A “Nave Espacial Terra” e a Economia Ecológica de Kenneth Boulding

A Nave Espacial Terra (Spaceship Earth), monumento do EPCOT Center, Orlando na Flórida. A metáfora ecológica da Terra como uma Nave inspirou diversas utopias sociais futuristas no século XX. Reprodução: Wikicommons

A Teoria circular ecológica do economista Kenneth Boulding (1910-1993), expressada em sua metáfora de “Nave Espacial Terra”, é definida como organismo vivo autorreprodutível que realiza interações de troca entre homem e meio ambiente, oferecendo uma visão estruturada para o equilíbrio entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental. O enfoque de Boulding buscava unificar aspectos econômicos, biológicos, sociológicos e psicológicos, com a intenção de reconstruir a economia. Sua visão pretendia “reunir o homem econômico, biológico, sociológico, psicológico e até mesmo religioso, reintegrando o que foi fragmentado”.

Tiago Barreira

Introdução

No artigo anterior, analisamos a economia ecológica de Nicolas Georgescu-Roegen e a sua teoria entrópica, que uniu a economia com a biofísica termodinâmica. Suas críticas ao modelo mecanicista e matemático neoclássico foram fortemente influenciadas pelo pensamento austríaco de Schumpeter durante sua estadia em Harvard, nos anos 1930. A bioeconomia de Georgescu influenciou toda uma geração de ecologistas nos anos 1970 e inspirou movimentos radicais da Deep Ecology em países desenvolvidos, focados em políticas estatais de decrescimento econômico e desindustrialização. Políticas estas que, muito embora tenham sido rejeitadas pelo romeno Georgescu-Roegen, que era, pessoalmente, um desertor de um regime totalitário.

Neste ensaio, abordaremos outra importante teoria econômica que influenciou o ecologismo moderno: o modelo circular do economista Kenneth Boulding. Diferentemente do pessimismo da bioeconomia, o modelo econômico circular de Boulding admite a possibilidade de uma economia estacionária autossustentável, aceitando, em parte, o mecanicismo neoclássico como parte integrante de um sistema multinível de trocas entre economia e meio ambiente.

A Economia circular

A economia circular pode ser definida como um sistema econômico baseado na reutilização, troca, reparação, recondicionamento, remanufatura e reciclagem de materiais, com o objetivo de minimizar o consumo de recursos, os resíduos e as emissões, em particular por meio do design circular de produtos e processos de produção. (União Europeia, 2023)

A economia circular busca, em resumo, preservar o valor dos produtos, materiais e recursos durante o maior tempo possível e minimizar os resíduos. O conceito de economia circular, portanto, apresenta-se como um contraponto ao conceito de economia linear predominante no processo de produção econômica, no qual não há preocupação com a destinação e reaproveitamento dos resíduos.

Nas últimas décadas, a busca pela utilização eficiente e reutilizável dos recursos faz parte da agenda política de governos e organismos internacionais, como a União Europeia, destacando-se no seu Plano de Ação para a Economia Circular (2015) e no Pacto Ecológico Europeu (2020). Este último formula um objetivo ambicioso de dobrar a participação de materiais reciclados e reincorporados à economia da UE até 2030.

Kenneth Boulding, teórico da economia circular

Kenneth Boulding (1910-1993) foi um economista e filósofo estadunidense, nascido em Liverpool, no Reino Unido, e um dos teóricos fundadores da economia ecológica nos anos 1960 e 1970. De formação familiar protestante quaker e com uma vida marcada pelo ativismo pacifista e ambiental, suas teorias econômicas ecológicas serviram de base para o desenvolvimento do pensamento econômico circular.

Kenneth Boulding (1910-1993). Reprodução: Wikicommons

Nascido na Inglaterra, completaria sua formação universitária nos Estados Unidos na década de 1930, país onde desenvolveria toda a sua carreira acadêmica. Estudante da Universidade de Chicago e de Harvard, teve como professores importantes economistas neoclássicos, como Frank Knight. Assim como Georgescu-Roegen, Boulding também foi aluno de Schumpeter em Harvard.

Suas investigações vão além da economia, abrangendo um interessante leque de disciplinas diversas, que incluem biofísica, ética e cibernética. Seu grande foco de investigação estava no desenvolvimento de uma teoria integrada das ciências, fundada na interdisciplinaridade entre ciências humanas e naturais, uma preocupação comum entre os teóricos vinculados à economia ecológica.

