
A rede de estradas de peregrinação interconectadas a Santiago de Compostela, os Caminhos de Santiago, teve um papel histórico destacado na formação cultural, econômica e social da Espanha e Península Ibérica. Dentre as diversas rotas de peregrinação, a mais conhecida internacionalmente é o Caminho Francês, inscrita como Patrimônio da Unesco pela sua riqueza cultural, artística e paisagística. O Caminho Francês foi berço da língua castelhana e contribuiu para o surgimento de importantes cidades históricas do Norte da Espanha, bem como de um dos reinos cristãos mais poderosos da Reconquista Ibérica: a Coroa de Castela e Leão.
Tiago Barreira
A cidade de Santiago de Compostela é considerada um dos grandes ímãs culturais da cristandade europeia. A cidade foi epicentro de uma tradição espiritual que, durante a Idade Média, serviu historicamente de legitimação política da Reconquista Ibérica e de expansão dos reinos cristãos ao sul da Península contra o domínio islâmico. A sua importância como cidade santuário do apóstolo Santiago Maior foi tamanha para a história ibérica e europeia que, durante o período medieval, era colocada no mesmo status religioso que Roma e Jerusalém.
Em paralelo à sua expansão como centro de peregrinação, iniciada com a descoberta da tumba do apóstolo Santiago Maior na Galícia no século IX, se desenvolveria ao longo dos séculos posteriores uma rede de estradas e rotas de viajantes romeiros. Esta rede de estradas e cidades interconectadas, hoje chamada de Caminhos de Santiago, e atualmente uma importante fonte de atividade turística na Espanha, teve também um papel histórico destacado na formação cultural, econômica e social da Espanha e Península Ibérica.
Os Caminhos foram não apenas uma rede de transporte de peregrinos, como também um meio importante de conexão, difusão e circulação de bens econômicos e ideias intelectuais. Pelos Caminhos chegaram a Compostela, além de romeiros, também trovadores, monges letrados e bispos. De Santiago, por sua vez, partiram diversos teólogos e mestres que ensinariam nas Universidades de Bolonha e Paris.
Dentre as diversas rotas de peregrinação a Santiago de Compostela, a mais importante e conhecida internacionalmente é o Caminho Francês, que corta a região compreendida pelo sul da França, atravessando o monte dos Pireneus, e passando pelas regiões espanholas de Navarra, Castela e Leão, em direção ao seu destino final, Santiago de Compostela, na Galícia. Esta rota, dada a sua riqueza cultural, artística e paisagística, está inscrita como Patrimônio Mundial da Unesco desde 1993.
Historicamente, o Caminho Francês contribuiu para o surgimento de importantes cidades históricas espanholas na Idade Média, como León, Astorga, Burgos e Pamplona. Ao redor destas cidades se estruturariam os principais reinos católicos que organizaram expedições militares em direção ao sul da Península Ibérica para a reconquista do território muçulmano, como os reinos de Castela, Aragão e Leão. É também nesta região que nasceria a língua castelhana, em particular ao redor do território compreendido por Burgos, antiga capital do Reino de Castela.
Assim como os descobrimentos de terras americanas dos séculos XVI povoaram o imaginário europeu de exploração de terras desconhecidas do Oeste, de pioneiros em busca de ambições de glória e ouro, similar desejo de ambição movia a nobreza cristã francesa e europeia do século XII a uma “marcha ao Oeste” para desbravar as novas terras ibéricas recém conquistadas, em busca de glórias de conquistas militares e riquezas de novas terras.
O Caminho Francês, aberto no século XII, integrou e conectou a Península Ibérica ao sul da França e, em consequência, ao restante da Europa Ocidental. O Caminho, sendo um meio de circulação de ideias, bens e pessoas, ajudou a trazer à Península Ibérica influências intelectuais e artísticas da cultura carolíngia francesa, que detinha, como centros de irradiação, mosteiros como a abadia de Cluny. Um exemplo destas influências está a arquitetura gótica. Mestres de obras vindos de França deixaram importantes igrejas e mosteiros na região, dentre as quais se destaca a Catedral de León.

É em León que se estabeleceu a sede de um dos mais poderosos reinos ibéricos da Reconquista, a coroa de Leão e Castela. Atualmente capital da comunidade autônoma de Castela e Leão, León, que conta atualmente com mais de 124 mil habitantes, é localidade de um importante patrimônio histórico de prédios, obras e pinturas sacras em museus, conventos e igrejas. É na basílica de San Isidoro de León que se encontra sepultado uma das principais expressões intelectuais da Patrística Latina, Isidoro de Sevilha (560-636), que viveu durante o período visigótico espanhol (século V-VIII), antes das invasões muçulmanas na Península.
Um importante tesouro histórico presente na cidade é o Cálice de Dona Urraca. Segundo documentos medievais procedentes da Universidade Al-Azhar do Cairo, o Cálice é proveniente do Santo Sepulcro de Jerusalém, e transladado no século XI, então sob posse do califa egípcio, à Espanha. O cálice foi dado de presente pelo Emir de Denia, uma pequena taifa da Península, ao rei leonês Fernando I, como uma forma de frear ataques militares cristãos a cidades muçulmanas do sul.

Composto de duas peças de pedra Ágata datadas do século I d.C e adornado por pedras preciosas, pertenceu à filha primogênita do rei Fernando I, Dona Urraca (1033-1101), a Senhora de Zamora, e uma figura célebre mencionada nos poemas El Cid. O Cálice se encontra atualmente exposto no museu San Isidoro de León.
Importantes especulações foram levantadas ao redor da relíquia. Proveniente do Santo Sepulcro de Jerusalém, e venerado desde o século IV até o saque do templo por muçulmanos em 1009, investigações recentes levantam a hipótese, a partir das fontes documentais de Al-Azhar, de que este tenha sido o verdadeiro cálice Santo Graal utilizado por Cristo na Última Ceia.
Algumas lendas foram surgidas ao redor do Cálice, como a de que a pedra ágata guardaria propriedades milagrosas de cura. O mesmo documento citado também relataria que, ao ser transladado em viagem à Espanha, uma lasca de pedra teria se desprendido do cálice. O pedaço teria sido enviado a Saladino, e teria sido utilizado para curar sua filha, colocando o pedaço de pedra sobre seu corpo.
A poucos quilômetros de León, outra cidade importante da rota do caminho francês é Astorga. Sendo uma cidade milenar e fundada durante o período romano, deve-se destacar que esta cidade fora sede de uma das mais antigas dioceses episcopais cristãs da Península Ibérica, surgidas entre os séculos II e III. Levanta-se hipóteses de que a cadeira do episcopado tenha sido fundada pelo próprio Santiago Maior, instalada quando este ainda evangelizava na Espanha, no século I. Destruído pelas invasões muçulmanas, e repovoado com a Reconquista, a cidade guarda um importante patrimônio arqueológico do período romano, conservado e exposto em museus da cidade. A muralha romana da cidade é um outro monumento relevante correspondente ao período.

Na região ao redor do núcleo urbano Astorga está concentrada a comunidade dos maragatos, nome dado à população local autóctone, que habita o território de modo contínuo durante mais de 5.000 anos. O grupo populacional dos maragatos, que possui uma identidade cultural muito peculiar e própria de vestimentas e danças, cumpriu um papel importante para a integração econômica do Caminho Francês e o noroeste da Espanha. Esta região, composta atualmente pela Região autônoma de Castela e Leão, vivenciou um importante florescimento econômico a partir das atividades de transporte e comércio exercidas pelos mercadores maragatos. Estes se encarregavam no transporte mercantil entre os produtos pesqueiros do mar da Galícia até a capital da Espanha, Madrid, cujos habitantes recebiam o gentílico de “gatos”. Daí a origem do termo maragato: “do mar aos gatos”.
Os maragatos são os ancestrais culturais diretos da cultura gaúcha, uma vez que contribuíram para a imigração na região da Patagônia e do Prata, de Argentina e Uruguai, a partir do século XVIII. Do Uruguai, uma parcela colonizaria zonas do território brasileiro, compreendendo o atual Rio Grande do Sul. Durante todo o século XIX, os maragatos teriam um papel ativo na política do Sul brasileiro, tendo formado parte das forças insurrecionais da Guerra dos Farrapos. A revolução federalista rio-grandense de 1893 também seria chamada de “Revolução dos Maragatos”, estando os maragatos do lado das forças liberais e descentralizadoras federalistas.
Referências
Cáliz de doña Urraca. Wikipedia. https://es.wikipedia.org/wiki/C%C3%A1liz_de_do%C3%B1a_Urraca <Acesso em 15 de Março de 2024>
El origen de los maragatos, un pueblo con entidad propia en Castilla y León. El Español. https://www.elespanol.com/castilla-y-leon/region/20230805/origen-maragatos-pueblo-entidad-propia-castilla-leon/784171683_0.html <Acesso em 15 de Março de 2024>
Sala del Cáliz. Museo de San Isidoro. https://www.museosanisidorodeleon.com/sala-del-caliz/ <Acesso em 15 de Março de 2024>
Una breve aproximación a los Maragatos. Blog Raíces de Tradicion https://raicesdetradicion.blogspot.com/2013/09/una-breve-aproximacion-los-maragatos.html <Acesso em 15 de Março de 2024>
Villares, Ramón (2023). Galicia e Portugal: Irmandade e Fronteira. Editorial Galaxia.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.