
“A sociologia simbólica de Buddha, Moisés e Rousseau nos ensina, pois, que há dois tipos essenciais de civilização: uma civilização espontânea secundum natura, própria dos homens e dos povos nômades e pastores de mentalidade intuitiva, de cultura empírica e tradicional, os filhos de Abel…, e a outra civilização, própria dos homens e dos povos sedentários e industriais, de mentalidade reflexiva, de cultura especulativa e dialética, agrupados por um vínculo artificial sustentado pela coação política e a elaboração racional da lei, os filhos de Caim…A primeira é a civilização dos povos orientais; a segunda é a que os gregos impuseram ao Ocidente. Os gregos, cainitas típicos, criaram definitivamente a cidade e sua civilização”
Vicente Risco
Na Europa se concebe a civilização como o triunfo do homem sobre a natureza. É isso o que distingue a civilização europeia das civilizações orientais. O europeu concebe a vida do homem como uma luta contra a natureza, ou ainda, do humano, ou seja o artificial, contra o natural; o europeu quer substituir as coisas naturais por mecanismos, e fazer triunfar a razão, que é um mecanismo espiritual, sobre o instinto. Tagore, o grande poeta indiano, faz notar esta tendência dos ocidentais, ao levantar entre estes e a natureza os muros isolados das cidades. “O Oeste – diz – parece ter orgulho em pensar que está subjugando a natureza, como se estivéssemos vivendo em um mundo hostil, onde tivéssemos que arrancar tudo que precisamos de um estranho arranjo das coisas mal dispostas. Este sentimento é o produto dos muros das cidades, hábito e educação da mente. Porque na vida da cidade, o homem naturalmente direciona a luz concentrada de sua visão mental sobre sua própria vida e obras, e isso cria uma dissociação radical entre ele e a natureza universal no meio da qual vive.” A intuição genial do indiano descobriu assim a diferença original entre as civilizações orientais e a civilização euro americana.
No Ocidente, então, a aspiração é violentar a natureza, para lhe impor a lei do homem, em substituição à ordem natural, uma ordem de intervenção natural; não é nenhuma outra coisa[1] a ciência europeia. Gravíssimas consequências disso são: primeiro, a incapacidade da mente ocidental para compreender a natureza e a produção de uma ideia falsa do mundo, que estudaremos mais adiante; segundo, que os homens do Ocidente tenham tomado o caminho da esquerda e criado uma civilização de Kali-Yuga. Violentando a natureza levou a violentar sua própria natureza; este fenômeno já tem sido estudado por sábios da Europa com o nome de degeneração.
No parágrafo citado de Tagore se vê como o pensador oriental atribui à vida nas cidades o sentimento de hostilidade contra a natureza, raiz de todos os preconceitos euro americanos. No mesmo capítulo diz ainda mais enfaticamente: “A civilização da antiga Grécia foi criada nos muros das cidades. De fato, todas as modernas civilizações têm berços de tijolo e cimento”. Esta ideia foi já expressada por Yhering ao ressaltar a cidade como berço da civilização, opondo a vida cidadã à vida rural, que é primitiva. Civilização vem de civitas, a cidade tem o mesmo sentido que urbanização. Homem civilizado é o homem civil, o homem da cidade, por oposição ao homem do campo, ao homem rural; civilização é cidadania. Se passa da barbárie à civilização, ao passar do nomadismo ao sedentarismo. Em último caso, civilizar-se é instalar-se.
O homem se civiliza quando se assenta em um lugar e levanta no seu entorno uma muralha que o separe da natureza hostil.
