
O objetivo deste artigo é demonstrar o infundado das hipóteses avançadas pelo psicologismo para a explicação das leis lógicas e da teoria do silogismo em particular. Com efeito, as leis lógicas enquanto tais não podem compreender-se como redutíveis a meras vivências empírico-psicológicas, como as explicava Heymans, posto que, dessa forma, o estatuto ontológico de legalidade-validade de uma lógica pura, que é a fenomenologia mesma, tal qual ela se apresenta nas Investigações Lógicas, não se apreende, em absoluto.
Pedro Araújo
1. Introdução
O pensamento fenomenológico tal como desenvolvido e apresentado nas Investigações Lógicas assume o feitio de uma lógica pura, que se contradistingue de uma lógica normativa, na qual se concedem as leis lógicas para o pensar correto. Este estado de coisas objetivo tem muitas consequências: a primeira e mais importante é a de que se pode ver, por essa distinção, in nuce, todos os equívocos enunciáveis pelo psicologismo em geral. Com efeito, se um proponente da tese psicologista, por exemplo, enuncia que o princípio de não contradição consiste numa mera impossibilidade fática de que duas contraditórias sejam verdadeiras, ao fim e à réstia, o que ele estaria dizendo é que algo como a lógica deveria reduzir-se a enunciações possíveis sobre o pensar correto, de sorte que, afinal, a ele permaneceriam indistintas a lógica pura (reine Logik) e a lógica normativa (normative Logik); esta se fundamentando na primeira, em fenomenologia das Investigações Lógicas. Pode-se mesmo dizer que todo o intento de Husserl se extrai de uma atividade teorética direcionada ao estabelecimento do fundamentum inconcussum do conhecimento em geral, o que o encaminha para, como se disse, a fundação de uma disciplina tal – a lógica pura, leia-se, a fenomenologia – sem a qual esse estabelecimento não se poderia pensar. A tematização expressa da teoria do silogismo sob a tética psicologista mostrar-nos-á como as asserções apresentadas há pouco podem e serão fundamentadas tal e como se deve. Por consequência, siga-se a essa tematização.
2 A teoria do silogismo sob a tética psicologista
A tese psicologista possibilita apenas certa compreensão equivocada da teoria do silogismo, porque esta teoria compreende-se, pela tética psicologista, enquanto um caso particular abrangido pela axiomática das leis psicológicas que regem, ex hypothesi, o entendimento humano. Assim, deduz-se que todo o conteúdo de inteligibilidade da teoria silogística fundamenta-se nos axiomas que puderem determinar-se pelas pesquisas empíricas na ciência psicológica, de modo que, afinal, se julgue desnecessária qualquer fundamentação, puramente ideal, a respeito do que constitua, de fato, os princípios lógicos em geral e a teoria silogística, em particular.
De imediato, Husserl (HUA XVIII, 111, p. 78)[1] argumenta que pela mera noção de “falácia lógica” pode concluir-se do desacerto dos pressupostos da tese psicologista, no que eles implicam de consequências para a sustentação coerente do que a tese intenciona explicar. Pois, com efeito, de toda e qualquer falácia lógica constatada em algum argumento, colhe-se, necessariamente, certa situação objetiva de estado de coisas que esse argumento não apresenta, justo por sua falácia, a qual, em razão das condições formais que a constituem, idealiter, conduz a uma outra situação objetiva de estado de coisas que corresponde à razão formal de sua espécie, para além de um uso possível de sua respectiva noção ao momento do ato de verificação de ocorrências falácias neste ou naquele argumento. Ora, o que se nega pela interpretação psicologista das leis lógicas em geral, e da teoria silogística em particular, é precisamente certa necessária independência da objetividade, o que se significa pela cláusula “em si mesma e desde si mesma”, de tal ou tal situação do estado de coisas objetiva, em relação à vivência cognoscitiva de um determinado indivíduo. Descrevendo-se todos os pressupostos reais que condicionam o ato de conhecimento do entendimento, não se podem compreender, tão só em razão do que por esse meio se torna explicável, as conexões meramente formais constatáveis em uma falácia argumentativa.[2]
