loader image

O Misticismo Judaico

O anseio arde: o absoluto deve se tornar realidade. O messianismo judaico também sempre foi um desejo pelo impossível. A Cabala não podia ignorá-lo. Ela chamava o Reino de Deus na Terra de “o mundo da perfeição”. Absorvia o fervor do povo. E, ao fazê-lo, penetrava no povo, como o próprio Messias em sua cidade.

Martin Buber

Filósofo e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém.

Tradução de Estevan de Negreiros Ketzer

Psicólogo clínico. Doutor em Letras (PUCRS).

Rabino Nachman de Bratzlav, nascido em 1772 e falecido em 1810, é talvez o último místico judeu. Ele se encontra no final de uma tradição ininterrupta, cujo início desconhecemos. Por muito tempo buscou-se negar essa tradição; hoje, não se pode mais duvidar dela. Foi demonstrado que ela foi alimentada por fontes persas, depois gregas tardias e, por fim, albigenses; ela afirmava o poder de sua própria corrente, capaz de absorver todos os influxos sem ser dominada por eles. É claro que não seremos mais capazes de vê-la como seus antigos mestres e discípulos a viam: como Cabala. Isto é, como a transmissão dos ensinamentos de boca para ouvido e, novamente, de boca para ouvido, de tal forma que cada geração a recebesse, mas cada uma em uma revelação e interpretação mais ampla e rica, até que, no fim dos tempos, a verdade completa fosse proclamada. Contudo, teremos de reconhecer sua unidade, sua distinção e seu forte condicionamento pela natureza e pelo destino do povo do qual se originou. O misticismo judaico pode parecer bastante irregular, frequentemente obscuro, às vezes mesquinho, se o compararmos com Eckhart, Plotino ou Lao-Tsé; não será capaz de esconder sua fragilidade se o considerarmos ao lado dos Upanishads. Ele permanece a maravilhosa flor de uma árvore antiga, cuja cor parece quase berrante demais, cuja fragrância quase exuberante demais, e que ainda é um dos poucos crescimentos de sabedoria espiritual interior e êxtase concentrado.

A disposição mística é inerente aos judeus desde tempos imemoriais, e suas expressões não devem ser entendidas, como geralmente acontece, como uma reação consciente temporária contra o domínio da ordem intelectual. É uma característica significativa do judeu, que parece ter mudado pouco ao longo dos milênios, que os extremos se inflamem nele, mais rápida e poderosamente do que em qualquer outro ser humano. Assim acontece que, em meio a uma existência inexprimivelmente limitada, aliás, precisamente fora de suas limitações, de repente, com uma força que nada tenta domar, o ilimitado irrompe e agora governa a alma irresistivelmente entregue. A visão de Deus que Elias teve pode servir como símbolo desse poder do incompreensível em silêncio absoluto.

