Brasil: um nome de origens célticas? – Tiago Barreira

O mapa da Europa de 1595 de Abraham Ortelius mostra a Ilha Brasil. Reprodução: Public Domain


Os povos celtas, a partir da Europa Central, espalharam sua cultura e línguas pela Europa Ocidental pré-romana, incluindo França, Grã-Bretanha, Irlanda e Península Ibérica. Estudos linguísticos sugerem que a língua celta teria persistido na Península Ibérica até o século XI. A ilha mítica Hy-Brasil, ou a “Ilha da Felicidade”, presente em narrativas legendárias célticas, pode ter influenciado o nome do Brasil. Apesar de controvérsias quanto ao tema, a questão da presença celta na formação cultural e linguística de Portugal, Espanha e Brasil é ainda pouco estudada e deveria ser objeto de maiores investigações acadêmicas.

Tiago Barreira

Os povos celtas formam parte de uma das principais culturas europeias provenientes dos povos de língua indo-europeia, juntamente com os latinos, gregos e germânicos. Segundo estudos da arqueologia moderna, os celtas deixaram como um dos seus vestígios históricos mais antigos os assentamentos urbanos na região dos Alpes, datados do período da idade de ferro (1200-400 a. C.) [1]. Este povo, de origens nômades e sedentarizado desde a Europa Central, teria proliferado a partir desta região sua cultura e línguas pelo restante da Europa Ocidental e, segundo fontes clássicas, alcançado as regiões da França, Grã-Bretanha, Irlanda e Península Ibérica durante o período pré-romano.

Heródoto no século V a.C falava de um “país dos celtas” constituído pelo outro lado da Europa cortada na metade pelo rio Danúbio. Menções à cultura, língua e cultos religiosos célticos na Península Ibérica podem ser encontradas em documentos de Plínio o Velho no século I a.C[2].

Os povos celtas, segundo escavações arqueológicas de assentamentos encontrados na Europa Central e datados do final da Idade de Ferro, teriam obtido um grau importante de desenvolvimento populacional e urbano, se envolvido em trocas comerciais e econômicas com gregos e romanos, e adotado a escrita e alfabeto destes. Os celtas teriam também deixado vestígios escritos importantes, como inscrições, dedicatórias a divindades e epitáfios em lápides escritas em língua céltica, espalhadas por todo o continente europeu[3].  Outra marca importante, estudada pela filogenética, é a presença concentrada de halogrupos genéticos R1b em populações das Ilhas britânicas e Norte da Europa, determinantes de características recessivas, como cabelos ruivos[4].

Na Península Ibérica, os celtas migrantes teriam se misturado com os povos autóctones peninsulares no período pré-romano, vindo a compor a cultura celtíbera ao centro da Espanha. Também contribuíram para a formação dos lusitanos, em Portugal, os vetones, na atual região de Ávila e Salamanca, os galaicos no Noroeste da Espanha e os astures, no litoral do mar Cantábrico.

Distribuição da população céltica na Península Ibérica durante o período pré-romano. Reprodução: Región de Ballutia.

As regiões de influência céltica da Península Ibérica, a partir as invasões romanas, permaneceriam durante séculos sob domínio estrangeiro, latino mediterrâneo e posteriormente germânico. Contudo, apesar da assimilação cultural de impérios e povos vizinhos, seus costumes, tradições e folclore se mantiveram intactos dentro de tradições rurais camponesas, nas quais podemos encontrar hoje valiosos resquícios etimológicos de topónimos locais, nomes e palavras em línguas ibéricas como o português, o galego e o castelhano.

É no norte da Espanha que a cultura céltica teria deixado uma das marcas mais expressivas em toda a Península. O filósofo e antropólogo galego Vicente Risco descrevia como sete as nações célticas que teriam conservado a cultura e língua celta de forma mais intacta: Terras Altas escocesas, Ilha de Man, Irlanda, País de Gales, Cornwall, Bretanha e o noroeste da Península Ibérica, na região composta pela atual Galícia e o Norte de Portugal.

