
Eliseu Cidade
Pensamentos são derivados da compreensão do real ou apenas de abstrações? Dado que a consciência é muito mais ampla que a própria estrutura mental humana, captamos mentalmente uma parcela muito ínfima do que essa faculdade cognitiva é capaz. É pertinente ao mundo do espírito, em última instância, a dimensão extra sensorial.
Quando lemos o número 3 em um papel, não associamos imagens exteriores sobre ele, afinal ele é um signo, isto é, sua essência é simbólica, como todos os demais números. Portanto, ele se manifesta como algo, de algum modo, quantitativo, não qualitativo. Esse 3 é autoevidente, embora não associamos ele a nada do mundo externo. Agora se digo 3 maçãs ou 3 lápis, já formamos imagens mentais de dados da realidade empírica. Ou seja, a estrutura puramente numérica trata de questões que envolvem o conteúdo, mas que não são, de maneira alguma, elas mesmas o conteúdo manifestado. Eis a diferença.
Portanto, o mundo da linguagem é, sem dúvida, o próprio mundo simbólico. Tudo o mais é a realidade manifesta em suas nuances na esfera real, oscilando em seus graus de perceptibilidade. Os símbolos existem como representações da realidade em termos de evidências, não sujeitas a provas, pois mesmo sem prova laboratorial, sabemos que elas existem. É assim com os números e com as próprias notas musicais, arte derivada da própria aritmética elementar. Portanto, percebe-se que tais símbolos são elementos ordeiros de um sistema.
Quanto aos números, desde sua história mais remota, eles surgem como necessidade prática, isto é, aparecem como derivações do próprio cotidiano do homem. Uma vez que necessitavam de contar os rebanhos, fazer o levantamento do gado que os proprietários do Oriente Médio e Próximo possuíam, surgem os números hindu-arábicos que foram os sistemas de numeração mais conhecidos e divulgados no ocidente. Outras civilizações, obviamente, possuíam seus próprios sistemas numéricos; as civilizações tanto babilônica, fenícia e egípcia contavam com seus próprios sistemas de numeração e, principalmente, os conhecimentos matemáticos sempre indispensáveis a qualquer projeto de urbanização e construção civil.

Na sociedade ocidental, os números hindu-arábicos se consolidaram pela própria questão comercial. A economia antiga era baseada em trocas monetizadas tanto na Grécia e Roma Antigas, o que depois, na Europa Medieval, será deixada de lado para só ser utilizada novamente após o Renascimento Urbano. Desse modo, essas elucubrações históricas evidenciam o caráter prático do uso dos sistemas de numeração, não só como algarismos contáveis, mas também capazes de serem utilizados para realização de cálculos complexos frutos de projetos urbanísticos.
Mas, a matemática como conhecimento é atemporal, ela sempre existiu antes do homem ser homem e, continuará a existir, mesmo após a extinção do último dos homens na terra. Ela faz parte da estrutura formadora do universo nas suas minúcias. Claro que está contemplada na esfera dos símbolos e, como já foi dito anteriormente, ela não necessita ser provada, pois ela parte de estruturas universalmente aceitas.
Quando alguém afirma que 5+5 é igual a 10, em qualquer ponto do globo, independente da cultura, língua ou país de origem, o resultado será o mesmo. Mas o conteúdo dela só pode ser assumido a partir da linguagem, pois se não houver um substantivo que se refere à quantidade numérica, os números são meros símbolos universais. Portanto, eles funcionam como evidência puramente lógica.
Quanto às notas musicais, já diziam os escolásticos que elas são, por excelência, uma das artes liberais que derivam da própria aritmética. Sem aritmética não há música, pois não há a estrutura temporária de duração das notas. A música é uma arte performática, assim como a dança e o teatro, pois a sua duração se passa no tempo presente.
Quando ouço uma Toccata ou Fuga de Bach, sei que ela foi composta há quase quatro séculos. Porém, aquela mesma música, em toda sua estrutura matemática e simbólica, é vivenciada por mim no mesmo momento em que a escuto hoje. Pois ela se dá no decorrer do tempo presente a partir da ordem melódica das notas que se sucedem no tempo. E esse é exatamente o conceito de música, a arte de combinar sons ao longo do tempo.
A matemática é uma serva da música no momento em que fornece as próprias condições para sua existência. Já os símbolos musicais, surgem das próprias notas que estão presentes nas cordas vocálicas, nos instrumentos tanto de sopro, cordas ou arco. Nesse sentido, a música também possui em si algo de simbólico como a matemática, não só em sua estrutura temporal, mas em seu próprio conteúdo sonoro, já que uma nota pode ser decomposta em partes menores ou, através de pontos de aumento, ter seu valor elevado sempre obedecendo a proporcionalidade matemática necessária à relação que se estabelece na duração das notas, sempre baseando-se em uma nota base.
Quanto ao som como onda mecânica, é óbvio que aquilo que podemos ouvir também é limitado. Muitos mamíferos conseguem ouvir muito melhor que nós, inclusive faixas de som das quais nossos ouvidos não são capazes de processar. E, a música não é qualquer som, como um barulho que desperta alguma espécie de mal estar ao ouvinte, porém ela é verdadeiramente um conjunto de sons que devem possuir a melodia, harmonia e ritmo, e, como fruto de sua própria atuação no ambiente, leva o indivíduo a contemplá-la em sua mente.
Assim, a própria manifestação da música se dá na esfera da consciência. Embora, neurocientistas afirmem que certos lobos do cérebro estão processando a música no momento em que escuto, ela não impacta somente minhas estruturas cerebrais, mas meu próprio estado de espírito. A música é em si mesma a manifestação da linguagem abstrata que pode ser inteligível à mente humana através de seu encadeamento de notas no tempo.
Quando digo que a música também pertence à esfera simbólica, isso naturalmente ocorre pois uma nota musical não diz absolutamente nada. Ela é um mero símbolo na pauta musical. Somente ganha significado a partir do momento em que alguém a toca em algum instrumento. A partir do momento que uma partitura é tocada, aí sim existe a tradução desses símbolos na realidade. Ela é processada sempre mentalmente, até porque se fosse materialmente, seria um contrassenso. Ela não pode ser contemplada da mesma maneira que uma pintura ou escultura.
Desse ponto, começa-se a entender um pouco o universo de atuação que a música imprime no ser, pois ela atua na esfera suprassensível e atualiza as realidades presentes naquele momento. É arte em toda sua manifestação. Um dom divino que emana diretamente das esferas celestes e reverbera nas mentes engenhosas que primeiro as sentem, compreendem e depois a materializam em símbolos.