Algo mais, mais essencial, foi acrescentado. Se cada alma forma sua substância natural a partir das imagens poderosas e carregadas de valor que recebeu com seus sentidos e apreendeu com seu sentimento, então a alma do judeu deve ter sempre carecido dessa substância natural. Incomparavelmente mais motora do que sensorialmente inclinada, ela reage, mesmo em sua vida espiritual interior, com muito mais intensidade do que recebe. Ela molda o que recebe em pensamentos verbais, conceitos, do que em pensamentos-imagens, ideias. Infinitamente alheio a objetos independentes do sujeito, simpático apenas a objetos sujeitos às funções do sujeito (mesmo para Spinoza, a natureza é mais explicável geometricamente), o judeu não existe em substância, mas em relação. Ele tem o mais alto senso para as relações gerais e reveladas, bem como as secretas e particulares, do cosmos e da psique, e sabe como fixá-las em fórmulas matemáticas e definições lógicas, ou projetá-las no mar da eternidade em ritmos e melodias. Mas ele tem uma percepção deficiente da realidade integral de uma árvore, de um pássaro, de um ser humano, que encerra em si uma existência absoluta, inesgotável e rica, tal e tal. E muito raramente ele é capaz de apresentar criativamente coisas, objetos e formas de forma visível, tangível e palpável. E assim, sua própria vida prossegue apenas em relação, não em essência: ele se sacrifica à utilidade se tem uma alma estreita, ele se oferece a uma ideia se tem uma alma ampla; mas nunca, ou quase nunca, ele convive com as coisas, nutrindo-as e alimentando-as calmamente, amando o mundo e seguro em sua existência. Há, no entanto, um elemento que, em certo sentido, substitui tudo isso, dando à alma do judeu um núcleo, uma segurança, uma substância — não sensorial, objetiva, porém, mas motora, subjetiva. Isso é pathos[1]. Não consigo analisá-lo, nem mesmo defini-lo. É uma qualidade inata que, juntamente com todas as outras qualidades da tribo, se desenvolveu a partir de sua localização e de seus destinos. Se quisermos parafraseá-la, talvez possamos descrevê-la como a vontade do impossível. Ela estende seus braços para abraçar o ilimitado. Ela carrega consigo uma demanda absolutamente irrealizável, como o pathos de Moisés e dos profetas, a demanda por justiça absoluta, como o pathos de Jesus e Paulo, a demanda por amor absoluto; ou uma intenção absolutamente irrealizável, como o pathos de Spinoza, a intenção de formular o ser. Ou um desejo completamente irrealizável, como o pathos de Filo [de Alexandria] e da Cabala, o desejo de casamento com Deus, que no Zohar é chamado de “Zivug“. Assim, a alma, que não consegue encontrar um ponto de apoio nas coisas reais, é redimida de seu vazio e esterilidade ao criar raízes no impossível.

Portanto, se o poder do misticismo judaico deriva de uma característica original do povo que o criou, então o destino desse povo também o marcou. A peregrinação e o martírio dos judeus repetidamente colocaram suas almas nas vibrações do desespero supremo, do qual o relâmpago do êxtase tão facilmente desperta. Ao mesmo tempo, porém, impediram-nos de desenvolver a expressão pura do êxtase e levaram-nos a confundir o necessário, o experimentado, com o supérfluo, o colhido, e, sentindo-se incapazes de expressar suas próprias palavras devido à dor, a se tornarem tagarelas sobre o estrangeiro. Assim, surgiram escritos como o “Zohar“, o Livro do Esplendor, que são ao mesmo tempo um deleite e uma repulsa. Em meio a antropomorfismos grosseiros, que não são mais suportáveis pela interpretação alegórica, em meio a especulações opacas e incolores que se arrastam numa linguagem obscura e pomposa, vislumbres das profundezas secretas da alma e revelações de segredos supremos brilham repetidamente. O pathos frequentemente se rebaixa à retórica; os judeus sempre foram expostos a esse pecado, e nem sempre apenas os medíocres. No entanto, repetidamente, o pathos se liberta e se torna mais puro e maior do que antes. Maior de todos quando reconhece o perigo ameaçado pelas palavras. Comunicando-se porque não pode fazer de outra forma, sente, no entanto, a inadequação de toda comunicação, sente o inexprimível da experiência e arde de medo de ser profanado por sua própria fala. “Venha e veja!”[2], diz no “Zohar“; “Pensar é o princípio de tudo o que é; mas, sendo assim, é autocontido e desconhecido… O verdadeiro pensamento está conectado ao nada e não pode ser separado dele.” E quando um velho estranho proclama a imperecibilidade da energia aos discípulos de Shimon bar Yochai, o lendário mestre da Cabala (“Nada cai no vazio, nem mesmo as palavras e a voz do homem; tudo tem seu lugar e seu propósito”), eles recuam diante dele, mas não temem por si mesmos, mas por aquele que falou; dizem-lhe: “Ó velho, o que fizeste? Não teria sido melhor ficar em silêncio? Pois agora és levado, sem vela nem mastro, por um vasto mar. Se quisesses subir, não poderias mais; e ao afundar encontras o abismo sem fundo.”