Ademais, mas não menos importante, a noção mesma de “falácia” não pode, em absoluto, compreender-se a partir de uma mera constatação de que o ato de conhecimento em exercício, em relação ao princípio de não contradição, deva adequar-se a este, de modo que, salvando-se as razões da tese psicologista, estaria explicada a própria noção referida – de realidade, de resto, puramente ideal. Ora, a argumentação da tese psicologista recém-apresentada é ela mesma certo sofisma lógico, qual seja, o da passagem da ordem ideal à real, e vice-versa.[3] Neste sentido, é de todo despropositada a afirmação segundo a qual a falácia logicamente concebida teria que ver com certa inadvertência do sujeito acerca do que não perceba atualmente em seu avanço argumentativo, pois, com efeito, não há na própria exposição da lógica teórica algo assim como duas noções de não contradição, vale dizer, a de “contradição percebida” e a de “contradição não percebida”, de modo que, por esta última, estar-se-ia referindo ao ato judicatório daquele mesmo sujeito, ensina-o Husserl (HUA XVIII, p. 110, p. 77): “Poderia aqui se perguntar se as contradições inadvertidas não são também contradições, e se o princípio lógico afirma somente a incompatibilidade de contradições advertidas.” Ora, o princípio lógico, tal qual se viu, nada tem que ver com o seu possível uso em que pela advertência de certo sofisma em passos argumentativos tais ou tais, o que não era constatado, isto é, a contradição, torna-se contatado, de facto,por um indivíduo qualquer. Por consequência, dê-se toda a atenção ao que se apontou na citação em estudo: mesmo as contradições inadvertidas são tanto quanto certas contradições mesmas; isto se deve à própria formalidade, em sua objetividade de carne e osso, que se pode extrair da noção de “contradição”.
Além disso, não faz ainda compreensível a peculiaridade da idealidade lógica no que ela incide sobre as noções tais quais a de “falácia” e a de “princípio de não contradição”, sustentar-se que, psicologicamente, ocorra tão somente um certo evento novo – justo o referido à falácia ainda não constatada – no decurso do movimento do pensamento, o qual até então se distinguia do pensamento refutador em sentido contrário, que constata a ocorrência do sofisma. Ora, a constatação factual de certa falácia que se poderia seguir, assim, de dada intencionalidade refutadora de base, é coisa diversa do próprio ato intencional cujo correlato objetivo seja tal ou tal falácia. Em síntese, o que está em análise é que poderia decorrer, do movimento do pensamento, resultados em si mesmos contingentes ao que nele mesmo se mostre, no sentido da idealidade do reino ideal-legal da lógica pura. Neste sentido, nada há nas noções de “refutação” e de “falácia”, consideradas de modo logicamente puro, pelo que se poderia correlacionar uma à outra, de acordo com os seus constitutivos formais respectivos: assim é que podem solidificar-se falácias várias em opiniões crédulas sem que se verifique nenhuma intencionalidade refutatória, como Husserl o explica (HUA XVIII, p. 240, p. 178). Em suma, pense-se no caso de que certo indivíduo, que tem opiniões crédulas, nas quais se apresentam falácias lógicas, intencione realizar o ato de verificação de alguma falácia em suas crenças e refute algumas destas; não só por isso houve a tematização expressa, no sentido de uma lógica pura, da noção de falácia ou ainda da noção de refutação. Nesse sentido, todo ato de constatação de certa falácia em uma dada crença nada mais é do que um certo uso da noção de falácia, à qual compete, na lógica pura, o seu respectivo significado puro, em idealidade.
