
Os seres humanos amam suas privacidades e liberdades. Pode-se argumentar que não importa quão próximo um ser humano esteja de seus vizinhos, amigos ou familiares, não importa a quantidade de intimidade, proximidade e companheirismo compartilhados, muito poucos seres humanos – se os houver – gostam de vizinhos ou amigos que lhes contem o número de mastigações, que lhes digam como as coisas devem ser feitas e como se deve administrar a própria casa.
Se alguém já viveu o suficiente, ou ainda vive numa cultura suficientemente tradicional para que duas ou três gerações ainda vivam sob o mesmo teto, provavelmente já ouviu muitas anedotas sobre as relações conflitantes entre os membros da família – conflitos estes que muitas vezes dizem respeito ao sentimento de violação da liberdade individual. O desejo de estar com os outros, mas ao mesmo tempo permanecer separado na própria existência, talvez seja uma inclinação natural da maioria dos seres humanos.
O elemento sedutor da liberdade individual, porquanto dela se tenha experimentado mesmo que bem de leve, é que ela faz o ser humano sentir-se ilimitado – de repente, há uma sensação de que não há nada que não se possa fazer, nenhuma montanha que não se possa conquistar, nenhum apetite que não se possa satisfazer…
Quando, então, não há punição ou sanção social, legal ou econômica de espécie alguma para ações que, como se costuma dizer, “não fazem mal a ninguém”, aí mesmo é que a sedução é ainda maior. Agir de qualquer maneira que se deseje, respondendo a qualquer capricho que se tenha, faz-nos ter a impressão de que nos tornamos livres de quaisquer consequências, e a promessa de agir conforme tais caprichos parece-nos ser nada além de pura felicidade e auto-realização.
Ao longo da história da humanidade, foram inúmeras as instituições e estruturas que, por assim dizer, de um modo ou de outro, ora restringiram liberdades individuais, ora violaram limites cuja restrição ou direção assumiu a forma de opressão e tirania. A idéia sedutora de que um ser humano pode existir sem restrições, que as restrições e as estruturas são sempre, sem exceção, opressivas ou, ao menos, potencialmente opressivas, acarretou a destruição de toda estrutura e padrão objetivo que conecta os indivíduos uns aos outros – o indivíduo é, então, deixado sozinho, como se fora uma ilha isolada, desenraizada, falando numa língua que os outros não entendem, vivendo uma vida burocratizada.
Muitos séculos atrás, em sua República, Platão afirmou: “não suponho que a tirania se desenvolva a partir de qualquer outra constituição senão da democrática – [que se caracteriza pela] mais severa e cruel escravidão à máxima [e irrestrita] liberdade.” Quer se adote uma interpretação exotérica dessa citação – de que um tirano está apenas à espera de uma situação caótica de absoluta anarquia para interferir e tomar o poder –, quer se adote uma interpretação esotérica – de que quanto maior a nossa liberdade de desejos, caprichos e apetites, mais nos tornamos escravos destes –, o mesmo padrão é observável em ambos os domínios interpretativos.
Jogo, esporte e dança
Não seria difícil encontrar um número significativo de citações, seja nas obras de santos de qualquer religião, nas de filósofos das mais variadas linhas – platônicos, aristotélicos, estóicos –, nos livros de auto-ajuda para empreendedores, ou mesmo em romances famosos como Duna, sobre a importância da disciplina e da estrutura – sobre como ambas foram suas melhores companheiras no caminho rumo à liberdade, integridade e satisfação reais.
Basta fazer uma simples pesquisa na Internet para encontrar inúmeras entrevistas e livros de Nikola Tesla em que ele frequentemente afirma que seu estilo de vida diferenciado, parecido com o de um santo, foi crucial para suas muitas invenções e inspiração.
Para este artigo, no entanto, decidi dar um exemplo mais leve e suave que bem pode mostrar como as estruturas não precisam ser necessariamente opressivas e restritivas, mas, em vez disso, como uma estrutura equilibrada, orgânica e holística seja talvez o único meio para uma real auto-expressão e improvisação. O reino no qual os seres humanos muitas vezes se sentem livres, embora ainda estejam operando dentro de uma estrutura pré-determinada, é o reino dos jogos, da dança, dos esportes e da música.