Na época do Talmud, os ensinamentos místicos ainda eram um segredo, confiados apenas a um “mestre das artes e adepto da sussurrância”. Josefo nos conta com o cuidado com que os essênios guardavam o mistério e os escritos secretos, que consideravam antigos. Somente mais tarde os ensinamentos se estenderam além do âmbito da seita e da transmissão pessoal. O primeiro texto sobrevivente, o “Livro da Criação”[3] pitagórico, provavelmente se originou entre os séculos VII e IX; e o Zohar, pelo menos em sua versão atual, data do final do século XIII. Entre os dois situa-se o período do desenvolvimento real da Cabala. Mas, por muito tempo depois, seu estudo permaneceu limitado a círculos estreitos, embora se estendesse além da França, Espanha, Itália e Alemanha, chegando ao Egito e à Palestina. Durante todo esse tempo, a própria doutrina permanece alheia à vida: é teoria no sentido neoplatônico, uma visão de Deus, e nada exige da realidade da existência humana; não exige que se a viva, não tem conexão com a ação; o reino da escolha, que significou tudo para o misticismo judaico posterior, o hassidismo, é quase indiferente a ele; é extra-humano e só toca a realidade espiritual na contemplação do êxtase. Opõe-se a dois outros poderes dentro do judaísmo: o severo, estritamente religioso, hostil a toda vida pessoal e preocupado com a “lei”, e o racionalismo determinado por Aristóteles, alheio à natureza. Mas não opõe o ethos [costume] de nenhum deles ao seu próprio; e, portanto, seu significado não penetra no povo.

Somente nos últimos dias desta era novas forças se tornaram aparentes. A expulsão dos judeus da Espanha deu à Cabala seu grande caráter messiânico. A única tentativa enérgica da Diáspora de estabelecer uma comunidade criadora de cultura e uma pátria espiritual no exílio havia terminado em ruínas e desespero. O antigo abismo se reabriu e, dele, como sempre, surgiu o antigo sonho de redenção, imponente e imperioso como nunca antes desde os tempos dos romanos. O anseio arde: o absoluto deve se tornar realidade. O messianismo judaico também sempre foi um desejo pelo impossível. A Cabala não podia ignorá-lo. Ela chamava o Reino de Deus na Terra de “o mundo da perfeição”. Absorvia o fervor do povo. E, ao fazê-lo, penetrava no povo, como o próprio Messias em sua cidade.

A nova era do misticismo judaico, iniciada em meados do século XVIII, que proclama o ato ético-extático do indivíduo como cocriação na redenção, foi inaugurada por Isaac Luria. Ele, que ensinou cem anos antes de Locke que todo ser consiste em substância e aparência e que não existe conhecimento objetivo, dependia quase inteiramente da Cabala mais antiga em seus pensamentos sobre a emanação do mundo a partir de Deus e dos poderes intermediários demiúrgicos; mas em sua apresentação do efeito direto da alma humana, que se purifica e se aperfeiçoa, sobre Deus e a salvação do mundo, ele dá à sabedoria antiga uma nova forma e uma nova sequência.

