Em busca da verdade, parte 2

O começo espiritual de Abrahão diz respeito a essa missão de ir para o oeste sem medo, pois ele enfrentaria também os grandes desafios de ser estrangeiro. Não seremos também estrangeiros em nossa própria terra?

Estevan de Negreiros Ketzer

Psicólogo clínico (PUCRS). Doutor em Letras (PUCRS).

Em hebraico verdade é emet, em que a letra alef com o sopro de Deus influa a coisa sem vida met. Emet termina a oração mais importante de todo o judaísmo, o Schemá Israel. Nessa oração, uma declaração de fé em todo o pacto (brit) entre o homem e Deus, em que um confia no outro para essa renovação da humanidade durante os tempos após o dilúvio de Noé. Essa confiança (emun) é a base para aquilo que chamaremos de fé (emuná) e a qual eu gostaria de discutir aqui com vocês.

A reflexão advém de uma musicalidade advinda de toda a palavra humana. Sempre gostei de música, mas escutar a música das Escrituras era algo inovador. Quem de nós não é capaz de escutar um sotaque de alguém que habita outra parte do país e escuta ali uma sonoridade que lhe chama atenção? Eu devo aqui falar acerca do afastamento de certos estímulos até o meu aprofundamento da Bíblia, principalmente na leitura dos cinco primeiros livros, a Torá (TORÁ VIVA, 2012). Leitura de muitos anos dos mesmos capítulos (parashot), repetindo-os (hazará) um a um, recitando-os, como em um canto que se transforma em oração (t’filá) tentando sentir antes de entender ali. Essa foi a minha missão tal como a de Abrahão, que sai de Ur dos Caldeus, e segue para o oeste, até chegar a Jerusalém e lá, no Monte Moriá, ter de cumprir com o ritual de assassínio de seu filho primogênito. Isso não foi feito com seu filho primogênito de fato, Ismael, mas com o seu segundo filho Isaac (Gênesis 22:2). Deus não deixa que Abrahão faça qualquer mal a seu filho e, portanto, indica que ao invés de matar seu filho ele faça o sacrifício de um cabrito preso nas moitas (Gênesis 22:12).

O que me deixou perplexo e ainda vejo como parte de um aprendizado muito maior é a palavra dita em hebraico pelo patriarca em resposta a Deus: “Aqui estou” (ineini). Aqui estou consciente… Abrahão está naquele momento consciente do que deve fazer. Não se nega, está disponível, sua missão é guiada por Deus e por isso ele coloca toda a sua vida em uma jornada incomum. A missão era confiada a Deus, por isso ele não a temia. Essa inteira confiança é algo que também exige muita maturidade, pois Abrahão o fazia pela leitura dos sinais enviados a ele por Deus. Ele aprendera a ler a vida pelos sinais, tal como um cientista dedicado a investigação daquilo que o cerca. O que é? Como é? Pode servir para mim? É realmente algo para mim? Questões também devem se dirigir para nossa intimidade, a partir daquilo que só nós podemos fazer e não outra pessoa, mesmo que as condições sejam semelhantes ou o ideal traçado seja maior do que nossa capacidade. Esse fato também é um traço marcante na história de Abrahão que não desprezou seu primeiro filho, Ismael, mas teve de dar maior suporte a Isaac.

“Levanta teus olhos e do lugar onde tu estás agora olha para o norte, para o sul, para leste e para oeste” (sa֣a ni֤a eino֙yich֙ uraim֔ha man-hamak֖om asher-at֣ha sh֑m tsipu֥na veno֖gba vakea֥dma vayaֽma) (Gênesis 13:14). Essa passagem mostra o quanto a tenda de Abrahão era acolhedora com os estrangeiros, tal como ele era um em terra estranha a sua. O começo espiritual de Abrahão diz respeito a essa missão de ir para o oeste sem medo, pois ele enfrentaria também os grandes desafios de ser estrangeiro. Não seremos também estrangeiros em nossa própria terra? Como enfrentar desafios que não sabemos lidar? Nós poderemos algum dia estarmos prontos? Será possível vencer todas as adversidades?  Abrahão aprendeu a cuidar de si, a fazer prosperarem suas terras como um simples pastor. Essa simplicidade é algo que vejo com extrema importância, pois Abrahão era humilde e, ao mesmo tempo amoroso, tanto com seus filhos quanto com sua esposa, Sara. A amorosidade de Abrahão é uma busca para a vida humana. Não me refiro a uma amorosidade que se lastreia pela paixão, mas sim em um jeito de ser que tanto recebe com curiosidade quanto com cuidado específico para cada necessidade da pessoa. Isso envolveu conhecer minhas necessidades, onde eu estava machucado e precisava de uma cura das feridas… Cura essa que demorou anos para acontecer. Esse reconhecimento também me levou a querer conhecer mais o horizonte das pessoas que me cercam e como o amor e a humildade devem ser virtudes humanas profundamente naturais para melhorarmos as relações ao nosso redor. Isso é muito mais forte do que qualquer conhecimento que possamos ter.

O conhecimento (daat) advém de um momento em que a religião (dat) se estabelece no mundo judaico durante a saída do Egito. Não podemos nos esquecer que dat é a junção das palavras dalet e tav, “sinal da porta”, pois, Deus pediu aos hebreus para colocarem sangue de animais adequados ao abate sacrificial nas portas como um sinal de distinção entre eles e os egípcios. O anjo da morte passou (pessach) pelas portas dos hebreus e matou os primogênitos dos egípcios (Gênesis 12:13).

Assas passagens são para mim muito importantes no caminho que levou ao meu amadurecimento. Primeiro, porque os ensinamentos antigos estão permeados de sabedoria (chochmá), termo que também é parte daquilo que entendemos como inteligência (chacham). Ser inteligente é ter a capacidade de desenvolver respostas para problemas, mas fazê-lo partindo de uma construção pessoal sua. Não consigo ver inteligência quando todos apenas seguem um programa já estabelecido, com passos bem marcados e não experimentados por si mesmos. A procura das respostas mais importantes passa pelas dúvidas mais sinceras, disse um amigo meu certa vez quando falávamos sobre a sabedoria judaica. Eu senti isso como um chamado para o pensamento, pois as dúvidas verdadeiras são tanto interpelantes quanto curiosas. Elas nos tiram de nosso horizonte de razoabilidade, nos levam para o deserto muitas vezes, tal como foi no Êxodo dos hebreus. O fato de estar no deserto, se perder, voltar o caminho, criar outros elementos para dar sentido para a existência, enquanto outras coisas não chegam, são parte dos reais problemas que podemos ter com a vida em sua complexidade.

Outro elemento que me traz com força para a história de Abrahão e o sacrifício de Isaac, permeia o fato de ambos terem entendido que o ato sacrificial no monte Moriá era o fazer cumprir um mandamento (mitsvá). Nós temos a impressão de que os mandamentos são sempre atos impeditivos, como “não fazer”. De fato, muitos deles o são, mas esquecemos que há mandamentos que são positivos, os quais “devemos fazer”. Para a mente ocidental é difícil entender isso, eu mesmo já me peguei pensando em diversos momentos sobre os mandamentos. Um belo dia, em uma caminhada pelas ruas de onde moro, percebi que o segredo dos mandamentos negativos é dar a oportunidade para eles se tornarem positivos em nossa vida, como ver o lado bom de não roubar, por exemplo. Não roubar impede a satisfação de um desejo de ter, porém, exigirá de mim “como passar a ter”, o caminho que me levará para alcançar o objeto de meu desejo. Ele é mais difícil, certamente, mas ele exige de mim, da minha pessoa, algo que nossa geração costuma esquecer muito rapidamente. Nós esquecemos porque justamente é algo que precisa de ser lembrado sempre em nossas vidas, como uma memória (z’achor) e a necessidade de nos adentrarmos naquele mandamento como parte do aprendizado da própria vida humana. Não por nada, os primeiros mandamentos a serem seguidos foram justamente as Sete Leis de Noé (Gênesis 9:4-6):

  1.  Não cometer idolatria(Avodah zarah);
  2.  Não blasfemar (Birkat Hashem);
  3.  Não assassinar (Shefichat damim);
  4.  Não roubar (Gezel);
  5.  Não cometer imoralidades sexuais (Gilui arayot);
  6.  Não maltratar aos animais (Só é permitido tirar a vida de um animal para se alimentar) (Ever min ha-chai);
  7. Estabelecer sistemas e leis de honestidade e justiça (Dinim).

Eu percebi que não poderia ser um hipócrita apenas por “cumprir” mandamentos. Não acho que esse seja a forma mais correta de pensar sobre eles. Eles me levam a rever meus atos, meus desejos, meus impulsos e se, de fato, eu estou a pensar em mim dentro de cada um desses mandamentos. Por exemplo, não blasfemar pode ser lido como não falar mal de alguém, mas isso inclui também não exigir de alguém aquilo que eu mesmo não tenha condições de realizar. Isso é, conhecer meus limites para não ter de ultrapassar os limites de ninguém por pensar de modo despropositado que as coisas estão apenas fora da minha percepção, como objetos. Eles também são parte da minha criação interna. Esse fato marca muito um pensamento que creio ter me feito cada vez melhor para estudar a Bíblia de forma prática e não apenas como um livro literário.

Mais do que isso: a Bíblia é para mim um documento do meu próprio renascimento, do entendimento de minhas origens, dos escombros do passado remoto, das dificuldades da vida de meus pais e avós, das lutas que aprendi a travar em busca da minha própria pessoa e mesmo do legado que meus filhos terão pela frente. Assim como Abrahão, cuja missão de Deus ele aprendera a ler os sinais e tomar a ação adequada frente ao desafio que tinha a sua frente, eu me vejo diante ao mundo com o propósito que fui escolhido e também participei do processo de escolha. Para mim essa também é parte da busca da verdade imprescindível à vida.

Referências:

TORA VIVA. Org. trad. Hebr. Rabino Aryeh Kaplan. Trad. Port. Adolpho Wasserman. São Paulo: Maayanot, 2012.

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Estevan de Negreiros Ketzer é Psicólogo clínico (PUCRS). Mestre e Doutor em Letras (PUCRS). Pesquisador nos arquivos do IMEC na França, em 2015. Assessor da Uniritter para a implementação da disciplina de Escrita Criativa ao ano de 2016. Pesquisador do Núcleo de Estudos Judaicos (NEJ) da UFMG. Pós-doutorando em Letras (UFMG).

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