Carta de Jung sobre o desenvolvimento da Cabala

Estou bastante certo de que a resposta extraordinária e venenosa dos rabinos ortodoxos contra a Cabala é baseada no fato inegável deste paralelismo judaico-cristão mais notável. Isso é assunto quente, e desde o século XVII, até onde meu conhecimento vai, ninguém ousou tocá-lo, mas estamos interessados ​​na alma do homem e, portanto, não estamos vendados por preconceitos confessionais tolos.

Carl Gustav Jung[i]

Tradução de Estevan de Negreiros Ketzer[ii]

Para James Kirsch

Caro Kirsch, 18 de novembro de 1952

Estou lhe enviando uma carta em inglês desta vez, pois ainda não consigo escrever cartas à mão. Tive outro ataque de arritmia e taquicardia devido ao excesso de trabalho. Agora estou me recuperando lentamente e meu pulso está normal novamente há quase uma semana, mas ainda estou cansado e tenho que ir devagar.

Sua pergunta é muito importante e acho que consigo entender sua total importância. Eu não seria capaz de lhe dar uma resposta satisfatória, mas tendo estudado a questão o máximo possível, posso chamar sua atenção para o desenvolvimento extraordinário na Cabala. Estou bastante certo de que a árvore sefiroth[iii] contém todo o simbolismo do desenvolvimento judaico paralelo à ideia cristã. A diferença característica é que a encarnação de Deus é entendida como um fato histórico na crença cristã, enquanto na Gnose judaica é um processo inteiramente pleromático simbolizado pela concentração da tríade suprema de Kether, Hokhmah e Binah na figura de Tifereth[iv]. Sendo o equivalente do Filho e do Espírito Santo, ele é o patrocinador que traz a grande solução por meio de sua união com Malkhuth[v]. Esta união é equivalente à assumptio beatae virginis[vi], mas definitivamente mais abrangente do que a última, pois parece incluir até mesmo o mundo estranho das Kelipoth[vii]. X. certamente está todo molhado quando pensa que a gnose judaica não contém nada do mistério cristão. Ela contém praticamente tudo, mas em seu estado pleromático não revelado.

Há um pequeno livro medieval latino muito interessante escrito por Knorr von Rosenroth[viii] ou pelo menos sob sua influência direta. É chamado Adumbratio Kabbalae Christianae, Id est Syncatabasis Hebraizans, Sive Brevis Applicatio Doctrinae Hebraeorum Cabbalisticae Ad Dogmata Novi Foederis[ix]. Francofurti, 1684. Este pequeno livro vale muito a pena; ele contém um paralelo muito útil ao mistério cristão e cabalístico e pode lhe dar muita ajuda, pois me ajudou a entender este problema importantíssimo do desenvolvimento religioso judaico. Seria altamente recomendável traduzir o livro. Estou bastante certo de que a resposta extraordinária e venenosa dos rabinos ortodoxos contra a Cabala é baseada no fato inegável deste paralelismo judaico-cristão mais notável. Isso é assunto quente, e desde o século XVII, até onde meu conhecimento vai, ninguém ousou tocá-lo, mas estamos interessados ​​na alma do homem e, portanto, não estamos vendados por preconceitos confessionais tolos.

Atenciosamente,

C. G. JUNG

Tradução do inglês a partir da obra: JUNG, C.G. Letters, 1951-1961. London: Routledge, 2011, Vol. II,p. 91-93.


[i] Psiquiatra suíço, professor da Basel Universität da Suíça, pai da Psicologia Analítica.

[ii] Psicólogo clínico. Doutor em Letras (PUCRS). Email: [email protected].

[iii] A árvore de sefiroth, do hebraico, árvore das esferas celestes, diz respeito a proposta cabalística de Moshe Cordovero (1522-1570), famoso cabalista da escola de Safed (Tsfat) no norte de Israel (N. do T).

[iv] Jung explica as esferas superiores da Árvore da Vida: Kether (coroa), Chochmá (sabedoria/inteligência), Biná (entendimento) e Tiferet (beleza/harmonia) (N. do T.).

[v] Jung refere-se a primeira esfera da Árvore da Vida: Malkhut (reino).

[vi] Tradução do latim: Assunção da Santíssima Virgem (N. do T.).

[vii] Plural da palavra hebraica kheli (vaso), a qual faz menção a doutrina de Isaac Luria (1534-1572), pertencente a escola de Safed (Tsfat), em Israel, encontrada em seu livro Àrvore da Vida (Etz Chaym), em que o cabalista explica a doutrina da emanação utilizando-se de um método arquetípico próprio. Para mais informações, ver: SCHOLEM, Gershom. As grandes correntes da mística judaica. Tradução de Jacó Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2008.

[viii] Christian Knorr von Rosenroth (1631-1689), filósofo alemão, um dos fundadores do movimento Ordem Hermética da Aurora Dourada (Golden Dawn); (N. do T.).

[ix] Tradução do latim: Um Esboço da Cabala Cristã, isto é, uma Syncatabasis Hebraizans, ou uma Breve Aplicação da Doutrina Cabalística dos Hebreus aos Dogmas do Novo Testamento (N. do T.).

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