Seu foco interdisciplinar de investigações e visão ética de mundo também guardam vínculos profundos com sua formação protestante quaker, levando-o a pesquisas pela paz. Foi autor de importantes obras que analisam os condicionantes econômicos da paz internacional. Sua formação protestante também o levou a ter uma visão de mundo avessa ao centralismo estatal e voltada para a busca de uma sociedade de trocas voluntárias e pacíficas. Curiosamente, nos anos 1960 e 1970, ele demonstrou preferência pelo Partido Republicano dos EUA, o que o distanciava bastante da visão política de um ativista ecologista anticapitalista dos dias atuais.

A abordagem interdisciplinar de Boulding para as ciências sociais se consolidou após sua transferência para a Universidade de Michigan, em 1949, e durante suas pesquisas no Centro de Estudos Avançados em Ciências do Comportamento (CASBS), entre 1954 e 1955. (Hammond, 2003) Sua estadia no CASBS, nos anos 1950, levou-o a aprofundar e consolidar um dos fundamentos teóricos de sua economia ecológica circular: a Teoria Geral de Sistemas (TGS).

A TGS, estabelecida inicialmente pelo biólogo Ludwig von Bertalanffy no século XX, foi amalgamada por Boulding com a teoria da cibernética, propondo a possibilidade de um sistema global fechado e autorreprodutível mediante a adequada integração de subsistemas, incluindo o econômico. (Hammond, 2003)

Deve-se ressaltar o contexto intelectual histórico do surgimento da TGS e a grande importância dada, no período, aos estudos da cibernética, como legado da era da Segunda Guerra Mundial, marcada pelo surgimento da teoria da informação, dos computadores e da tecnologia armamentista, que moldaram o pensamento sobre a natureza dos sistemas complexos. (Hammond, 2003)

Nesse contexto, a TGS foi desenvolvida em centros de pesquisa americanos financiados por fundações como a Rockefeller, e esteve entrelaçada com o desenvolvimento das ciências do comportamento, em seus esforços mútuos para integrar os conhecimentos das ciências naturais e sociais na compreensão do comportamento humano, percebido como uma tarefa particularmente crítica no contexto da Guerra Fria. Esses estudos desembocariam na economia ecológica de Boulding entre os anos 1950 e 1960.

O enfoque de Boulding na TGS buscava unificar aspectos econômicos, biológicos, sociológicos e psicológicos, com a intenção de reconstruir a economia. Sua visão pretendia “reunir o homem econômico, biológico, sociológico, psicológico e até mesmo religioso, reintegrando o que foi fragmentado”. (Hammond, 2003) Seu trabalho teórico principal, a teoria ecológica do capital, proporcionou uma visão holística que transcendeu disciplinas.

Esse enfoque faz com que Boulding compreenda a estrutura econômica não apenas como um subsistema com leis internas próprias de organização, mas também como parte de um “sistema multinível”, impactado externamente por leis que regem outras estruturas sistêmicas hierárquicas, abrangendo desde o nível mais básico de organização (físico-natural) até o nível mais complexo (sistemas éticos, simbólicos e culturais).

Essa definição do sistema econômico como parte de um sistema multinível e impactado externamente por sistemas mais complexos leva Boulding a uma interpretação muito distinta da análise da dinâmica e dos conceitos econômicos da economia neoclássica.

As seguintes características definem a economia como um subsistema multinível na visão de Boulding:

  1. Crítica à distinção entre economia normativa e positiva, com ênfase em uma análise econômica centrada no estudo ético dos valores na sociedade;
  2. Preferências de consumo endógenas e subordinadas a valores éticos definidos por sistemas sociais e culturais;
  3. Ênfase no capital social em detrimento da ideia tradicional de fluxo de renda;
  4. Ênfase na ideia de estacionaridade[1] econômica e na defesa da minimização do consumo e da produção.

A Metáfora da “Nave Espacial Terra”

Esse pensamento culminou em seu conceito de economia de “nave espacial”, formulado por Boulding em The Economics of the Coming Spaceship Earth (1966), e fundamenta sua influência no desenvolvimento da economia do estado estacionário.

A metáfora da “nave espacial” propôs um sistema econômico estático, finito e fechado, com mudanças circulares entre bens econômicos, recursos e resíduos naturais e biológicos. A produção econômica é limitada pela quantidade de recursos materiais físicos disponíveis no ambiente natural e biológico. Nesse enfoque, adota-se o conceito de níveis hierárquicos de complexidade, oriundo da teoria geral de sistemas.

Com relação à ideia de recursos naturais, o enfoque da “nave espacial Terra” estabelece uma analogia entre os recursos naturais e o capital, mas utilizando um conceito de capital diferente daquele tradicionalmente empregado pela Economia na análise da produção. Esse conceito se aproxima mais do que hoje chamamos de “capital social”, com a capacidade de gerar não apenas externalidades do tipo tradicional, mas mudanças mais profundas em elementos que a Economia normalmente considera exógenos (como, por exemplo, as preferências). (Hammond, 2003)

A ênfase no capital social em detrimento da ideia tradicional de fluxo de renda implica, em Boulding, uma defesa pela minimização do consumo e da produção.