O Talmud já afirma que o Messias[4] virá quando todas as almas tiverem entrado na vida física. Os cabalistas da Idade Média acreditavam que podiam determinar se a alma de uma pessoa diante deles havia descido até eles vinda do mundo ainda não nascido ou entrado neles em meio à sua peregrinação. O Zohar e a Cabala posterior expandiram essa doutrina, que encontramos formulada definitivamente por Luria. De acordo com essa doutrina, existem duas formas de metempsicose: a procissão circular ou peregrinação, gilgul, e a exuberância ou impregnação, ibur. Gilgul é a entrada das almas em seu caminho para dentro de uma pessoa no momento da concepção ou nascimento. Mas mesmo uma pessoa já dotada de uma alma pode, a qualquer momento de sua vida, receber uma ou mais almas que se unem à sua se estiverem relacionadas a ela, isto é, se tiverem se originado da mesma emanação do ser humano primordial. A alma de uma pessoa morta se une à de uma pessoa viva para completar uma obra inacabada que teve que deixar para trás na morte. Um espírito elevado e desfeito desce, em toda a sua luz ou em raios individuais, a um espírito inacabado, para habitar com ele e auxiliá-lo em sua conclusão. Assim nasce a profecia. Ou duas almas imperfeitas se unem para se complementarem e purificarem mutuamente. Se a fraqueza e o desamparo dominam uma dessas almas, a outra se torna sua mãe, carrega-a em seu ventre e a nutre com seu próprio ser. De todas essas maneiras, ocorre a purificação das almas da escuridão primordial e a redenção do mundo de sua confusão inicial. Uma vez que isso tenha sido realizado, todos completaram a jornada; só então o tempo se rompe e o Reino de Deus começa. Por fim, a alma do Messias desce à vida. Por meio dele, ocorre a deificação do mundo.

O ato particular de Luria foi querer colocar esse processo mundial na atitude de algumas pessoas. Ele proclamou que um modo de vida incondicional daqueles que se dedicam à salvação, em banhos de imersão[5] e vigílias noturnas[6], em contemplação extática e amor absoluto por tudo e todos, purificaria as almas, por assim dizer, em uma tempestade e invocaria o reino messiânico.

O sentimento fundamental, cuja expressão ideal era esse ensinamento, encontrou sua expressão elementar quase cem anos depois no grande movimento messiânico de Shabbatai Tzvi. Foi uma descarga das forças desconhecidas do povo e uma revelação da realidade oculta da alma do povo. Os valores aparentemente imediatos, uma vida saudável e posses, tornaram-se repentinamente obsoletos e sem valor, e a multidão foi capaz de abandonar os primeiros como um instrumento supérfluo e agarrar os últimos apenas com mão leve, como uma vestimenta que escorrega do corredor e que, se o atrapalha demais, ele solta os dedos, abrindo-a para correr nu e livre para a meta. A tribo, supostamente governada pela razão, ardia de zelo pela mensagem.

Esta revolta também fracassou, de forma mais miserável e horripilante do que qualquer uma das anteriores. E agora o messianismo se internaliza novamente. A verdadeira era da mortificação começa. A crença de que se pode conquistar os mundos superiores por meio da prática mística penetra cada vez mais profundamente nas pessoas. Por volta do ano 1700, ocorreu a migração ascética dos Mil e Quinhentos para a Terra Santa, culminando em morte e miséria. Mas os indivíduos também se preparam para a abnegação implacável. Na Polônia, em particular, a vontade de expiar a si mesmos e ao mundo amadurece em muitos. Como nenhum ato de automortificação pode satisfazê-los, alguns deles partem em uma jornada, “para o exílio”, como o chamam, sem aceitar comida ou bebida em lugar nenhum e, assim, vagando, levados pela própria vontade, até que suas forças e vida se extingam, e eles caiam mortos em um lugar estranho entre estranhos.

Esses mártires da vontade são os precursores do desenvolvimento final e mais elevado do misticismo judaico, o hassidismo, que surgiu em meados do século XVIII e, simultaneamente, o continuou e refutou. O hassidismo é a Cabala transformada em ethos. Mas a vida que ensina não é ascetismo, mas alegria em Deus. Chassid significa: o piedoso; mas chassidismo não é pietismo. Desprovido de qualquer sentimentalismo e ostentação emocional. Incorpora a vida após a morte a este mundo e permite que ela o governe e o molde, assim como a alma molda o corpo. Seu cerne é um guia altamente divino e realista para o êxtase, como o significado e o ápice da existência. Mas aqui, o êxtase não é, como no misticismo alemão, uma “desintegração” da alma, mas sim seu desdobramento; não a alma autolimitada e abnegada, mas a alma autoaperfeiçoada flui para o absoluto. No ascetismo, o ser espiritual, a neshamá, encolhe, enfraquece, torna-se vazio e opaco; somente na alegria pode crescer e realizar-se, até que, despojado de toda carência, amadureça no divino. Nunca uma doutrina baseou a descoberta de Deus no ser-próprio com tanto poder e pureza.