“Na recreação reina uma ordem absoluta e peculiar. Aqui nos deparamos com outra característica muito positiva da brincadeira: ela cria ordem, ela é ordem. Ela traz uma perfeição limitada e temporária para um mundo imperfeito e para a confusão da vida. Brincar demanda ordem absoluta e suprema. O menor desvio da ordem ‘estraga o jogo’, descaracteriza-o e torna-o inútil. A profunda afinidade entre jogo e ordem talvez seja a razão pela qual o jogo, tal como observamos de passagem, parece mentir em tão larga escala no campo da estética. (…). O jogo nos encanta, é ‘encantador’, ‘cativante’, é investido das mais nobres qualidades que somos capazes de perceber nas coisas: ritmo e […] harmonia. (…) O jogo é ‘tenso’, como dizemos. É o elemento de tensão e solução que rege todos os jogos solitários de habilidade e aplicação, como os quebra-cabeças, puzzles, mosaicos, paciência, tiro ao alvo, etc., e quanto mais o jogo tem o caráter de competição, mais fervoroso será. (…) Embora o jogo enquanto tal esteja para além do alcance do bem e do mal, o elemento de tensão confere-lhe certo valor ético na medida em que significa uma prova da destreza do jogador: sua coragem, tenacidade, recursos e, por último, mas não menos importante, seus poderes espirituais – sua ‘justiça’; porque, apesar de seu desejo ardente de vencer, ele ainda deve seguir as regras do jogo.
(…) Todo jogo tem suas regras. Elas determinam o que ‘resiste’ no mundo temporário circunscrito pelo jogo. As regras de um jogo são absolutamente obrigatórias e não permitem dúvidas. (…) Com efeito, assim que as regras são transgredidas, todo o mundo do jogo desmorona. (…) O jogador que transgride as regras ou as ignora é um spoil-sport, um desmancha-prazeres. O spoil-sport não é o mesmo que o falso jogador, o trapaceiro; pois este finge estar jogando o jogo e, à primeira vista, ainda reconhece o círculo mágico. É curioso notar o quanto a sociedade é mais branda com o trapaceiro do que com o desmancha-prazeres. Isso ocorre porque o spoil-sport destrói o próprio mundo do jogo. (…) Ele despoja o jogo de sua ilusão – um vocábulo prenhe de significados que quer dizer literalmente ‘in-plai’ (de inlusio, illudere ou inludere). (…) A pequena comunidade não pergunta se o spoil-sport é culpado de deserção porque não se atreve a entrar no jogo ou porque isso não lhe é permitido. Em vez disso, ela não reconhece o ‘não ser permitido’ e o chama de ‘não ousadia’. Por isso, o problema da obediência e da consciência nada mais é do que medo da punição. O desmancha-prazeres destrói o mundo mágico do jogo; logo, é um covarde e deve ser expulso da comunidade.” (Homo Ludens, Johan Huizinga)
Na recreação reina uma ordem absoluta e peculiar. Aqui nos deparamos com outra característica muito positiva da brincadeira: ela cria ordem, ela é ordem. Ela traz uma perfeição limitada e temporária para um mundo imperfeito e para a confusão da vida. Brincar demanda ordem absoluta e suprema.
Johan Huizinga, um lingüista e teórico cultural holandês, tinha uma abordagem estética da história: arte, espetáculo e jogo não são, para ele, apenas conseqüência acidental da civilização, mas uma sua parte importante, às vezes fundamental. Escolhi um trecho de seu livro Homo Ludens, porque ilustra tão lindamente de que maneira, mesmo nas brincadeiras infantis, há um sentido inato de estrutura que, como sugere Huizinga, por sua vez, revela um nobre e profundo senso inato de ritmo.
As crianças, em seu jogo, diz-se aqui, não têm tolerância para com os desmancha-prazeres, os spoil-sports. O mundo do jogo e da brincadeira é um microcosmo minúsculo e encantador no qual os indivíduos se comunicam por meio de regras que eles mesmos criaram e com as quais concordaram. É uma criação deles, e o desmancha-prazeres é um desconstrucionista desprovido de visão – que tem mais prazer em destruir, em alienar, do que em criar e conectar.
Pode-se dizer da dança e do esporte algo semelhante ao que se diz das brincadeiras infantis. Cada estilo de dança – seja balé, tango ou diversos tipos de danças folclóricas – ou cada forma particular de esporte – seja vôlei, basquete ou outro – tem seu próprio senso particular de regras e estrutura. Participar de qualquer um deles significa participar de sua estrutura interna; aquele que não gosta de sua estrutura e regras simplesmente não participa. As regras particulares e específicas às vezes podem variar, mas a estrutura principal sempre se mantém; do contrário, essa forma específica de dança ou esporte perde sua característica específica. São precisamente as regras e a estrutura específicas que fazem da salsa um tipo de dança diferente do kolo/horo eslavo.
As crianças, em seu jogo, diz-se aqui, não têm tolerância para com os desmancha-prazeres, os spoil-sports. O mundo do jogo e da brincadeira é um microcosmo minúsculo e encantador no qual os indivíduos se comunicam por meio de regras que eles mesmos criaram e com as quais concordaram. É uma criação deles, e o desmancha-prazeres é um desconstrucionista desprovido de visão – que tem mais prazer em destruir, em alienar, do que em criar e conectar.
