Afinal, letra de música é ou não é poesia? – Bernardo Souto

Bob Dylan (1941-). Reprodução: RTVE.es

A recente atribuição do Nobel de Literatura ao cantor e compositor norte-americano Bob Dylan pôs novamente o assunto em evidência. Afinal de contas, o que de fato diferencia o poema da letra de música?  Nos próximos parágrafos, direi o que penso a respeito, a fim de acrescentar algumas informações ao já riquíssimo corpus existente.

Bernardo Souto

       O saudoso poeta Bruno Tolentino –  em artigo publicado no Jornal do Brasil em agosto de 1995, e republicado recentemente como apêndice da nova edição de sua Balada do cárcere (Record, 2016) – explica muito bem a enorme diferença que há entre poesia e letra de música:

Letra não é texto, é subtexto, até porque é esta a sua função. Hofmannsthal, o maior poeta austríaco do século [20], era também o autor dos libretti para as óperas de Strauss, mas não os reuniu às suas Poesias completas, pela óbvia razão de que a autonomia do poema é de outra ordem. Auden jamais sonhou incluir seus libretti para Stravinsky e Britten nos Collected longer poems,  porque não são poemas, são poéticos, como bem disse o Sr. Lyra, o que não basta para se constituírem em obra literária.  (…) Fernando Pessoa chamou à poesia ‘a música que se faz com as idéias’; os franceses chamam suas letras de paroles e não de vers…  As palavras para um texto musical, mesmo erudito, não aspiram sequer à condição de arte autônoma, menos ainda à de poema. Quanto às palavrosas ‘idéias’ dos senhoritos do telecoteco, protestando contra suas “exclusões” de uma Antologia de Poetas, são apenas simplórias, bamboleiam entre o violão, o tamborim na marcação e o reco-reco.  E não se trata nem sequer de coisa deles: é fruto podre de outra armação dos notórios irmãos Campos, que por sua vez copiavam (como é de seu hábito) a tese-hipótese, abortada nos anos 60, do crítico inglês Frank Kermode em favor do letrismo dos Beatles como sendo poesia. Foi-se ver, riu-se muito e nunca mais se ouviu falar dessa tolice no mundo (como se sabe, civilizado) de língua inglesa.[i]

     De tempos em tempos, esse debate volta à tona. A recente atribuição do Nobel de Literatura ao cantor e compositor norte-americano Bob Dylan pôs novamente o assunto em evidência. Afinal de contas, o que de fato diferencia o poema da letra de música?  Nos próximos parágrafos, direi o que penso a respeito, a fim de acrescentar algumas informações ao já riquíssimo corpus existente.

        Na canção musical, como bem percebeu Manuel Bandeira, a letra está como que “algemada à melodia”[ii]. A observação de Bandeira é bastante esclarecedora, uma vez que a melodia da canção, muitas vezes, nasce antes da letra (é importante salientar que canção musical não tem nada a ver com a canção poética, que é uma fôrma lírica surgida no medievo europeu).  Já na poesia lírica, o campo de força sonoro, para usarmos uma expressão cara a Emil Staiger[iii], é construído através da recorrência intencional de certos sons semelhantes, tais como: rimas, paranomásias, paralelismos, aliterações consonantais, assonâncias, etc.; também é arquitetado pela cadência e pela modulação rítmica e acentual (ou seja, a melodia é intrínseca). A poesia lírica não deve ser moldada por nenhum elemento extrínseco ou exterior, sob pena de redirecionar a correnteza da linguagem, interferindo naquilo que Valéry chamou de “permanente oscilação entre som e sentido”[iv] – fenômeno que se dá no seio mesmo da esfera sonoro-semântica do poema durante a sua gestação.

    É que ritmo do poema, como bem observou Vladimir Maiakóvski, nasce do “fluxo do psiquismo”[v], que está diretamente ligado à Stimmung – isto é, à “disposição anímica” através da qual “o sujeito mergulha em si mesmo”, nas palavras de Staiger –. Ocorre que, quando existe a presença de um elemento extrínseco – por exemplo, a melodia de origem instrumental –, essa “disposição anímica” passa a ser pré-determinada, interferindo na sondagem autêntica do psiquismo profundo.