A TGS e os níveis Hierárquicos de Subsistemas

Baseando-se em sua formação em biologia e ciências sociais, os fundadores da Teoria Geral dos Sistemas (TGS) se envolveram no campo emergente das ciências do comportamento, com foco especial na psicologia da organização social. Russell Ackoff, cujo interesse pela TGS evoluiu a partir de seus trabalhos em pesquisa operacional e teoria da gestão, identifica três tipos de sistemas: tecnológicos, biológicos e sociais. (Hammond, 2003)
O enfoque de Boulding sobre a TGS supõe a existência de níveis hierárquicos de complexidade nos sistemas de organização econômica, ambiental, biológica e física. Esses níveis abrangem nove categorias, desde os mais simples (subsistemas atômicos) até os mais complexos (subsistemas simbólicos):

  1. Estruturas básicas do universo, como a disposição de elétrons em um átomo ou a anatomia de um gene.
  2. Mecanismos simples, como o sistema solar ou máquinas (como alavancas e polias).
  3. Sistemas de controle, como termostatos, que mantêm um equilíbrio dado.
  4. Sistemas abertos automantidos, como as células, onde começa a vida.
  5. Plantas, com diferenciação de partes e crescimento segundo um plano.
  6. Animais, com mobilidade, comportamento teleológico e órgãos sensoriais desenvolvidos.
  7. Seres humanos, dotados de autoconsciência.
  8. Organizações sociais, cuja unidade é o “papel” em vez da pessoa.
  9. Sistemas transcendentes culturais, que incluem o absoluto e o incompreensível, mas também mostram estrutura e relações sistemáticas.

Essa classificação oferece uma visão holística sobre a variedade de sistemas no universo, desde os mais simples até os mais complexos e abstratos. A economia é um subsistema que, em grande parte, tem se baseado na teoria do equilíbrio simples e em mecanismos dinâmicos, centrados no autointeresse e na utilidade. Embora esse enfoque tenha sido útil em suas fases iniciais, ele ainda não incorporou conceitos mais avançados, como o da informação. Segundo Boulding, a economia dificilmente passou do nível (iii).

Em resumo, a principal diferença entre a ideia de Boulding e a de outros autores da economia ecológica, como Nicolas Georgescu-Roegen, está na ideia de que o mecanicismo da teoria econômica é parte de um sistema hierárquico maior.

As Raízes intelectuais da TGS

O biólogo e filósofo Ludwig von Bertalanffy (1901-1972), pai da Teoria Geral de Sistemas. Reprodução: Wikicommons

A Teoria Geral de Sistemas, consolidada por Boulding nos anos 50, possui raízes intelectuais em pensadores e cientistas do século XX. A popularidade dos conceitos de sistemas em meados do século XX resultou de uma convergência de avanços tanto no campo biológico quanto no tecnológico. Este último deu origem a organizações sociais cada vez mais complexas e fomentou a preocupação com a gestão de “sistemas” sociotécnicos de larga escala, como redes de energia, transporte e comunicação.

O biólogo e filósofo austríaco Ludwig von Bertalanffy (1901-1972) é geralmente considerado o pai da Teoria Geral de Sistemas. Ele via a TGS como um esforço para descobrir padrões universais de organização, reconhecendo, ao mesmo tempo, que existiam qualidades emergentes únicas em cada nível de organização e, por isso, buscava distinguir entre os princípios que eram comuns a todos os níveis e aqueles específicos de níveis individuais. (Hammond, 2003)

As influências mais significativas na evolução de seu pensamento vieram de filósofos e místicos, incluindo Heráclito, Nicolau de Cusa e Leibniz. (Hammond, 2003). Bertalanffy referiu-se à concepção de Heráclito da realidade como um fluxo incessante de acontecimentos: “Nós mesmos não somos os mesmos de um momento para outro”. Embora o organismo pareça persistente, ele é, na verdade, a manifestação de um fluxo perpétuo, um sistema aberto em um estado estacionário dinâmico. O organismo nunca está em equilíbrio estático no sentido mecânico e mantém-se em um estado de não equilíbrio ao receber um suprimento contínuo de energia e ao trocar componentes com o ambiente. (Hammond, 2003)

Portanto, seu conceito do organismo como um sistema aberto deriva dessa compreensão da natureza dinâmica da estrutura orgânica, no equilíbrio autorregulador entre assimilação e decomposição, importando matéria e energia do ambiente e exportando sua entropia ou resíduos. (Hammond, 2003)

E ainda, de acordo com Bertalanffy, uma abordagem organicista reconhece a natureza hierárquica da organização nos sistemas naturais e exige a investigação dos fenômenos em todos os níveis, desde o físico-químico até o celular, o orgânico e mesmo o supraindividual. Cada nível, argumenta ele, caracteriza-se por novas propriedades e novas leis, bem como por graus crescentes de liberdade, permitindo a autonomia da vida. Antecipando a hipótese de Gaia, Bertalanffy escreveu que toda a vida na Terra poderia ser vista como o nível mais alto de organização.

