Reflexões sobre o Mito e Fantasia em Tolkien – Tiago Barreira

Imagem: 360meridianos.com

O que mais me agrada em autores do século XX, como J.R.R Tolkien (1892-1973), é a revalorização do mito e da épica no mundo contemporâneo. Revalorizar o mito épico e a narrativa de fantasia nos dias atuais não é um retorno ao irracionalismo, nem a uma espécie de ingenuidade infantil. Trata-se, sim, de uma tentativa de resgatar um gênero literário esquecido, dentro de sua devida esfera, como fonte de verdade e inspiração imaginativa humana.

Tiago Barreira

O gênero literário da fantasia constituía no passado um instrumento potente de transmissão da sabedoria acumulada pela humanidade, mas que está em desuso hoje, diante de uma modernidade que relativiza o valor dessa sabedoria, desprezada pelo homem massificado e posta em dúvida pelo cientificismo.

Hoje, dá-se atenção demasiada ao poder da razão e da vontade para se entender a conduta humana. É moda falar de treinamentos e exercícios de “mindsets”, como se somente pela força de vontade fosse possível reprogramar e condicionar a maneira como pensamos e nos comportamos. Como cães adestrados.

Algumas pessoas defendem que as ideias condicionam nosso modo de viver e perceber o mundo, nossas preferências, gostos, afinidades, vínculos de amizade, etc. Basta acreditar em uma ideia abstrata e moldar uma vida ao redor dela. “Escolha a sua ideologia de vida”, dizem. Como se esta fosse um produto a ser selecionado livremente em um supermercado. Eu escolho ser católico, muçulmano, de direita ou de esquerda, etc. Como se viver fosse uma mera questão de escolher papéis de personagens cosplay para interpretar, pegar uma espada, amar amigos e odiar inimigos, segundo roteiros racionais definidos.

Mas o ser humano é complexo e profundo. Uma pessoa pode pensar e escolher viver de uma forma, mas sentir e desejar o contrário. A roupagem cosplay do nosso pensamento ideológico é apenas uma camada muito superficial de nossa verdadeira atividade mental, uma máscara daquilo que realmente somos.

Há um substrato que movimenta nossas ações de maneira mais forte e autêntica do que a camada volitiva e intelectiva humana. É a camada da imaginação. Nossos sonhos, aspirações futuras, modelos ideais de conduta moral (heróis, etc.). Isso opera mais no nível do inconsciente e é mediado por símbolos inconscientes, e não por ideias racionais conscientes. Escolhemos racionalmente tudo o que queremos ser, dentro do campo de possibilidades de ser delimitado pela nossa imaginação. A imaginação é o motor autêntico da vida humana; a razão é o volante que aponta para onde queremos seguir.

Se não há imaginação, o carro não se move. Não vai a lugar nenhum. Por isso, sublinho a importância do inconsciente. E o tipo de inconsciente que temos não depende das escolhas individuais racionais e ideológicas que fazemos, mas do ambiente ao nosso redor, da cultura, da nossa formação familiar, da comunidade a que pertencemos, etc., que não escolhemos. Sem nos darmos conta, esse inconsciente e a imaginação de base coletiva e cultural nos atualizam como seres humanos e nos fazem tornar aquilo que autenticamente somos.

A fantasia e o mito remetem àquilo que a psicologia de Agostinho chamava de memória, uma das três potências constitutivas da mente humana, em conjunto com o intelecto e a vontade. É na memória que reside acumulado todo o universo pré-racional e afetivo humano, a imaginação adormecida, potencialmente em nós.

Tudo isso se encaixa muito bem com a perspectiva literária de Tolkien. Tolkien compila e evoca uma série de mitos de diferentes tradições civilizacionais, com grande força poética. Ele desperta arquétipos e símbolos tão necessários à vida humana atual, que não são criações pessoais suas, mas parte de um um patrimônio coletivo de milênios, comum e imaterial da humanidade.

Tolkien, desse modo, disponibiliza uma ferramenta poderosa que falta nos dias atuais: o despertar do poder da imaginação. Isso não tem nada a ver com política ou religião. É pré-racional e pré-ideológico. É tradicional, perene e milenar.

A Teoria dos Quatro Discursos aristotélica, do professor Olavo de Carvalho, ressalta muito a importância da imaginação e da memória imaginativa como fonte da inteligência e moralidade racional humana. A imaginação inconsciente, que reside na memória, é precisamente esse substrato e solo que, uma vez despertado, faz desenvolver e realizar toda a vida racional consciente.

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