pertence o triunfo final.

É o que está sucedendo precisamente nos nossos dias.

Como se compreende, na era de predomínio do talento, cuja última etapa na cultura ocidental, ainda mais de ouvido do que de presença, concordamos que nós, homens de espírito, ainda que tolerados pela sociedade, não deixamos de ser considerados seres mais ou menos anormais, e ao mesmo tempo perigosos. Quando houver o futuro predomínio dos vulgares, eles provavelmente deverão ser perseguidos, ou pelo menos, tornarão a vida deles impossível.

Os homens de espírito, na era de predomínio do talento, tornam-se inadaptados. A história prova isso com a tragédia patente de quase todos os gênios desse tipo. Mas não conhecemos a tragédia silenciosa de todos os homens de espírito que não se tornaram gênios.

Por isso dissemos que o problema dos inadaptados era um dos grandes problemas dos declínios.

Daí a pena que se tem pela corrupção de tantos jovens agora, com espírito, que cheios de otimismo dão-se a servir aos ideais do nosso tempo. Era preciso que soubessem distinguir entre os ideais de uma época, imaginados pela consciência dos homens, e as tendências verdadeiras que inconscientemente os levam, na melhor das hipóteses, aonde não querem. Em tempos criadores, ideias e tendências muitas vezes coincidem; em tempos de dissolução, na maioria das vezes, ideais e tendências não combinam.

Quanto aos homens de espírito, nós os considerávamos antes como uma elite hiperconsciente que percebia a corrupção do mundo e procurava manter-se dela distante e afastada, recolhendo suas vestimentas para não emporcalhá-las no lamaçal da estrada.

VIII

Podemos agora considerar mais de perto o nosso caso, o caso dos inadaptados, para precisarmos melhor a nossa posição histórica. As considerações de Nikolai Berdiaev sobre o Renascimento e o humanismo nos dão uma nova luz sobre isso.

Não há dúvida de que, assim como nossos professores do Fin de siècle, como individualistas, enquanto centrífugos, enquanto cobiçosos de criação e criação própria, pertencemos ao humanismo. Também não há dúvida de que nossas ideias, enquanto pessimistas, enquanto introvertidas, em termos de irracionalistas e neorromânticas, são contrárias às dos humanistas ortodoxos.

Essa contradição seria explicada, dentro da concepção de Berdiaev – e isso coincide maravilhosamente com o exposto no parágrafo anterior – supondo que sejamos os últimos humanistas, colocados às portas da nova Idade Média.

A ideologia do Fin de siècle foi sobretudo um movimento de correção e volta, a última flor do humanismo. Descende do romantismo, que era, no pensamento, no sentimento e até na intenção, anti-humanista; mas, no entanto, o impulso central do Fin de siècle, como o do romantismo, foi humanista. Historicamente, continua tanto quanto contradiz o humanismo. E vivemos como quem põe um pé no Fin de siècle, ou no último humanismo, e outro na noite da nova Idade Média.

Dentro dos descendentes do Fin de siècle, continuamos a corrente mística do Romantismo (Schleiermacher, Schelling, Schegel, Novalis) e do mesmo Fin de siècle (Wagner, Verlaine, Maeterlinck), corrente que já existe no Renascimento.

Mística, no sentido de irracionalista, de apreciação da alma (espírito?) acima da razão; Somos o humanismo que anseia pela força da humanidade – a natureza humana – o renascimento da alma, como é o caso de Maeterlinck. O Fin de siècle olhou para a alma, e por isso foi neorromântico. Pouco importa que a alma imaginada não seja talvez a verdadeira.

E nós somos neorromânticos, trágicos e até apocalípticos. Levamos a soberba toda do humanismo conosco, querendo se lançar com ele na noite que se avizinha, uma noite que é um renascimento da alma, já que a luz das almas deve ser o oposto da dos corpos.

Somos o humanismo que se afasta soberbo do mundo corrompido, que quer formar o seu mundo, um mundo interior. É o verdadeiro sentido de recriação do mundo de Mallarmé.

IX

Tínhamos um mundo, um reino interior, somente acessível aos homens com espírito, um mundo onde os possíveis se realizavam.

O determinarmos a verdadeira natureza concreta desse mundo é ainda mais difícil que o determinar em que consiste o espírito.

Se era um mundo de sonhos, válido portanto – de acordo com as ideias ordinárias dos professores de filosofia – somente para os indivíduos que o leva dentro, ou um mundo de ideias platônicas, de espécies inteligíveis escolásticas, de conceitos kantianos, de valores pós-kantianos ou essências husserlianas, universalmente válidos, para todos os homens, ou um mundo de ultra realidades, talvez coincidente com a de nossa consciência post-mortem; ou com nossa consciência hipnótica ou sonolenta, ou com nossa consciência mediúnica, ou com nossa hiperconsciência estática, eu não saberia dizê-lo neste exato momento. Não vou dizer mais, ou pode ser qualquer uma dessas três coisas, ou as três ao mesmo tempo. E também que, de qualquer forma que fosse, era apenas para os excepcionais, para os superiores, para os escolhidos.

O contato, a interferência daquele mundo com o mundo normal dos homens, verificava-se na arte. A obra de arte, quando verdadeira, era uma revelação daquele mundo. O que não quer dizer que a natureza também não se mostre visível, principalmente em seu estado virgem, selvagem, intocada ou abandonada pelos homens.

Eu poderia acrescentar aqui como prova, muitas experiências pessoais. Mas não é bom falar muito sobre isso. Os homens de espírito já o entendem só de indicá-lo, e aos demais não vale a pena estender-lhes explicações.

X

Ora, a questão é como que sendo aquilo que éramos e somos, individualistas, inadaptados, antissociais, antigregários, introvertidos, poderíamos ir parar em algo que parece tão cotidiano e gregário, como é a nossa entrega à Galícia, que no fundo é a afirmação insistente e forte do povo galego.

A resposta está dada, muito melhor do que eu poderia ter feito, por Ramón Otero Pedrayo, em seu romance Ao redor de si.

Ao redor de si, mais do que um romance, é a autobiografia, não apenas de um homem, mas de um agrupamento, quase de uma geração. É a autobiografia da tertúlia do autor, ao qual eu também pertencia. Por seu próprio individualismo, por seu egocentrismo confesso, nosso grupo andava o tempo todo circulando em torno de si mesmo – e cada um em torno de si mesmo – sem se encontrar.

Já disse como peregrinamos pelas cosmogonias, pelas metafísicas e pelas estéticas. Pois bem, como aquele inglês de Chesterton que, depois de muitas viagens pelo mundo, encontrou uma terra desconhecida que acabou por ser afinal a Grã-Bretanha, igualmente nos passou a nós. Depois de tantas idas e vindas, depois de tantas voltas e reviravoltas pelas distâncias do espaço e do tempo, à procura de algo inédito que nos salvasse do habitual e vulgar, viemos a ceder na surpreendente descoberta de que a Galícia, a nossa Terra, oculta ao nosso olhar por um estrato espesso de cultura estrangeira, falsa e rude, vulgar e filisteia, oferecia-nos um mundo tão extenso, tão novo, tão inédito, tão desconhecido, como aqueles que andávamos a procurar daí adiante.

Para nos salvarmos do vulgar, para nos evadirmos do filisteísmo, para nos redimirmos do habitual, não precisávamos olhar longe: vinha com o olhar muito de perto, ao nosso redor, em nós mesmos, dentro de nós mesmos.

Ao nosso lado estava a nossa terra desfigurada e desconhecida, constituindo o ambiente natural em que talvez o nosso entendimento não tivesse se movido, mas no qual o nosso espírito certamente se movia, esse sinal da mão de Deus nas almas escolhidas, doando-lhe vida e seiva.

Dentro de nós, constituindo o mais profundo do nosso ser, estava a alma da Galícia. E tivemos que reconhecer, por mais individualistas que fôssemos, por mais finos e românticos, por mais sonhadores, por mais que alcançássemos essa identidade suprema, a verdade é que éramos assim porque éramos galegos, e que era o sangue dos nossos antepassados, dos fortes ártabros, dos feros guerreiros, que nos fazia sonhadores, românticos, distantes, individualistas. O conhecimento dessa verdade era o resultado necessário da introversão, da inundação de altivez e soberba em nosso próprio ser: foi o resultado preciso de nosso culto barresiano ao eu.

E explica-se também a nossa súbita conversão, e também a nossa adesão radical e fanática à fé na nossa terra, porque chegamos à alma da Galícia livres de todos os preconceitos, livres de toda a consideração e de todo o respeito pela cultura sobreposta que nos mascarou, nos desfigurou e falsificou a nossa Terra.

XI

Mas não está dito tudo: tendo chegado a este momento, ainda há o problema da nossa passagem da atitude contemplativa para a atitude ativa.

Pois, adquirida a convicção interior, pode o homem de espírito seguir por um destes dois caminhos:

  1. A persistência da introversão, no cultivo do eu, no gozo do que fica, na escolha do que cada um irá viver: evasão, reclusão do mundo interior, na torre de marfim. Como, por exemplo, de Des Esseintes.
  2. Extroversão no trabalho social: buscando moldar o mundo à nossa visão, para salvar nossos valores – daí o caminho da ação.

O segundo tem a desvantagem da luta, na qual pode ser derrotado. Mas deve-se ter em mente que, para um homem de espírito, uma vez conquistada a liberdade interior este já está salvo, e que, enquanto não realizado, ninguém pode jogar fora o nosso sonho, propriedade eterna nossa. O sonho talvez valha mais do que a realidade. A realidade é um momento histórico, enquanto o sonho, só de ser sonhado, já existe para sempre naquele mundo interior de que falamos e que se estende até o fim da eternidade.

E já que as coisas são assim, vejamos que o homem de espírito não está de todo perdido no trabalho social, pois enquanto sofre com os desprendimentos, e amarguras do mundo, há um pontinho central de seu ser que vive impassível na quietude, ainda que esteja ferido seu corpo ou alma.

Eis aqui um princípio para superar o neorrealismo idealístico, e também está implícito aqui que é preciso sempre ter um pouco de “viver sem viver em mim” – embora de forma alguma se deva escapar de seu ser concreto e atual de osso e carne. Precisamente, como bem observa Keyserling, uma das grandes superioridades do cristianismo consiste em ter posto em evidência a eternidade do ser concreto individual, do eu, deste que eu sou, imortal.

Com essa ressalva, não havia mais perigo de descer além do que fora para o campo de ação. Os puros ficavam, mesmo nela, livres da mediocridade.

1933

Ensaio traduzido por Tiago Barreira e publicado na obra Leria (Editorial Galaxia– 2020)

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