Mais uma vez, foi a Polônia que se mostrou criativa, e acima de tudo as planícies ricas em estepes da Ucrânia. A Polônia tinha uma comunidade judaica estável, fortalecida por seu ambiente estrangeiro e desdenhoso, e pela primeira vez desde o auge espanhol, uma vida distinta de obras e valores se desenvolveu aqui, uma cultura escassa e frágil, porém, independente. Se os pré-requisitos para a atividade espiritual estivessem assim presentes, uma doutrina mística só poderia crescer no solo da Ucrânia. Desde os massacres de judeus no Cazaquistão sob Chmielnicki, um estado semelhante de profunda insegurança e desespero prevaleceu aqui, assim como outrora rejuvenesceu a Cabala após sua expulsão da Espanha. E então, o judeu aqui não era, como em outras terras polonesas, um morador da cidade que se definhava em estreitos estudos rabínicos ou se tornava superficial na atmosfera da multidão agitada, mas principalmente um aldeão, mais solitário e mais próximo de si mesmo, limitado em conhecimento, mas original na fé e forte em seu sonho de Deus. O fundador do hassidismo foi Israel de Miedzyborz, que era chamado de “Baal Shem” (Mestre do Nome Milagroso de Deus). Uma lenda colorida e íntima cresceu em torno dele e de seus discípulos. Ele era um homem simples e verdadeiro, inesgotável em fervor e poder orientador. Os ensinamentos do Baal Shem foram preservados para nós de uma forma muito imperfeita. Ele próprio não os escreveu; e mesmo oralmente, como disse certa vez, apenas compartilhava o que o transbordava, como um vaso transbordante. Parece não ter encontrado ninguém entre seus alunos digno de absorver plenamente seus pensamentos; uma oração sua foi transmitida: “Senhor, é consciente e evidente para Ti quanto conhecimento e capacidade residem em mim, e não há homem a quem eu possa revelá-los.” No entanto, a maior parte do que ele ensinou parece ter sido escrita de forma bastante inadequada, muitas vezes completamente distorcida. Ao revisar um desses manuscritos, ele teria exclamou certa vez: “Não há uma única palavra aqui que eu tenha dito.” No entanto, o verdadeiro significado de seus ensinamentos fundamentais é inconfundível.

Deus, ensina o Baal Shem, é a essência de tudo. Aquele que, sem se esconder nas aparências, olha para a essência das coisas, vê Deus. Deus não fala a partir das coisas, mas pensa nas coisas; e, portanto, Ele só pode ser recebido com o poder mais íntimo da alma. Uma vez liberado esse poder, ele é concedido ao homem, em todo lugar e em todo tempo, para se unir a Deus. Todo ato consagrado em si mesmo, por mais baixo e insignificante que pareça para aqueles que se aproximam de fora, é o caminho para o coração do mundo. Em todas as coisas, mesmo naquelas que parecem completamente mortas, residem centelhas de vida que caem na alma preparada. O que chamamos de mal não é uma essência, mas uma deficiência; é o “exílio de Deus”, o nível mais baixo do bem, o trono do bem; é, na linguagem da antiga Cabala, a “casca” que envolve e oculta a essência das coisas. Não há nada mau e indigno de amor. Mesmo os impulsos humanos não são maus; “Quanto maior o homem, maior o seu impulso”; mas o homem puro e santificado faz do seu impulso “uma carruagem para Deus”, despoja-o de todas as cascas e permite que sua alma se aperfeiçoe nele. O homem deve sentir seus impulsos em suas profundezas e possuí-los. “Ele deve aprender o orgulho e não ser orgulhoso, conhecer a raiva e não se enfurecer. O homem pode se mortificar com todos os prazeres. Ele pode olhar para onde quiser e não se perder além de seus quatro metros; ouvir palavras de brincadeira e se entristecer. E assim acontece que ele se senta aqui, com o coração no alto, ele come e se diverte neste mundo e desfruta o mundo da bem-aventurança espiritual.” O destino do homem é apenas a expressão de sua alma: aquele cujos pensamentos vagueiam por coisas impuras experimenta a impureza; quem mergulha no sagrado experimenta a salvação. O pensamento do homem é o seu ser: quem pensa no mundo superior está dentro dele. Toda lei externa é apenas uma ascensão ao interior; o objetivo final do indivíduo é tornar-se ele mesmo uma lei. Na verdade, o mundo superior não é um exterior, mas um interior; é o “mundo do pensamento”.