De acordo com essa ideia, o fundador da primeira cidade foi o fundador da civilização[2]. Historicamente, é impossível determinar quem foi o fundador da primeira cidade; porém há acerca disso uma tradição muito instrutiva. Diz o Antigo Testamento; “E conheceu Caim sua mulher, a qual concebeu e deu à luz a Enoch: e edificou uma cidade e chamou o nome da cidade do nome de seu filho Enoch.” Caim foi, pois, o fundador da primeira cidade, ao menos no sentido europeu… Este de Caim e Abel é o mais profundo dos símbolos históricos. Personificam dois modos de vida: o nomadismo e o sedentarismo; duas civilizações: o Oriente e Ocidente… No Gênesis – como para Rousseau – Abel, o pastor, o nômade, o bárbaro, é o bom; Caim, o industrial, o sedentário, o civilizado, é o mau. Não se tem estudado bem a relação entre a narração bíblica e a ideia rousseauniana do contrato social, já exposta pelo Buddha. O contrato social representa a substituição dos grupos humanos naturais (tribo, clã, família) por agrupamentos artificiais ou cidades. A cidade é já o estado, e o contrato social é a origem da civilização caimita.
Só que Rousseau supõe que isto se deu de forma pacífica, e a Bíblia nos diz, – e ele é muito significativo – que a mão que lançou as bases da primeira cidade foi a mão manchada com o primeiro sangue humano que se derramou sobre a terra, foi a mão fratricida de Caim. Recordem da lenda que ligou quase sempre a recordação de um crime à da fundação das cidades mais famosas; assim a de Babilônia com o parricídio de Semíramis; a de Roma com o fratricídio de Rômulo. Recordem que durante muito tempo foi costume degolar ou enterrar vivo um ser humano sob os muros[3] de todo grande edifício, para assegurar sua durabilidade. Quando os costumes se suavizaram, se substituiu a vítima humana por um animal ou uma imagem de cera. Hoje, quando se coloca a primeira pedra de algum edifício se jogam primeiro algumas moedas…Preço do sangue de Abel?[4]…Além disso, o princípio de violência simbolizado pelo assassinato, persiste como coação na manutenção da disciplina cidadã. A morte de Abel não foi mais do que o começo da Kali-Yuga.
A sociologia simbólica de Buddha, Moisés e Rousseau nos ensina, pois, que há dois tipos essenciais de civilização: uma civilização espontânea secundum natura, própria dos homens e dos povos nômades e pastores de mentalidade intuitiva, de cultura empírica e tradicional, unidos em agrupamentos naturais, os filhos de Abel…, e a outra civilização, própria dos homens e dos povos sedentários e industriais, de mentalidade reflexiva, de cultura especulativa e dialética, agrupados por um vínculo artificial sustentado pela coação política e a elaboração racional da lei, os filhos de Caim…A primeira é a civilização dos povos orientais; a segunda é a que os gregos impuseram ao Ocidente. Os gregos, cainitas típicos, criaram definitivamente a cidade e sua civilização. Tagore o indica em suas palavras que citamos antes. O civismo, a consciência da polis, brotou na alma helênica e nos foi transmitido por nossa educação clássica. Nenhum povo possuiu como o grego um espírito organizado e linear geométrico.
Encerra isso algum mistério histórico? Não se extinguiu a posteridade de Caim. Madame Zenaide Ragozin em sua História da Caldeia, comentando o capítulo X de Gênesis, observa que quando a família de Noé saiu da Arca e desceu do monte Ararat, buscou um país habitado para estabelecer-se, e encontrou uma planície no país de Semar… Havia, pois, outros homens na terra, e quem haviam de ser, senão os descendentes de Caim? Não vou reproduzir as explicações de Madame Ragozin; mas se efetivamente fora assim, não seriam os gregos da linhagem do primeiro construtor de cidades?…
Agora bem, a cidade evolui até a colmeia, implica uma crescente servidão que afasta o homem da natureza, e o deforma para adaptá-lo a um meio artificial e deletério na qual a espécie degenera rapidamente. Assim se criou um novo tipo humano, que podemos chamar o homo urbanus, o homem adaptado à vida da cidade, fisiologicamente desequilibrado, castrado em seus instintos, domado pela civilização, socialmente escravo, preso às exigências coletivas, nutrido de convencionalismos e de preconceitos e guardando no fundo de seu coração os vícios de Caim: a avareza, a irreligião e a inveja. Definiríamos isso como o homem degenerado na domesticidade. Esta é a fórmula natural do europeu.