Outrossim, uma outra consequência da tese psicologista que poderia inferir-se acerca dos seus pressupostos equivocados para a compreensão das leis lógicas em geral e da teoria silogística em particular refere-se à tética segundo a qual a contradição formal encontrada entre duas proposições contraditórias deve-se tão somente a um sentimento instintivo, de que o seu estado de coisas objetivo seja impossível. Esta é a posição assumida por Gerard Heymans (1857 – 1930). Ora, argumenta este autor (1890, p. 69), que a única razão manifesta para que dois juízos de conteúdo formal contraditório entre si não se possam realizar, se deve, como se disse, ao sentimento interiormente percebido de que ambas as proposições em seu conjunto sejam falsas, conquanto uma delas e tão somente uma é verdadeira. O mesmo autor argumenta ainda que, caso a conclusão do arrazoado anterior seja negada, se considere que na demonstração a respeito de se é ou não lícito o juízo acerca de proposições contraditórias, na hipótese de que aquele sentimento subjetivo de evidência não se dê, deve essa mesma demonstração findar no que se nega hipoteticamente; logo, o sentimento de evidência (Evidenzgefühl) é a razão por que se tem certeza sobre os princípios lógicos e seus correlatos. Todavia, e mais uma vez, confundem-se, por argumentações de cunho semelhante, a incompatibilidade lógica de estado de coisas objetivo e a incompatibilidade psicológica de atos de crença de conteúdo formal diverso – ainda que contraditórios –, bem como os princípios puramente legal-ideais da lógica pura e as meras generalidades empíricas das leis ditas da natureza.
Ora, é justo essa confusão referida que irá expandir-se para a compreensão psicologista da teoria silogística. Onde quer que se postule o sentimento de evidência subjetivamente percebido como condição de inteligibilidade das noções lógicas, como a de “silogismo” e as de suas espécies várias, patenteia-se, a contrario, o próprio contrassenso da assunção estabelecida em teses como essas. Desta feita, Heymanns, a quem interessava constituir uma “química dos juízos” (Chemie der Urteile), equivoca-se ao intencionar provar a equivalência das condições de evidência de situações tão diversas quanto as que se encontram nos experimentos químicos e no universo ideal-legal da lógica pura, a partir do enraizamento de ambos na subjetividade. Argumentando por mera analogia, sustentava esse autor (1890, p. 62 e segs.) que, assim como, sob circunstâncias favoráveis, pode-se colher, de acordo com a Lei de Lavoisier, a igualdade de massa do produto de uma reação química em relação à quantidade de massa do reagente químico, assim também se pode inferir, sob condições apropriadas – isto é, enquanto se evidencie a própria conclusão –, duas conclusões particulares afirmativas em um silogismo cujas premissas sejam: todos as plantas são organismos e todas as plantas são corpos. Assim, as duas conclusões deduzidas, vale dizer, algum corpo é planta e algum organismo é planta, apresentar-se-iam, sob condições favoráveis, evidentemente, em um sentimento de evidência.
Entretanto, Heymanns continua a propor as razões que justificariam a tese enunciada: uma vez tendo sido assegurada a conclusividade dada por certo sentimento de evidência de ambas as conclusões, relembrem-se – algum corpo é planta e algum organismo é planta –, tal qual, nesta medida, pode-se ter certeza a respeito do que se concluiu, no exato momento em que se tenha adquirido essa primeira certeza, por certo sentimento de evidência, contrariamente, em relação ao porquê, por exemplo, de duas premissas negativas coisa nenhuma se pode concluir em absoluto nada se pode saber. Por consequência, o proponente da hipótese referida termina por sustentar que, na lógica pura, das conexões formais excluídas da tematização dessa mesmíssima lógica não possa vir a ocorrer a produção de novos juízos. Pois, com efeito, se, tão somente, sob circunstâncias favoráveis, os juízos a respeito das duas conclusões particulares, algum corpo é planta e algum organismo é planta, decorrem do sentimento subjetivo de evidência, sentimento este designado de “as circunstâncias favoráveis”, e, a um só tempo, nada se pode saber, em razão da ausência do sentimento de evidência que as constitui, acerca de meras impossibilidades lógicas tal qual a inconclusividade do silogismo composto de duas premissas negativas, posto que, neste último caso, não se encontra a vivência da evidência subjetiva em atualidade, então, pressupor-se-ia que, nas conexões falaciosas desconsideradas pelos lógicos, não poderia ocorrer a produção de novos juízos, sem que delas houvesse qualquer sentimento de evidência atual. Isto mesmo é uma falácia. De que ela decorre? Da razão argumentativa segundo a qual a formalidade constitutiva da teoria silogística tenha que ver, de um modo ou de outro, seja com os sentimentos singulares de evidência vivenciáveis por um indivíduo qualquer, seja com certas condições favoráveis, as quais, por seu turno, podem-se perfeitamente aceitar na realização de experimentos de uma ciência empírica tal qual a química. Porém, que esses experimentos ocorram em “condições favoráveis” de realização é coisa bem diversa da legalidade puramente ideal que deve distinguir-se como constituindo a lógica qua pura; e este é o ponto. Por uma razão deste modo assinalável: a lógica, em sua parte teorética, por definição, tematiza a condicionalidade mesma das condições do conhecimento objetivo em geral; daí a sua formalidade toda própria. Fincando-se ainda nessa formalidade, in specie,diversa, da lógica teorética, pode-se perceber que as diferenças todas que se podem notificar acerca das condições favoráveis de realização de certo experimento de ciência empírica são elas próprias tematizáveis, em sua formalidade, no universo ideal-legal que configura, em sentido formal, a mesmíssima lógica teorética.
Além disso, em decorrência do que tem sido argumentado nos parágrafos anteriores, note-se que a tentativa, realizada por Heymanns, de tornar equivalentes a verdade, a certeza e a evidência em constructos teoréticos tão diversos tais quais, por um lado, a ciência da natureza em geral e, em particular, a química e, por outro, a lógica pura, tem por consequência o ceticismo absoluto, uma vez que os fenômenos meramente físicos, nos quais se fundamentam aquelas “condições favoráveis” de evidenciação do juízo nas ciências em geral, culminam por transcender o seu universo de objetualidade para um gênero, in totum,diverso, de conhecimento, nomeadamente, o da lógica pura. Ora, se se aceitasse a hipótese psicologista ao modo de explicação dos componentes formais que pertencem ao âmbito lógico, no que se refere à totalidade de sua objetualidade, então as vivências psicológicas tanto da verdade, quanto da falsidade, equivaler-se-iam, dado que, na própria coisa em si mesma, os fenômenos psíquicos que caracterizam “sob condições favoráveis” – isto é, a evidência vivenciada subjetivamente –, a constatabiilidade da verdade na química ou na lógica se encontram, enquanto tais, vale dizer, enquanto coisas reais, no julgamento exercido a respeito de um sofisma qualquer. De fato, verifica-se neste último caso do mesmo modo certo sentimento subjetivo de evidência vivenciável por tal ou tal sujeito.
Neste sentido, Husserl (HUA XVIII, pp. 114-115, p. 80) faz notar que um sofisma pode manter-se por certo indivíduo a despeito de toda a conclusividade apodítica dos argumentos em sentido contrário: “Quem perante todas as objeções críticas mantém um sofisma sente a ‘necessidade inabalável’ e o constrangimento de não poder fazer de outro modo.” Assim, a depender a formalidade das leis silogísticas de um mero sentimento subjetivo de evidência, tornar-se-ia verdadeiro que quot capita, tot sententiae. Por consequência, verifique-se que a necessidade formal da qual trata a lógica pura é de todo diversa da necessidade física conotada pelo termo “sentimento de evidência” que leve um indivíduo a manter-se em seu posicionamento, pelo qual assente por convicção ao afirmado, a par do que se lhe argumente. E, inversamente, ainda que o assentimento tenha sido realizado em razão de raciocínios corretos e reconhecidos como tais, nada impede que, conhecidos outros motivos, novos juízos possam vir a elicitar-se.