Se, portanto, a vida do homem está aberta ao absoluto em todos os pontos e em todas as atividades, ele também deve vivê-la em consagração. Cada manhã é um novo chamado. “Que ele se levante rapidamente e com zelo de seu sono, pois foi santificado e se tornou outro homem, e é digno de criar, e é como Deus que cria os mundos.” Em todos os caminhos, o homem encontra Deus, e todos os caminhos estão repletos de união. Mas o mais puro e perfeito é o caminho da oração. Aquele que ora em seu fogo, em sua garganta, o próprio Deus pronuncia a palavra interior. Esta é a experiência [Erlebniß]; a palavra exterior é apenas sua vestimenta. “Assim como a fumaça sobe da madeira queimada, mas as partículas pesadas se agarram ao chão e se transformam em cinzas, assim apenas a vontade e o fervor sobem da oração, mas as palavras exteriores se desfazem em cinzas.” Quanto maior o fervor, mais poderosa a força intencional, kavaná, mais incondicional é a união. “É uma grande graça de Deus que o homem permaneça vivo após a oração; pois, por natureza, ele teria que morrer por ter enterrado sua força e a dedicado à oração por causa da kavaná que abriga. Antes da oração, que ele considere que está pronto para morrer por causa do kavaná.” Mas a oração não deve ser oferecida com dor e penitência, mas com grande alegria. Somente a alegria é a verdadeira adoração.

Se o êxtase da Cabala era meramente um meio de libertar almas errantes, de invocar o Messias, de comandar o mundo superior, aqui ele se tornou essencialmente seu próprio significado e objetivo.

Os ensinamentos do Baal Shem logo chegaram ao povo, que não estava à altura de suas ideias, mas ressoava com seu senso de Deus. A piedade desse povo sempre teve uma propensão para o imediatismo místico; eles receberam a nova mensagem como uma expressão exaltada de si mesmos. A proclamação da alegria em Deus parecia uma libertação após um milênio de governo jubiloso, mas hostil à alegria, pela lei. Além disso, o povo já havia se visto confrontado por uma “aristocracia espiritual” completamente estéril, alheia à realidade, inativa, mas nunca questionada, dos estudiosos talmúdicos. Agora, de um só golpe, eles foram redimidos dessa oposição e colocados em seus próprios méritos. Agora, era dito a eles não ser o conhecimento que determinava a posição de uma pessoa, mas a pureza e a consagração de sua alma; isto é, sua proximidade com Deus. O novo ensinamento veio como uma revelação daquilo que eles antes não ousavam suspeitar. Foi recebido como uma revelação.

