Alguns Apontamentos sobre a Essência do Haicai

A Grande Onda de Kanagawa. Katsushika Hokusai (1760–1849). Reprodução: Wikicommons

Derivado de uma espécie de poema coletivo chamado hokku que, por sua vez, é a primeira estrofe de um poema coletivo chamado renga, o haicai não pode ser compreendido sem que se compreenda as premissas básicas da tradição budista mahayana (महायान), tradição a partir da qual surge a versão japonesa do zen através dos ensinamentos de Myōan Eisai.

Bernardo Souto

Sendo uma espécie de adaptação do koan (公案) à forma poética  — embora, do ponto de vista meramente estrutural, tenha sido derivado do poema tanka — a micropoesia japonesa nasce intimamente vinculada ao fenômeno religioso do Satori (悟り), que, dentro do Zen Budismo, é uma espécie de ‘iluminação mística repentina’. Tal ‘iluminação’ é sobretudo intuitiva e pré-verbal, como tão bem compreendeu Daisetsu Teitaro Suzuki: “A erudição sempre tende à abstração e ao conceitualismo, obscurecendo a luz da intuição, faculdade que é necessária principalmente à vida religiosa” (in: “A Doutrina Zen da Não-Mente”). Dessa forma, antes de ser uma poesia centrada na ideia, o haicai é um tipo de poema que tenta capturar a alma do instante, registrando o que há de ‘eterno’ nos movimentos transitórios da natureza.

É evidente, portanto, que num Ocidente em que a poesia logopeica fez escola — seja através de Propércio, Donne ou Pessoa — o fanopeico haicai seja visto com estranheza e desconfiança,  sobretudo porque, através de escritores inábeis e irresponsáveis, ganhou enorme popularidade e, por assim dizer, virou arroz de festa na pena de leminskianos maconheiros e semiletrados.

Mas não se engane: uma forma poética prestigiada por gigantes como Ezra Pound, Giuseppe Ungaretti, Jorge Luis Borges, Octavio Paz e Wallace Stevens pode, sob o estro dum Kobayashi Issa, dum Matsuo Bashō ou dum Yosa Buson, apresentar uma concisão [condensação/ essencialidade] e uma riqueza metonímica que apenas a poesia do Extremo Oriente pode nos oferecer.

“Na floresta fria,

Sem apego a nada,

Canta a cotovia.”

— Haicai de Matsuo Bashō,

tradução livre de  R. D. Diéguez e Bernardo Souto.

Muitos, erroneamente, acreditam que escrever haicais é fácil. Não há ideia mais enganosa. O bom haicai deve ser ritmicamente harmônico e também conciso ao extremo (ou seja: deve dizer muito com pouquíssimas palavras); o verso, portanto, não pode ser obeso (cheio de argamassas sintáticas, como adjetivos inúteis e conjunções extensas). Além do mais, o haijin precisa saber capturar a alma do instante e o que há de imortal nos momentos efêmeros. O bom haicai deve surtir o efeito de uma dinamite lançada contra os discursos pré-moldados e contra os sistemas verbais totalizantes, que pretendem explicar os mistérios da vida através de silogismos e de frias e entediantes cadeias lógico-argumentativas.

Como bem percebeu Daisetsu Teitaro Suzuki, “a superestima da erudição sempre tende à abstração e ao conceitualismo, obscurecendo a luz da intuição, faculdade que é necessária principalmente à vida religiosa”. Sendo assim, o bom haicai deve, partindo da intuição e do pressentimento, exprimir verbalmente aquilo que há de pré-verbal e de pós-verbal na existência. O haicai é uma escola de contemplação cujo professor é o Silêncio.

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