
A Cabala, ou misticismo judaico, significa “tradição”. Tem uma longa história e durante séculos exerceu uma influência poderosa nos círculos do povo judeu que aspiravam a uma inteligência mais profunda de formas e representações tradicionais do Judaísmo. Acumulando vasta literatura desde a Idade Média, possui como texto central o Zohar (Livro do Esplendor), surgido no século XIII e amplamente reconhecido como sagrado e canônico.
Gershom Scholem[i]
Tradução: Estevan de Negreiros Ketzer[ii]
Cabala, que significa literalmente “tradição” (isto é, tradição sobre realidades divinas), é o misticismo judaico. Tem uma longa história e durante séculos exerceu uma influência poderosa nos círculos do povo judeu que aspiravam a uma inteligência mais profunda de formas e representações tradicionais do Judaísmo. Uma literatura considerável tem sido, desde o final da Idade Média, o repositório do que foi preservado das produções frequentemente muito prolixas dos cabalistas. A obra central deste movimento, o “Livro do Esplendor” (Zohar) que data do século XIII, há muito que ocupa, na consciência dos mais vastos círculos, o estatuto de texto sagrado dotado de valor eminente, reivindicando um estatuto nem mais nem menos que canônico. Ainda podemos observar isto hoje, quando, após a fundação do Estado de Israel, os judeus do Iémen, uma comunidade muito unida que vive separada no sul da Arábia, quase todos chegaram a Israel no “tapete voador” dos aviões. Tiveram que deixar para trás quase todos os seus bens, mas, em meio ao pouco que levaram consigo e do qual não queriam se desfazer, havia uma série de cópias do Zohar, cujo estudo ainda está vivo entre eles.
Mas, para os Judeus da Europa, este mundo está perdido, e a ciência do judaísmo, ligada ao conhecimento da fisionomia e da evolução do Judaísmo, tem, até à nossa geração, passado pelos documentos resultantes da Cabala quase sem ter a menor compreensão disso. Na verdade, quando, na Europa Ocidental, por volta da virada do século XVIII, os judeus optaram por avançar em direção à cultura europeia com tal resolução, a Cabala foi um dos primeiros e mais decisivos sacrifícios exigidos por esta orientação. O mundo do misticismo judaico e todo o seu simbolismo fechado foram percebidos como estranhos, perturbadores e rapidamente esquecidos. Os cabalistas procuraram compreender ou pelo menos descrever o segredo do mundo, compreendendo-o como um reflexo dos segredos da própria vida divina; e as representações nas quais as suas experiências foram condensadas eram profundamente corolárias daquelas vividas pelo povo judeu, experiências que, no século XIX, pareciam ter perdido a sua relevância. Durante séculos, foi este mundo que gozou da mais intensa relevância para a compreensão que o judaísmo tinha de si mesmo. Afundou-se então, por assim dizer, no turbilhão da era moderna, e tão completamente que, durante várias gerações, esteve quase inteiramente afastado da compreensão objetiva. O que restou parecia um campo intransponível de ruínas, coberto de mato, onde, aqui e ali, estranhas representações do sagrado, insultos ao pensamento racional, despertavam ocasionalmente o espanto desaprovador dos caminhantes eruditos. Parecia que a chave para a compreensão das criações cabalísticas havia sido perdida, e nos encontrávamos desamparados e envergonhados diante de um universo onde não se tratava tanto de concepções coletadas, que poderíamos desenvolver, mas sim de símbolos de um tipo particular: de símbolos que se constituíam como uma bola impossível de desembaraçar, feita das experiências pessoais dos místicos e das experiências históricas do mundo judaico, reunidas numa unidade tecida de segredos. Este emaranhado de dois domínios geralmente separados de forma clara na história do misticismo religioso é o que imprimiu o seu carácter específico na Cabala judaica. E é por isso que parece tão estranho para quem conhece, por exemplo, o misticismo cristão e, para ele, não se enquadra nas categorias do que é considerado “místico”. Quanto mais estreito, mais miserável e cruel se tornava o enredo da realidade histórica nas tempestades do exílio, mais profundo se tornava o seu brilho, mais se destacava o seu carácter simbólico e mais irradiava a esperança messiânica que o despedaçou e o transformou. No centro desta realidade estava o mito do exílio e da redenção que assumiu proporções consideráveis entre os cabalistas, o que nos permite compreender a poderosa influência histórica que exerceram. Nas obras dos cabalistas, de forma muito surpreendente, o elemento pessoal é quase completamente apagado; é preciso ter um olhar muito aguçado para perceber esse elemento em todas as formas possíveis. Às vezes, um cabalista não colocou a sua pessoa ou a sua jornada em direção a Deus debaixo do alqueire, embora este seja o caso na maioria das vezes. No entanto, não é em tais contribuições que reside todo o significado da Cabala, mas naquilo que ela traz para a compreensão da “psicologia histórica” do judaísmo. Cada indivíduo era ele mesmo o todo. Isto é o que constitui o grande fascínio exercido, deste ponto de vista, pelos principais símbolos da Cabala tanto no historiador como no psicólogo: a lei da Torá que se tornou um símbolo da lei do universo, e a história do povo judeu que se tornou o símbolo do progresso do mundo.
Para uma geração que viu a história judaica passar por uma crise sem precedentes, o mundo das representações específicas destes antigos pensadores esotéricos já não é tão exótico. Nossa aparência tem mudado e os símbolos criptografados nos parecem dignos de decifrar e explicar. A responsabilidade do pesquisador é particularmente importante neste caso, ele deve manter uma atitude crítica mesmo durante este trabalho de exumação; porque o fascínio exercido por áreas como a da Cabala não deixou de atrair, muito antes dos historiadores tratarem do assunto, charlatões e mentes pervertidas. A pesquisa sobre a Cabala não beneficiou quase nada disso. No entanto, os esforços necessários para compreender o que aconteceu no seio do judaísmo não podem prescindir da clareza de visão ou da renúncia à crítica histórica. Na verdade, até os símbolos sofreram uma evolução e são alimentados pela experiência histórica. Compreendê-los requer tanto uma disponibilidade “fenomenológica” para abarcar totalidades quanto a capacidade de análise histórica. Estas duas exigências complementam-se, interpenetram-se e prometem, agindo assim em conjunto, resultados infinitamente frutíferos. No círculo de investigadores que se reuniram para os dias de Eranos[iii], muito foi feito e realizado para promover tal convergência de atitudes, e assim a investigação sobre a Cabala, que começou de forma rigorosa na nossa era, também está “em casa” aqui, no bom sentido desta expressão, ainda que só se concretize na pessoa de um hóspede de Jerusalém.
Publicado em Du (Schweizerische Monatschrift), 4 de abril de 1955.
Tradução do alemão por Marc de Launay.
[i] Filósofo e professor emérito da Universidade Hebraica de Jerusalém.
[ii] Tradução realizada por Estevan de Negreiros Ketzer (Email: [email protected]) da versão francesa “La recherche sur la kabbale. Réflexions” no livro de KRIEGEL, Maurice (org.). L’Herne Scholem. Paris: Éditions Cahier de L’Herne, 2009, pp. 146-147.
[iii] O grupo de estudos intitulado Eranos, ocorreu em Ascona na Suíça, e foi liderado por Carl Gustav Jung, tendo participação de grandes intelectuais internacionais. Scholem participou das reuniões a partir de 1949 com a conferência “Kabbalah e Mito”.