Desse modo, considere-se a famosa passagem do último ato de Don Juan de Molière em que o dramaturgo intenciona criar o efeito cênico a partir do que em lógica se designa de “sorites”,[4] iniciando-se a exposição da conexão formal das premissas e conclusões deste silogismo com um anexim e, após ele, com certa analogia encontrada entre os termos “pássaro”, “galho” e “árvore”, de um lado, e “homem”, “mundo” e “bons preceitos”, do outro,[5] de modo que se conote a consistência dos bons preceitos em relação à mera vida mundana pela consistência física encontrada na árvore em relação aos seus galhos; assim o expõe Molière:
Saiba, senhor, que tantas vezes vai o cântaro à fonte, que um dia quebra. E como diz muito bem esse autor que não conheço, o homem está neste mundo, como o pássaro está no galho; o galho está preso à árvore; quem se apoia na árvore segue os bons preceitos; os bons preceitos valem mais do que as belas palavras; as belas palavras se encontram na corte […]; quem não tem lei vive como animal selvagem; e consequentemente, o senhor será condenado ao inferno (MOLIÈRE, 2006).[6]
Pois bem, pela razão formal apresentada na lógica pura que constitui a noção de “sorites”, dão-se, ao menos, duas condições, dentre outras,[7] que não se cumprem no trecho em análise: que todas as premissas sejam universais e que todas as premissas sejam verdadeiras. Ora, justo pelos característicos formais mesmos que distinguem o sorites qua sorites, vale dizer, a sua forma sintética máxima na qual se omitem todas as conclusões, conquanto não a última, e as premissas menores, ainda que não a primeira, a vivência subjetiva de evidência dá-se nele quase que certamente, a despeito de sua verdade ou inverdade, e tanto mais ela se dá quanto maior for o número de membros que componham este ou aquele sorites. Não é por outra razão que essa espécie de argumentação fosse não de toda recomendável pelos lógicos de antanho, é-o o que afirma Cícero (Luc., 93, p. 122): “Vitiosi sunt sorites: frangile igitur eos, si potestis, ne molesti sint.” Porquanto, com efeito, a verificação de sua verdade ou falsidade depende da expansão devida, em silogismos simples, dos silogismos que constituam um dado sorites; o que requer certo tempo, qualquer que ele seja, maior do que o exigido pelo movimento raciocinativo de seu início ao seu fim.
Por consequência, fundamentado em razões certas, Husserl (HUA XVIII, p. 114, p. 80) afirma que, referindo-se à inexistência de quaisquer relações entre a formalidade da lógica teorética e certa “necessidade inabalável” que haveria de apresentar-se subjetivamente como condição de possibilidade dessa formalidade mesma: “mas todos os silogismos, sejam ou não justificados logicamente, se realizem com necessidade psicológica, e também o constrangimento sentido […] é o mesmo.” Desta feita, não é pela necessidade psicológica ocasionalmente sentida por um indivíduo qualquer que devem compreender-se os característicos formais constitutivos das leis lógicas em geral, e do silogismo em particular. Porém, este estado de coisas objetivo não implica que não haja certa intelecção cujo correlato intencional seja a própria legalidade, a que Husserl designa de reino ideal-legal, que distingue a lógica enquanto ciência pura. Ensina-o o autor (HUA XVIII, ibid., ibid.): “Não se pode, por isso, confundi-lo [uma necessidade inabalável subjetiva qualquer] com a genuína necessidade lógica pertencente a todo o raciocínio correto, a qual nada diz, nem pode dizer além da validade ideal-legal do raciocínio”, validade esta ideal-legal do raciocínio, acrescenta ele, que é reconhecível por um ato de intelecção.
Por fim, considerem-se mais atentamente aquelas ditas “condições favoráveis” postuladas por Heymanns em seu ensejo de criar uma “química dos juízos.” A conotação deste termo aponta para as condições sob as quais o juízo evidente pode realizar-se, e apenas nelas, pois como ele o argumenta, no exato momento em que a evidência surge a respeito da impossibilidade de que duas contraditórias simultaneamente sejam verdadeiras, nada se sabe a respeito de outras impossibilidades lógicas tal qual a conclusão silogística de duas premissas negativas, e assim por diante. Ora, deve-se observar que essas “condições favoráveis” não se encontram, de per se,relacionadas à objetualidade própria da lógica pura, a qual não se tematiza, a principio, nem na ciência química e nem na ciência psicológica. Em relação à primeira, o controle sistemático dos experimentos permitiu a ela a enunciação de leis gerais colhidas indutivamente da experiência, na qual podem prever-se as condições em que mais favoravelmente ou não se alcance o que fora expresso universalmente nessas leis gerais. Por exemplo, dada a lei de conservação das massas em um sistema fechado, conclui-se que, nesse sistema fechado, no qual se verifiquem as “condições favoráveis” de tal ou tal reação química, a quantidade de massa do produto químico há de ser a mesma que a quantidade de massa do reagente químico. Não se pode concluir, porém, que efetivamente todo e qualquer experimento químico há que ocorrer nessas condições referidas. Contudo, dado que elas existam, porque fora-o verificado por Lavoisier em experimentos repetidos, e apenas na medida em que existam, a quantidade de massa há de igualar-se, ao início e ao término do experimento. Ainda que a lei referida possibilite a enunciação de juízos certos, dadas as condições favoráveis, justo esta condicionalidade para o elicitar-se do juízo afigura-se à lógica pura como certa verdade derivada, que não compete a ela.
Em relação à segunda, vale dizer, à ciência psicológica, a situação dir-se-ia piorar francamente, uma vez que em razão de seu finca-pé na realidade dos atos psíquicos, estes mesmos guardam nessa ciência condições tão indeterminadas para a determinação perfeita da elicitação do ato de juízo evidente, em que se consuma o conhecimento psicológico, que nenhum psicólogo arriscaria apresentar os pressupostos reais, no sentido da realidade da objetualidade de sua ciência, da conclusão de uma proposição particular negativa que se deve seguir de uma universal negativa e de uma particular afirmativa. Desta feita, o apontamento de condições favoráveis, pela ciência psicológica, sob as quais o juízo evidente a realizar-se poderia ocorrer, não atinge a formalidade do que constitui os componentes formais da lógica pura, como o argumenta Husserl (HUA XVIII, p. 116, p. 81): “No caso da psicologia […] as circunstâncias ou condições em sentido rigoroso, sob as quais se produzem os atos de raciocínio com necessidade causal, estão-nos inteiramente ocultas.” Essa necessidade, conquanto não causal – temática a considerar-se num outro artigo – encontra-se, pois é o que a caracteriza enquanto disciplina científica pura, a mãos cheias, na própria lógica pura.
Conclusão
A tentativa frustre de Gerard Heymans para a fundamentação das noções atinentes à teoria do silogismo e à lógica pura parte de um equívoco sobressalente a respeito do reino de legalidade ideal que performa e constitui a lógica pura em geral, e a teoria do silogismo, em particular. De fato, sem essa legalidade ideal, que Husserl apresenta como válida (Geltung), a disciplina lógica poderia identificar-se e compreender-se como certa disciplina empírica, na qual, a principio, nenhum ato de intelecção se apresenta em sua pureza apodítica. Em suma: não há necessidade formal, em senso forte, em qualquer ciência empírica. Nela, pode-se ter certa constringência para a realização do juízo; mas, ora, observa Husserl que ninguém jamais argumentou pelo falso sem certo sentimento de constringência característica daquilo que a ele se apresenta como verdadeiro, conquanto seja falso. Mais sinteticamente ainda: o falsum qua falsum não pode reduzir-se a uma vivência empírica que o constata em sua falsidade. Ele se contradistingue pela noção do verum, a qual exige uma validez ideal mediante a qual os atos de intelecções puros se possibilitam, em legalidade de essência. Reduzir toda a teorética da teoria do silogismo a sentimento de evidência (Evidenzgefühl) é não apreender, em si mesmo e por si mesmo, o que a caracteriza enquanto tal: o pertencimento a uma disciplina pura, que é a própria lógica pura, em que as suas significações puras, por exemplo, a referente à noção de “silogismo”, devem performar categorias puras de significações, as quais, por seu turno, perfazem leis puras de significação. O intuito último de Husserl é, na obra em análise, francamente legalista e é assim que todo intento psicologista mostra-se infundado em suas bases últimas.
Referências
ARISTÓTELES. The Complete Works of Aristotles I. Trad. Jonathan Barnes. Princenton: Princenton University Press, 1996. (Cita-se como A. Post.; De Cœl.).
HEYMANS, Gerard. Die Gesetze und Elemente des wissenschaftlichen Denkens: Ein Lehrbuch der Erkenntisstheorie. Leipzig: Otto Harrassowitz, 1890.
HUSSERL. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie. Erstes Buch: Allgemeine Einführung in die reine Phänomenologie. In: Husserliana III/1. Haia: Martinus Nijhoff, 1976.
_____. Logische Untersuchungen. Erster Band. Prolegomena zur reinen Logik. In: Husserliana XVIII. Haia: Martinus Nijhoff, 1975.
_____. Ideias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenológica. Trad. Márcio Suzuki. Préf. Carlos Alberto Ribeiro Moura. São Paulo: Ideias & Letras, 2006.
_____. Investigações Lógicas – Prolegômenos à Lógica Pura. Trad. Diogo Ferrer. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
_____. Investigações Lógicas – Investigações para a Fenomenologia e a Teoria do Conhecimento. Trad. Pedro M. S. Alves e Carlos Aurélio Morujão, 2012.
_____. Investigaciones Lógicas II. 2.ª ed. Trad. Manuel G. Morente e José Gaos. Madrid: Revista de Occidente, 1967.
_____. Investigaciones Lógicas I. Trad. Manuel G. Morente e José Gaos. Madrid: Alianza Editorial, 2006.
_____. Investigaciones Lógicas II. Trad. Manuel G. Morente e José Gaos. Madrid: Alianza Editorial, 1982.
[1] As obras de Edmund Husserl citam-se pela edição das suas obras completas, conhecidas como Husserliana (HUA), edição essa que foi publicada pela editora Martinus Nijhoff. As citações de Husserl apresentam-se, no corpo textual desde trabalho, entre parênteses, na ordem seguinte: pela sigla HUA, seguida do número do volume compulsado, pelo número da página desse volume e, por fim, pelo número da página da tradução utilizada.
[2] Os “pressupostos reais” referidos no texto correspondem a uma determinada teoria da abstração a cuja finalidade pertence justo explicar o dar-se do ato de conhecimento realmente executado. Neste sentido, por mais refinada e cabalmente explicativa que possa ser uma teoria da abstração, mesmo em relação a ela, os argumentos avançados há pouco são conclusivos, e, por maioria de razão, também o são em relação à teoria da abstração psicologista. Com efeito, trata-se, ainda no corpo do texto, de apontar-se à distinção entre o reino ideal puro de todo princípio e teoria lógicos e o reino real, a explicar-se por alguma teoria da abstração, ao que se remete toda tese psicologista, em seu intento frustrado de dar a razão da idealidade do universo objetivo puro da doutrina da lógica.
[3] Essa passagem equivocada na ordo cognoscendi de um gênero de conhecimento a um outro, em que o primeiro seja constituído de entes ideais e o segundo de entes reais, é o que, já na Antiguidade, Aristóteles designou de μετάβασις εἰς ἄλλο γένος, cf. (1996, A. Post., 7, 75a 38; id, De Cœl , 1, 268b).
[4] Relembre-se: certo silogismo formado de várias proposições nas quais o predicado da primeira é o sujeito da segunda, o predicado da segunda proposição é o sujeito da terceira, e assim por diante, até que se chegue à conclusão, que é formada pelo sujeito da primeira e pelo predicado dela mesma.
[5] Por essa analogia, pode-se formar o seguinte silogismo que figura ocultamente ao início do sorites: todos os homens devem obedecer aos bons preceitos, o senhor é homem etc.
[6] Em razão da extensão dos elementos conexivos formais, julgou-se apropriado fazer-lhes uma supressão, a qual, porém, não invalida o que será dito.
[7] Tal qual a de que haja tão somente uma proposição negativa; condição esta não referida em razão da supressão textual realizada a fim de brevidade explicativa.