O que é significativo, e muitas vezes ignorado, é que, apesar da estrutura e das regras muito rígidas, há um vasto e enorme espaço e potencial para improvisação e expressão individual. Todo grande e importante dançarino tem seu estilo individual, um passo de dança que é sua assinatura pessoal reconhecível mesmo nas noites mais escuras.
O mesmo poderia ser dito dos atletas, que, jogando dentro de uma estrutura maior, tornam-se conhecidos por seu estilo específico de jogo. Uma vez aprendidos os movimentos básicos, regras e formas de uma dança, abre-se um grande espaço para todos os tipos de diferenciação individual. Sem a estrutura e as regras, não há dança, apenas movimentos aleatórios, sem rumo, que dificilmente seriam chamados de dança; do mesmo modo, sem uma ordenação específica das notas musicais, não há música, apenas um barulho desconfortável; e sem regras, não há esporte, não há brincadeira, não há jogo, apenas um correr e bater daqui para ali sem rumo nem propósito.
Huizinga, no excerto selecionado, traz mais um elemento importante para as regras que se aplicam ao mundo despreocupado e leve dos jogos, esportes e dança – e é que o jogo (ou os esportes e a dança) exige habilidade específica. Adquirir uma habilidade é um processo difícil e demorado que muitas vezes, à primeira vista, faz o ser humano querer desistir. Basta que alguém veja uma combinação de movimentos básicos de valsa para pensar: “Isso é muito difícil. Não consigo fazer isso.”
“Apesar da estrutura e das regras muito rígidas, há um vasto e enorme espaço e potencial para improvisação e expressão individual. Todo grande e importante dançarino tem seu estilo individual, um passo de dança que é sua assinatura pessoal reconhecível mesmo nas noites mais escuras.”
Ainda assim, o desejo de participar do jogo às vezes é mais forte do que os medos e crenças na própria inadequação. Ao contrário da promessa superficial da existência desprovida de limitações, as habilidades necessárias para participar de um jogo trazem à consciência a própria limitação e o fato de que se terá que aprender certo conjunto de habilidades para se poder participar desse mundo mágico do jogo.
Ao mesmo tempo, tais habilidades são muitas vezes tão universais que quase todos os seres humanos, embora não com o mesmo grau de excelência, podem aprendê-las. Talvez nunca se alcance o nível de um Sergei Polunin (famoso astro de dança ucraniano), mas é possível aprender certos passos realizados por ele e, nisso, sentir tanto a tremenda capacidade quanto a limitação do próprio corpo – e não apenas do corpo, mas também da mente, da vontade e da determinação. Como sugere Huzinga, não é apenas a habilidade física que é testada, mas também a integridade ética, a força de vontade, a fortaleza e a coragem de uma pessoa.

Sem a estrutura e as regras, não há dança, apenas movimentos aleatórios, sem rumo, que dificilmente seriam chamados de dança; do mesmo modo, sem uma ordenação específica das notas musicais, não há música, apenas um barulho desconfortável; e sem regras, não há esporte, não há brincadeira, não há jogo, apenas um correr e bater daqui para ali sem rumo nem propósito.
O medo de estruturas, regras, leis e de seus poderes potencialmente puritanos, violentos e opressivos é tão humano que é difícil contemplá-lo sem compaixão. Talvez, em cada um de nós, haja um minúsculo eu dionisíaco caótico a sentir-se violado pelas regras e a desejar a rédea solta do sangue, dos sentidos e da violência perene.
Mas, muitas vezes, esse eu caótico, uma vez aniquilado todo padrão ideal, todo sussurro de razão, todo traço de ordem e regras, começa, na falta de capacidade para destruir externamente, a destruir-se internamente. Ele força a vontade a curvar-se ante a animalidade de nosso apetite suíno e de nossa ira lupina até que esteja tão impotente, tão quieta e inoperante, que pareça inexistente. Como sugeriu Platão em sua República, a única verdadeira liberdade é do Rei-Filósofo, ao governar os outros reinos de nossa constituição interna. Somente quando o Filósofo – isto é, a Razão, que é o amor à sabedoria – governa e domina o furioso Ares – o irascível – e o faminto Dionísio – o concupiscível – dentro de nós, é que a verdadeira auto-expressão acontece – e isto será, então, uma autêntica expressão da vontade, não um coro confuso de porcos e lobos.
Artigo publicado orignalmente por Naida no blog Orphic Inscendence. Traduzido por Adriel Teixeira.