     Para o poeta inglês Wordsworth, poesia é “emotion recollected in tranquility” (“emoção recolhida na tranquilidade”), recolhida dos recessos mais profundos da alma, onde medra a recordação. “O passado como tema do lírico é um tesouro de recordação”, diz-nos Staiger. É bastante significativo, a propósito, o regate etimológico da palavra recordação feito pelo ensaísta alemão: re-cordar (do latim re-cordis, que significa trazer de volta ao coração).

     Fica claro, portanto, que a poesia possui uma densidade bem diversa da canção musical popular – esta, em geral,  estruturada de maneira simples, visto que o seu objetivo primordial é o entertainment, o que praticamente a obriga a ser de fácil assimilação: em suma, a possuir um tecido metafórico bem menos sofisticado e um ritmo que é refém da melodia extrínseca. Além disso, como observou Tolentino, as melodias instrumentais, por via de regra, estão demasiado presas ao  Zeitgeist, ao espírito da época.

      Outro ponto interessante é o seguinte: tanto os textos dos salmos bíblicos como os poemas de provençais de Arnaut Daniel, de Guilhem de Poitiers ou de Bernart de Ventadorn eram acompanhados por instrumentos musicais, e não pré-moldados para se encaixar em melodias produzidas por instrumentos de corda ou de sopro.

         Podemos concluir, pelo que foi dito acima, que há diferenças muito significativas entre a natureza do poema e a natureza da canção musical, o que não quer dizer que a questão esteja encerrada. É que, embora não aconteça com frequência, existem algumas letras de música que se sustêm como poemas de valor.  São os casos, por exemplo, das milongas produzidas pelo grande escritor argentino Jorge Luis Borges (como a Milonga de Manuel Flores e a Milonga de Calandra), ambas incluídas pelo autor portenho em suas Poesías Completas[vi].

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BIOBIBLIOGRAFIA

Natural do Recife (PE) e nascido em 1982, Bernardo Valois Souto é bacharel em Letras/ Crítica Literária pela Universidade Federal de Pernambuco, e mestre em Literatura e Cultura: Estudos Comparados pela Universidade Federal da Paraíba, onde defendeu dissertação sobre a obra do poeta e ensaísta Manuel Bandeira. Publicou poemas e ensaios em revistas literárias como: Zunái, Germina, Eutomia (UFPE), Tom, Cronópios, Vila Nova, Síntese, Unamuno, dentre outras. Ao longo dos últimos dez anos, escreveu vários prefácios. Seus principais livros de poesia são os seguintes: “O corvo e o colibri” (Editora Mondrongo, 2015) e “A Aridez das Horas” (Editora ViV, 2020) e “O Rosto do Invisível” (Editora Mondrongo, 2024). Graças à publicação de “A Aridez das Horas”, recebeu o Prêmio de Poesia da Academia Pernambucana de Letras, em 2020. Em 2013, organizou e prefaciou o livro “O canto da esfinge” – seleta de poemas de Ângelo Monteiro. Lecionou Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa e Teoria da Literatura na Faculdade de Formação de Professores de Araripina, em Pernambuco, por vários anos. Atualmente, está redigindo um livro de História da Literatura Luso-Brasileira para uma editora de Minas Gerais.

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BIBLIOGRAFIA BÁSICA

[i] TOLENTINO, Bruno. A Balada do Cárcere.  Rio de Janeiro: Record, 2016. pp. 177- 179.

[ii] BANDEIRA, Manuel. Manuel Bandeira: Poesia e Prosa (vol. 2). Rio de Janeiro: José Aguilar, 1958.

[iii] STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.

[iv] VALÉRY, Paul. Variedades. Tradução Maiza Martins de Siqueira. São Paulo Iluminuras, 2011.

[v]  MAIAKÓVSKI, Vladimir. “Como fazer versos?” in SCHNAIDERMAN, Boris. A poética de Maiakóvski. São Paulo: Perspectiva, 1971.

[vi] BORGES, Jorge Luis. Poesía completa. Barcelona: Debolsillo, 2015.

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.

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