Paralelos entre a TGS e a Ordem Espontânea hayekiana

Deve-se ressaltar os profundos paralelos do sistema aberto da Teoria Geral de Sistemas estabelecido por Bertalanffy, marcado por sistemas naturais e sociais hierárquicos autoorganizados espontaneamente como organismos vitais, com a visão hayekiana de uma ordem auto-organizada espontaneamente. A visão holística da sociedade, que se comporta analogamente a um organismo natural autorregulado internamente e sem um comando central que lhe dite ordens externas, consiste precisamente na ideia justificadora de uma ordem econômica e social fundada em relações contratuais voluntárias.

Ao desenvolver a TGS, Bertalanffy enfatizou o caráter autônomo, ativo e auto-organizado da vida e sociedade humana, rejeitando veementemente os modelos mecanicistas do comportamento humano, como o modelo estímulo-resposta da psicologia behaviorista. Atraído pela visão holística da escola de psicologia da Gestalt, Bertalanffy considerava que a concepção behaviorista do organismo como totalmente passivo contribuía para uma visão da humanidade que justificava formas totalitárias de controle social. (Hammond, 2003)

Conclusão

A Teoria circular ecológica de Boulding, expressada em sua metáfora de “Nave Espacial Terra”, é definida como organismo vivo autorreprodutível que realiza interações de troca entre homem e meio ambiente, oferecendo uma visão estruturada para o equilíbrio entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental. Esta ideia guarda raízes profundas com seu interesse interdisciplinar pela busca de uma ciência unificada que integrasse ética, economia e ciências naturais.

Deve-se ressaltar que esta visão orgânica de Boulding não necessariamente implica em planejamento centralizado. Boulding, enquanto aluno de Schumpeter, Frank Knight e outros professores da Escola de Chicago, e também de formação nitidamente quaker protestante, receberia uma visão de mundo avessa ao centralismo estatal e voltada para a busca de uma sociedade de trocas voluntárias pacíficas.

O sistema aberto de Boulding herdado de Bertalanffy, antimecanicista e de base organicista vitalista, se alinha perfeitamente com as preocupações antitotalitárias dos referidos pensadores. Cada nível de sistema, desde os níveis inferiores das células até níveis complexos de sistemas éticos-culturais, opera internamente segundo suas leis próprias e interagem externamente entre si, contribuindo organicamente para o equilíbrio dinâmico do todo.

Muito embora tenha raízes anti-intervencionistas, o modelo organicista e holístico de Boulding, assim como o modelo entrópico de Georgescu-Roegen, infelizmente foi reinterpretado ideologicamente à luz do planejamento estatal ecológico. A ideia de nave espacial Terra é uma ideia muito influente nos dias atuais, influenciando modelos utópicos de planejamento social, como encontrados atualmente no Pacto Ecológico conduzido pela Comissão Europeia.

Referências

Boulding, K. E. (2013). The economics of the coming spaceship earth. Environmental quality in a growing economy (pp. 3-14) RFF Press.

Hammond, D. (2003). The science of synthesis: Exploring the social implications of general systems theory University Press of Colorado.

União Europeia (2023). Economía circular Transición lenta de los Estados miembros a pesar de la acción de la UE. Informe Especial 17/2023. Tribunal de Contas Europeo.


[1] O que em português traduzimos como “estado estacionário” na verdade engloba dois termos diferentes utilizados na literatura anglo-saxã: stationary state e steady state. O “estado estacionário” de Boulding é uma recuperação do conceito de stationary state dos economistas clássicos, como Adam Smith ou J.S. Mill. Trata-se de uma situação de equilíbrio à qual a economia tende a longo prazo, caracterizada pelo esgotamento das possibilidades de crescimento. Por outro lado, na literatura econômica do século XX em diante, o que se entende por “estado estacionário” corresponde ao conceito de steady state, que representa o equilíbrio de um sistema dinâmico (conceito derivado da física), um equilíbrio que implica uma taxa de crescimento constante (positiva, negativa ou nula). Para complicar ainda mais, na economia ecológica, costuma-se utilizar o conceito de steady state em um sentido diferente: como uma situação de equilíbrio sustentável, na qual a economia opera sem exceder as capacidades do ecossistema circundante.

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