Naturalmente, a ortodoxia declarou guerra à nova heresia, a chassidut, e a travou com todos os meios à sua disposição: excomunhão, fechamento de sinagogas, queima de livros, prisão e insultos públicos aos líderes, e não se esquivou de denúncias contra o governo. No entanto, o resultado da luta era inquestionável: a rigidez religiosa não resistia à renovação religiosa. Um oponente mais perigoso surgiu mais tarde na Haskalah, o movimento iluminista judaico, que, em nome do conhecimento, da civilização e da Europa, se opôs à “superstição”. Mas mesmo esse movimento, que buscava refutar o anseio do povo por Deus, não teria sido capaz de arrancar um único palmo de terreno do movimento que satisfazia esse anseio, se uma decomposição não tivesse começado dentro do próprio chassidismo, levando-o à imensa degeneração em que se afundou hoje. Sua causa primária era que o chassidismo, mesmo externamente, exigia o impossível: exigia do povo uma intensidade e concentração espirituais que lhe faltavam. Deu-lhes a salvação, mas a um preço que não podiam pagar. Como ponte para Deus, demonstrou uma pureza e clareza de visão, uma tensão e concentração de vida espiritual, das quais apenas alguns são capazes; mas falou a muitos. E assim, da angústia espiritual do povo, surgiu uma instituição de mediadores, chamados tsadikim (justos). A teoria do mediador, que vive em ambos os mundos e é o elo entre eles, por meio de quem a oração é elevada e a bênção é trazida, desenvolveu-se cada vez mais exuberantemente e, por fim, superou todos os outros ensinamentos. O tsadik tornou a comunidade hassídica mais rica na certeza de Deus, mas infinitamente mais pobre na única coisa de valor: sua própria busca e zelo. Somou-se a isso o mais repugnante abuso externo. No início, apenas indivíduos verdadeiramente dignos, principalmente estudantes do Baal Shem, foram elevados a tsadikim. Mas, como o tsadik recebia uma vida pródiga de sua comunidade, para se dedicar inteiramente ao seu serviço, pessoas humildes logo clamaram pela posição; e, como não podiam oferecer nada mais, eles conquistaram seu direito por meio de toda sorte de milagres miseráveis. Gradualmente, surgiram verdadeiras dinastias de tsadikim. Embora seu amor pelo esplendor às vezes não fosse isento de grandeza, ao mesmo tempo, um charlatanismo e uma hipocrisia indizíveis se instalaram, repelindo os mais puros, humilhando os mais autoritários e atraindo a multidão mais sombria. Assim, o chassidismo acabou degenerando em um sectarismo desolado e sombrio.

Traduzido do alemão em: BUBER. Martin. Die jüdische Mystik.  In: GROISER, David (ed.). Martin Buber Werkausgabe 2.1: Mythos und Mystik Frühe religionswissenschaftliche Schriften. München: Gütersloher Verlagshaus, 2013, pp. 114 – 123.


[1] Buber mantém o termo em grego, cujo significado pode ser entendido como paixão ou entrega [N. do T.].

[2] L’kha U’re’eh, termo em hebraico. Também encontrado no Novo Testamento como um convite (João, 1:46-49) [N. do T.].

[3] Buber se refere aqui ao Sefer Ietsirá, livro de suposta autoria de Abraão muito influente na Cabala europeia [N. do T.].

[4] Maschiach, do hebraico, significa o ungido em óleo sagrado, antiga cerimônia para alguém assumir o cargo de sumo sacerdote (cohen ha-gadol) do Templo [N. do T.].

[5] Mikvê em hebraico [N. do T.].

[6] Ashmurot em hebraico [N. do T.].

Assine o Newsletter da Revista Ágora Perene

Inscreva-se para receber conteúdo em sua caixa de entrada, todos os meses.

Não fazemos spam! Leia nossa política de privacidade para mais informações.

+ posts

Estevan de Negreiros Ketzer é Psicólogo clínico (PUCRS). Mestre e Doutor em Letras (PUCRS). Pesquisador nos arquivos do IMEC na França, em 2015. Assessor da Uniritter para a implementação da disciplina de Escrita Criativa ao ano de 2016. Pesquisador do Núcleo de Estudos Judaicos (NEJ) da UFMG. Pós-doutorando em Letras (UFMG).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *