
Os fundamentos da nossa civilização já parecem abalados pela legião daqueles que se deixam cegar e seduzir pelo brilhantismo e pelos rápidos sucessos da demagogia que quer ser uma doutrina e uma aventura que se apresenta como uma obra. Nunca antes a multidão de perplexos foi tão numerosa.
Emmanuel Levinas[i]
Tradução de Estevan de Negreiros Ketzer[ii]
Ao lado da pesquisa acadêmica que coloca um grande pensador na encruzilhada das influências que ele experimentou e daquelas que ele exerceu, há espaço para uma pergunta modesta, mas séria: o que ele é para nós?
O valor de uma verdadeira filosofia não está colocado em uma eternidade impessoal. Sua face luminosa está voltada para os seres temporais que somos. Sua preocupação com nossas ansiedades faz parte de sua essência divina. O aspecto verdadeiramente filosófico de uma filosofia é medido por sua atualidade. A mais pura homenagem que se pode prestar a ele consiste em misturá-lo às preocupações da nossa época.
As preocupações do nosso tempo são particularmente pungentes. Elas dizem respeito à própria essência da nossa existência como judeus e como seres humanos. A “civilização judaico-cristã” está sendo desafiada por uma barbárie arrogante estabelecida no coração da Europa. Com uma audácia ainda sem igual, o paganismo levanta a cabeça, subvertendo valores, confundindo distinções elementares, apagando os limites do profano e do sagrado, dissolvendo os próprios princípios que, até então, permitiam que a ordem fosse restaurada. Os fundamentos da nossa civilização já parecem abalados pela legião daqueles que se deixam cegar e seduzir pelo brilhantismo e pelos rápidos sucessos da demagogia que quer ser uma doutrina e uma aventura que se apresenta como uma obra. Nunca antes a multidão de perplexos foi tão numerosa.
A própria consciência judaica moderna é problemática. Ela não duvida de seu destino, mas não pode, com a mesma alma, testemunhar os ultrajes que a oprimem. Ela sente uma nostalgia quase instintiva pelas fontes primárias e claras de sua inspiração. Ele deve reacender sua coragem e reencontrar a certeza de seu valor, sua dignidade, sua missão. Nunca antes ela precisou tanto se convencer da sua razão de ser. Mas dentro dos muros que Maimônides, no século XII, “construiu ao redor da Lei para protegê-la das pedras atiradas contra ela”[iii], essa alma inquieta pode encontrar refúgio e paz. Ela consegue se reconhecer no drama contido nessa famosa reconciliação de Aristóteles e a Bíblia, da qual Maimônides é trabalhador ousado. Ela pode sentir o anúncio de seu triunfo final ali. Mas esse drama de fé e razão só revela seu verdadeiro significado quando acompanhamos de perto suas reviravoltas.
Nos encontramos desde as primeiras páginas do Guia dos Perplexos, encontramos um pensador que é nada menos que um visionário. Alimentado pela filosofia aristotélica, ele traz ao exame dos textos sagrados mais prudência do que êxtase, mais lógica do que entusiasmo, mais gramática do que misticismo. Numa época em que a fé respirava com o ar, este teólogo sutil, para quem os dados da ciência rabínica não guardavam segredos, recusou qualquer crença espontânea. Uma análise etimológica erudita das palavras esgota para ele as profundezas das escrituras que parecem insondáveis para uma fé ingênua, mas pura; sonhos proféticos e milagres são relegados à categoria de alegorias ou parábolas; os quatro graus da escada de Jacó conhecidos pela tradição talmúdica, as quatro legiões de anjos, as quatro carruagens da visão de Zacarias representam apenas as quatro causas de Aristóteles. Maimônides carece terrivelmente de gosto pelo mistério. Tanta razão decepciona. O mundo se esvazia do território de Abraão, Isaac e Jacó à medida que avançamos na leitura do Guia e se povoa destas “inteligências separadas” presididas pelo “Motor Principal” de Aristóteles.
Mas no capítulo XIII do segundo livro do Guia dos Perplexos, o conflito aparece. Porque o Primeiro Motor, o deus de Aristóteles, não poderia ter criado o mundo. É, segundo a fórmula de Aristóteles, “ato puro”. Ele está “totalmente realizado”. Não há possibilidade nele que não se realize. Nada está sendo realizado. Ele é perfeito para toda a eternidade. Como ele poderia ter criado o mundo? Ele carregava isso dentro de si até então como uma possibilidade não realizada? Não é ridículo admitir que um Deus perfeito, cedendo a causas externas a ele, esteja decidido à criação? Deus pode submeter-se a uma influência? A criação é impossível.
Além disso, basta considerar a natureza do mundo para chegar à mesma conclusão. Se o mundo resulta de uma obra, ele é composto de uma forma e de uma matéria. Agir é aplicar uma à outra. Agir é, portanto, admitir a preexistência da matéria. Não é difícil supor que tenha sido feita. Pois então seria necessário admitir um segundo material do qual provém o primeiro: o trabalhador sempre precisa de um tecido. Esse raciocínio pode se repetir ao infinito. A matéria é eterna.
Mas o que então devemos fazer com “Abraão, nosso pai, e Moisés, nosso mestre”, que afirmam a criação do mundo? Suspeita de um erro lógico em Aristóteles? Impudência e vaidade! Como escolher entre dois sacrilégios?
A solução que Maimônides oferece é talvez a essência de sua obra. Consiste em distinguir entre o universo já criado, sujeito à lógica irrefutável de Aristóteles, e a própria criação do universo que lhe escapa. Que tudo deve necessariamente ser feito de outra coisa é verdade no mundo já constituído, “neste universo completamente estabelecido onde tudo nasce apenas de algum ser. Mas a coisa produzida do nada não indica nem aos sentidos nem ao intelecto, qualquer coisa anterior”[iv] … As condições do mundo como um todo não coincidem com as leis das coisas dentro do mundo. O trabalhador precisa de material. Mas Deus não é um trabalhador. Ele é um criador. Libertemo-nos dos hábitos intelectuais adquiridos num mundo pronto e nós compreenderemos a criação.
A mesma reflexão se aplica ao argumento aristotélico extraído da natureza de Deus. Que toda ação intermitente supõe no agente uma potência ainda não realizada e, consequentemente, uma imperfeição, isso é verdade, daquele que age no mundo. Mas Deus está fora do mundo. Quando alguém é capaz de tal pensamento, não mais mede a perfeição de Deus como a de uma coisa. Se Deus está determinado, em um dado momento, a criar, não devemos concluir que seu ser carregava consigo um poder irrealizado e uma imperfeição. A perfeição de Deus é apenas um homônimo para a perfeição das coisas. Sua ação tem apenas uma comunidade nominal com a ação deste mundo. Elas estão separadas uma da outra por todo o abismo que separa a criação da fabricação.
O significado desta descoberta é incalculável. Pela primeira vez e com brilhante lucidez, Maimônides separou as leis de um pensamento que tem o mundo como objeto dos princípios de um pensamento que se relaciona com as condições do mundo. Pela primeira vez ele deteve o ímpeto da razão que aplicava noções emprestadas do mundo para aquilo que estava além do mundo. Pela primeira vez ele vislumbrou o que seria chamado, seis séculos depois, de crítica da razão pura.
Mas na nitidez desta distinção entre o pensamento que pensa o mundo e aquele que o ultrapassa, ali consiste a vitória definitiva do judaísmo sobre o paganismo, a grande consolação que Maimônides nos traz, a confiança em nós mesmos e na nossa missão que ele nos devolve.
O paganismo não é a negação do espírito, nem a ignorância de um único Deus. A missão do judaísmo teria pouca importância se fosse limitada a ensinar o monoteísmo para os povos da terra. Isso seria instruir aqueles que sabem. O paganismo é um desejo radical de deixar o mundo. Não consiste em negar espíritos e deuses, mas em situá-los no mundo. O Primeiro Motor que Aristóteles no entanto isolou do universo não poderia levar às suas alturas a pobre perfeição das coisas criadas. A moral pagã é apenas a consequência dessa incapacidade fundamental de transgredir os limites do mundo. Neste mundo autossuficiente e fechado, o pagão está trancado. Ele o encontra sólido e bem assentado. Ele o encontra eterno. Ele governa sobre si suas ações e seu destino.
O sentimento de Israel em relação ao mundo é bem diferente. Ele está impregnado de suspeita. O judeu não tem os fundamentos definitivos do pagão no mundo. No meio da mais completa confiança depositada nas coisas, ele se rói por uma surda inquietude. Por mais inabalável que o mundo possa parecer para aqueles que chamamos de mentes sãs, para o judeu ele contém o traço do provisório e do criado.
É a loucura ou a fé de Israel. Maimônides deu-lhe uma expressão filosófica, esclarecendo seu verdadeiro significado e originalidade.
Publicado originalmente como “L’Actualité de Maïmonide”, Paix et Droit, no 4, avril 1935. O presente texto foi retirado do livro CHALIER, Catherine; ABENSOUR, Miguel (Orgs.). Cahier Levinas. Paris: Éditions de L’Herne, 2006, p. 142-144.
[i] Filósofo francês de origem lituana. Professor da Sorbonne.
[ii] Psicólogo clínico. Doutor em Letras (PUCRS). Email: [email protected].
[iii] Guia dos Perplexos, 2ª parte, cap. XVII,p. 137 da tradução de Salomon Munk.
[iv] Guia dos Perplexos, 2ª parte, cap. XVII,p. 135 da tradução de Salomon Munk.