De acordo com Risco, a língua portuguesa, em conjunto com a sua língua irmã galega, seria uma ramificação do tronco linguístico celta, uma língua franca peninsular durante o período pré-romano. Estudos etimológicos e linguísticos do filólogo Higino Martins tendem a ir em direção a esta tese, apontando evidências de que a língua celta não teria desaparecido completamente na Península Ibérica com a latinização romana, tendo subsistido e perdurado como língua franca peninsular entre as classes populares até o ano 1000, e em algumas localidades, por um período até mais prolongado.[5]

Os castros são restos de antigas cidades fortificadas do período prerromano, que podem ser encontradas em uma grande área do noroeste da Península Ibérica. Alguns estudiosos atribuem origens célticas. Reprodução: Diario del Viajero

Segundo Higino Martins, mais de 400 palavras da língua portuguesa possuem origens etimológicas atribuídas à língua celta[6]. Encontramos origem celta em palavras como “gaita”, “frango”, “abóbora”, nomes como “Osório” e topônimos como “Braga”. Do nome Gaia (de Kala, “abrigo”), proveria a raiz para Galícia (de Kalláikia) e Portugal (derivando ao latim Regnum Portucalensis).

Um outro curioso exemplo de palavra de raiz celta está no próprio nome do Brasil, um nome presente desde o período medieval e antigo, encontrado em narrativas literárias de língua céltica.

A ilha Hy-Brasil

Desde o século XIX, alguns estudos já apontavam evidências de que o nome Brasil não teria se originado da cor da madeira em brasa, tendo já havido referências etimológicas muito anteriores ao seu descobrimento, na mitologia e língua céltica.

Para o filólogo Higino Martins, Hy Brasil reflete o gaélico Uí Breasail “descendentes de Breasal”. Breasail é genitivo de Breasal, nome de um herói mítico cuja forma mais antiga documentada é Bressual[7]. O nome possui ligações com a ilha utópica do Hy-Brasil, uma ilha mítica localizada ficticiamente no Altântico, e descrita em narrativas e poesias irlandesas.  O sentido seria “Terra dos Bem-Afortunados”, “Ilha da Felicidade” ou “Terra Prometida”, já que a raiz “bres”, em irlandês, também significa “nobre, sortudo, feliz, encantado”.  [8]

O folclore celta menciona lendas da ilha Hy-Breasial como uma localização fantasma, ao qual muitos navegantes a buscam para não voltar mais. Em Traces of the Elder Faiths of Ireland: A Folklore Sketch (1902), W.G. Wood-Martin tem uma seção que trata desta lendária ilha, localizada no Oceano Atlântico, a oeste ou sudoeste da Irlanda[9]. O tema inspirou diversos poemas, entre os quais do irlandês Gerald Griffin (1803-1840):

On the ocean that hollows the rocks where ye dwell

A shadowy land has appeared, as they tell:

Men thought it a region of sunshine and rest,

And they called it Hy-Brasil, the isle of the Blest.

A ilha céltica possui correspondências com outra lenda similar do período antigo e medieval, a lenda das Ilhas Afortunadas, de origem grega. As Ilhas Afortunadas aparecem documentadas desde autores do período clássico como um paraíso terrestre. Plutarco, em Vida de Sertório, fazia referência às “Ilhas Afortunadas” como um lugar localizado no Atlântico que acomodava o Campos Elísios, uma região abençoada onde os heróis e as almas favorecidas eram recebidas pelos deuses após a morte. Nestas ilhas “o ar nunca era extremo, e que para chuva tinha um curto orvalho prateado, do qual dele próprio sem labor, brotava todos os frutos agradáveis para seus felizes residentes”[10].

O mito das Ilhas Afortunadas se fundiria com o mito irlandês da ilha Brasil na Idade Média. Sérgio Buarque de Holanda, em Visões do Paraíso, também descreve que as lendas arturianas de origem céltica e anglo-normanda fazem referências a Ilhas Afortunadas[11], habitadas por homens de elevada longevidade, onde os campos não necessitam “do arado do lavrador e nem requerem outros cuidados além dos que lhes dá a natureza”. E que ali “se produzem grãos com rara fertilidade”, e que de tudo produz o solo espontaneamente, e o “Homem vive cem anos e mais”.

E por fim, também muito difundidas no período foram as lendas medievais das viagens de São Brandão, este um monge irlandês que teria visitado as Ilhas Afortunadas no Atlântico e nelas encontrado o jardim do Éden. Esta ilha seria também conhecida como a ilha de São Brandão[12], o que reforçaria o mito céltico e grego no imaginário coletivo dos exploradores portugueses e espanhóis.

A cartografia medieval europeia incluiria com grande constância a Ilha do Brasil, em conjunto com outras ilhas míticas, como a ilha de Antilha, da São Brandão, das Sete Cidades e as Ilhas Afortunadas[13]. A ilha Hy-Brasil aparece cartograficamente em mapas de 1325, 1436 e 1480 [14], em posições variando entre o oeste da Irlanda, deslocando-se para a região dos Açores e indo até o Caribe[15]. Segundo Sérgio Buarque, o topônimo, em sua forma “Obrasil”, aparece em mapas portugueses de Fernão Vaz Dourado de 1563 e 1570, neste último mapa em particular já figurando acima da própria terra descoberta por Pedro Álvares Cabral. Buarque ainda afirma que, antes de 1568, já temos o nome “Hobrasill”, juntamente com o do cabo de Santo Agostinho, aplicado a terras do Brasil atual[16].

Neste sentido, o pau-brasil não seria a fonte do nome da terra do Brasil, mas sim a terra “do Brasil” que teria dado o nome à madeira. A árvore receberia seu nome do fato de que os portugueses vinham buscar a “madeira do Brasil”, em referência à ilha Brasil da cartografia medieval, termo este já existente em plena Idade Média e antes da chegada cabralina em 1500. O nome da madeira se confundiria ao final com o dos habitantes do país através do termo “brasileiro”, termo usado desde o início para designar o comerciante de pau-brasil, à semelhança de “baleeiro” e “negreiro”, comerciantes de baleia e de escravos[17].

Conclusão

A língua escrita e falada compõem os principais veículos de propagação de histórias, contos e tradições narrativas de um povo, perpetuando a sua memória e identidade pelas gerações e séculos. Se a língua celta pôde se conservar tão viva em povos da Península Ibérica, sobrevivendo, segundo especialistas, a até mesmo períodos de dominação romana e germânica (até os séculos X e XI), não seria absurdo supor que a memória coletiva céltica e a sua comunidade de vivos e mortos (traditio), contada e repassada entre avôs, pais e filhos também tenha sobrevivido.

A ilha utópica de Hy-Brasil, entendida como uma Terra de Felicidade, é parte de um tema recorrente na literatura fantástica europeia que habitava o imaginário medieval, na qual as narrativas transmitidas pelas línguas célticas tiveram um papel importante na construção deste imaginário, culminando nos Grandes Descobrimentos ibéricos dos séculos XV e XVI.

Ainda não temos vestígios concretos e nem sabemos ao certo até que ponto estes mitos e narrativas célticas teriam penetrado o imaginário popular ibérico do período medieval, algo que requer maiores investigações. O tema das origens etimológicas célticas na língua portuguesa também é um tópico obscuro e alvo de controvérsias no meio acadêmico. Alguns especialistas tendem a rechaçar a tese de predominância étnica e linguística céltica na região da Península Ibérica, e que sua presença seria muito atenuada pela mistura e miscigenação com povos autóctones locais.

Contudo, apesar de todas as controvérsias e indefinições quanto ao tema, deve-se considerar que a ligação do nome do Brasil com uma ilha mitológica irlandesa, bem como a presença de um termo mítico celta entre os mapas portugueses, encontrado em lendas irlandesas, ao ponto de servir de fonte de inspiração ao nome de toda uma nação, não podem ser tomadas como fruto do mero acaso fortuito. E ainda surge outra questão: seria a madeira da ilha Brasil a dar o nome ao país ou seria a identificação da nova terra a dar nome ao pau-brasil?

O tema das origens celtas do nome Brasil, e as ligações entre cultura céltica e brasileira, ainda é infelizmente pouco explorado por pesquisadores brasileiros, sejam eles   historiadores   ou   críticos   literários. Há, portanto, ainda muito a ser pesquisado, tanto sobre as origens celtas do nome da Terra brasilis como das raízes célticas que estão presentes e impregnadas na língua e cultura popular e no cotidiano deste os tempos da colônia.

Tratam-se de temas constantemente desprezados pelos pesquisadores, muito fruto de uma mentalidade lusófoba anticolonialista cultivada na intelectualidade brasileira desde o modernismo de 22, que insiste em repetir com novas roupagens as velhas ideias de construir uma nova autenticidade nacional, mas que muito reluta em aceitar que aquilo que há de mais autêntico, original e inconsciente em nós, a nossa língua, nossas aspirações coletivas e memória, de origens medievais e europeias.

Referências


[1] Zapatero, G. R. (2024). Celtas. Un pueblo de hierro (I): Los celtas en Europa: poblamiento y cultura. Fundación Juan March. <https://canal.march.es/es/coleccion/celtas-pueblo-hierro-i-celtas-europa-poblamiento-cultura-45814> Acesso em: 20 de Março de 2024.

[2] Fuentes históricas que hablan de los celtas en la Península Ibérica. Ástures.es. <https://astures.es/fuentes-historicas-que-hablan-de-los-celtas-en-la-peninsula-iberica/> Acesso em: 20 de Março de 2024.

[3]Cólera, C. J. (2024) Celtas. Un pueblo de hierro (III): Las lenguas de los celtas <https://canal.march.es/es/coleccion/celtas-pueblo-hierro-iii-lenguas-celtas-45832> Acesso em: 20 de Março de 2024.

[4] Los Hiperbóreos: El Pueblo Celta. Enciclopedia Celta. <https://enciclopediamedieval.wordpress.com/2018/10/25/los-hiperboreos-el-pueblo-celta/>. Acesso em: 20 de Março de 2024.

[5] Ver entrevista sobre este ponto: <https://despertadoteusono.blogspot.com/2016/02/entrevista-ao-professor-higino-martins.html> Acesso em: 20 de Março de 2024.

[6] Esteves, H. M. (2018). Etimologias Obscuras ou Esconsas. Academia Galega da Língua Portuguesa.

[7] “Vendryes tira-o de bres “combate”, tema feminino em Ā, isto é, do protogaélico *BRITSĀ ou *BRISSĀ, céltico mais antigo *BRISTĀ, por sua vez do indo-europeu *bhristā.” (Esteves, 2018), p.35.

[8] Funari, P. P. (1997) Brasil’, um nome celta que habitava o imaginário medieval. Folha de S. Paulo.<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/4/28/turismo/18.html>

[9] The Phantom Island of Hy-Brasil in Irish Myth & Fable. Mythical Ireland. <https://mythicalireland.com/blogs/myths-legends/the-phantom-island-of-hy-brasil-in-irish-myth-fable>. Acesso em 20 de Março de 2024.

[10] Plutarco (1919). Life of Sertorious. Vol. VIII. <https://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Plutarch/Lives/Sertorius*.html> Acesso em 20 de Março de 2024

[11] de Holanda, S. B. (2010). Visão do paraíso. São Paulo: Companhia das Letras. p. 312.

[12] Ilhas Afortunadas. Wikipedia. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ilhas_Afortunadas> Acesso em 20 de Março de 2024-

[13] Brasil (ilha Mítica). Wikipedia. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Brasil_(ilha_m%C3%ADtica)> Acesso em 20 de Março de 2024.

[14] Esteves, H. M. (2018).

[15] “A procura da Ilha do Brasil foi uma constante nas navegações renascentistas do Atlântico até 1624. Desde o oeste da Irlanda, seu lugar inicial, a posição da suposta ilha migrou para oeste, primeiro para os Açores, onde a atual ilha Terceira aparece por vezes com esta designação e onde, muito antes de 1500, já a península fronteira à cidade de Angra ostentava o nome de Monte Brasil, que hoje mantém. Dos Açores deslocou-se para sudoeste, primeiro para as Caraíbas, para depois se fixar no litoral do atual Brasil.” Brasil (ilha Mítica). Wikipedia.

[16] de Holanda, S. B. (2010). Visão do paraíso. São Paulo: Companhia das Letras. p. 209.

[17] Funari, P. P. (1997)

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