À margem da civilização fica o homo rusticus. Como consequência, a adaptação à vida da cidade é lenta e difícil. Assim ainda nos países que se dizem civilizados, se conserva intacta a rusticidade dos homens do campo, e sobretudo, se conserva entre eles o tesouro das tradições teóricas do nomadismo, as noções sagradas da sabedoria antiga, o folclore, tão cruelmente combatido pelo ensino estatal. Ainda dentro das cidades mais artificializadas de Europa e América, dentro das organizações sociais mais ferrenhamente disciplinadas, vivem também muitíssimos homens que espiritual e ainda fisiologicamente são, não só rústicos, senão verdadeiros nômades. A garantia de progresso na cidade reside neste elemento nômade que contém. Porque a cidade, produto do sedentarismo, é propensa necessariamente à imobilidade, à rigidez. Contra esses inadaptados, contra esses refratários tem que lutar a sociedade cidadã para a sua própria conservação, para lhes impor a lei, a disciplina social e cívica. Estes, verdadeiros antissociais, reagem sempre contra o perigo de sua absorção no grupo social organizado, e são os revolucionários, os artistas, os vagabundos, os criminosos. Renouvier[5] assinala dois tipos de resistência à cidadania nos tipos morais: os rebeldes e os gênios, aos quais estão situados os inadaptados, que são os que tendem a defender o seu tipo e alterar suas noções naturais para acomodar-se às exigências ambientes, ou seja, os urbanizados, os filisteus…
Ao final disso tudo, não acharemos estranho que atribuamos à civilização cidadã, ou caimita, a degeneração orgânica, a perversão do caráter e a subversão dos valores culturais no Ocidente[6].
Texto retirado da obra O Ocaso do Ocidente (Tinieblas del Occidente), conjunto de manuscritos de Risco publicados postumamente em 1990 (Sotelo Blanco Edicións – Vicente Risco. Edição: Manuel Oteriño). Tradução: Tiago Barreira
[1] [N. do Ed.] Spencer, Herbert (Derby, 1820-Brighton). Filósofo, teceu uma síntese do conhecimento a partir da investigação científica dos fenômenos biológicos e sociais. Ele acreditava no desenvolvimento contínuo das espécies das formas mais simples às complexas, ancestral das pesquisas de Darwin, que o tiveram por um dos primeiros evolucionistas. Spencer foi um dos pensadores ingleses mais mencionados e discutidos no período vitoriano. Suas primeiras obras (The Proper Sphere of Government, 1843; Social Statistics, 1851) reivindicaram o liberalismo econômico e social e precederam sua posterior defesa do individualismo (The Man versus the State, 1884). Sua principal obra, A Filosofia Sintética, é uma extensa obra planejada em 1846 e concluída em 1860 contendo volumes sobre os princípios da biologia, psicologia, moral e sociologia. Spencer, uma figura bem controversa, contava entre suas amizades George Eliot, T.H. Huxley, John Stuart Mill e Beatrice Webb.
[2] Reproduzo uma passagem de Ordem e Caos muito ligada ao que é exposto neste capítulo:
“… Também é necessário admitir que a cultura material se desenvolveu muito rapidamente, pois os filhos de Adão já haviam praticado a agricultura e o pastoreio, e Caim construiu a primeira cidade. Não pode haver dúvida, portanto, de que houve uma degeneração em grande parte da humanidade primitiva, isto é, de todos aqueles núcleos que estavam descolados do núcleo humano primitivo original, o único que preservava a revelação primitiva. As culturas que a pré-história nos faz conhecer são as desses grupos degenerados. Em vez disso, no núcleo humano original…”
V.R., Orden y Caos, Exegesis de los mitos (Madrid: Editorial Prensa Española, 1968), págs. 39-40
A referência também aparece em A História do Diabo:
“Caim fundou a primeira cidade, mas não só a cidade, mas a vida da cidade; seus descendentes inventaram as ciências e as artes: Lameque inventou a poesia e a poligamia, Jubal os instrumentos da música, Tubalcaín o trabalho dos metais, isto é, a vida da cidade com seus bens e seus males. O diabo cobra seu preço pelo pecado…”
V.R., História do Diablo (Vigo: Edições Gerais da Galiza, 1985), p. 1985. 87.
[3] [4] Quase a mesma passagem pode ser lida em A História do Diabo. Veja a seguir:
“É curioso que Caim, o fratricida, tenha sido o fundador da primeira cidade. Desde então, a fundação de uma cidade está muitas vezes ligada a um crime, até mesmo a um fratricídio, como o de Rômulo: a cidade mais famosa do mundo também tem um fratricídio no início de sua história. Roma subsiste do sangue de Reno, derramado por seu irmão, possivelmente é isso que a torna “Eterna” (…) O fato é que foi adotado o costume de fazer um sacrifício humano preceder a fundação da cidade: um escravo, um inimigo, foi decapitado, a fim de levantar as torres e bastiões em seu corpo, ou ele foi enterrado vivo na muralha; era o representante do irmão do fundador, era Remo, a memória e a imagem de Abel… A quem, senão o diabo, poderia ser oferecido tal sacrifício? … Quando na construção de um templo, de um palácio, de qualquer outro edifício público, erguidas hoje sobre a “primeira pedra”, que às vezes é abençoada com cerimônia cristã, outras vezes é colocada com um ritualismo cívico presunçoso, algumas moedas são depositadas; (…) Alguém disse que essas moedas são o resgate do sangue do sacrifício.
Então Caim construiu a primeira cidade e a nomeou em homenagem a seu filho Henoch, de modo que a primeira cidade se chamava Henochia.”
V.R., História do Diablo (Vigo: Edições Gerais da Galiza, 1985) p. 1985. 88 e 89.
[5] Renouvier, Charles-Bernard (Montpellier, 1815- Londres, 1903). Um filósofo idealista que rejeitava qualquer conexão necessária entre leis universais e moralidade. Academicamente, Renouvier escreveu prolificamente e com grande engajamento. Ele tomou a filosofia crítica de Kant como ponto de partida, mas chegou a conclusões muito diferentes. Ele defendeu, por exemplo, que os fenômenos são apenas aparências próprias. Embora a relação satisfaça todas as categorias de conhecimento, cada fenômeno é apreensível em relação a outros fenômenos.
[6] O que é levantado neste capítulo está no cerne do artigo Estudos sobre o Romantismo, datado de 1925, podemos ler nele:
“Em primeiro lugar, o romance é o oposto do clássico: é o sentido medieval da vida por oposição ao sentido helênico – liberdade em oposição ao geométrico – o musical em oposição ao plástico… O romantismo é oriental, é nórdico e é cristão.”
V.R., Leria (Vigo; Editorial Galaxia, 1961), páx. 148.
A relação do helenismo – simbolicamente atacado por Risco na sua primeira fase intelectual (“Agora tenho que abençoar o explosivo que partiu em dois o Parthenon”) enquanto relacionado ao tema dos filisteus – segue abaixo essas linhas da Mitteleuropa:
“O classicismo é frio demais para ser bom. O classicismo ignora Cristo; mas por Cristo ou contra Cristo, o Romantismo é muitas vezes cristão. O classicismo ignora o pecado – se ele mesmo não é mais um pecado contra o espírito, não contra o espírito como os classicistas e filósofos modernos o entendem: espírito, razão, inteligência teórica, etc.; mas contra o verdadeiro espírito, cujo protótipo é o Espírito Santo, que desceu a uma figura de chamas, de fogo, não só de luz, como quer ser o espírito dos filósofos, mas ao mesmo tempo é calor, paixão, loucura da Cruz… -; O romantismo pode ser apreciado no pecado, mas muitas vezes tem a noção de pecado, a mais cristã das noções, alheia ao classicismo.”
V.R., Mitteleuropa (Vigo; Galáxia, 1984. 82 e 83).