As Origens Esotéricas do Pensamento de Descartes – Tiago Barreira

René Descartes (à esquerda, 1596-1650), O Colégio Invisível da Fraternidade dos Rosacruzes (ao centro, 1604). Raimundo Lúlio (à direita, 1232-1315)

O que distingue o pensamento moderno e tradicional? A noção cartesiana de mathesis universalis e o seu sistema de ciências unificadas segundo uma álgebra matemática universal parece ser um importante divisor de águas que separa o conhecimento moderno e tradicional. O mais surpreendente, contudo, é que esta centralidade universal da matemática dada pelos modernos possui raízes tradicionais e esotéricas, sob influência de ensinamentos herméticos rosa-cruceanos e da filosofia simbólica universal de Raimundo Lúlio.

Tiago Barreira

Diferentemente de alguns pensadores críticos da modernidade, não me considero o tipo de pessoa adepta de um antimodernismo rancoroso, apesar de simpatias pessoais pelo tradicionalismo e o classicismo no campo metafísico, estético, antropológico e moral. Talvez pela formação racionalista e quantitativa que recebi em uma disciplina de ciências exatas, reconheço o papel positivo que as novas ideias modernas trouxeram sobre o desenvolvimento científico, econômico e social do mundo contemporâneo.

Não se pode negar que o homem pobre vive materialmente muito melhor que o mais rico dos príncipes medievais. Banheiros domésticos eram artigos de luxo há pouco menos de 200 anos. Saúde duradoura, habitação confortável com acesso à eletricidade, água encanada e telecomunicações. São inúmeros os confortos exigidos e reivindicados atualmente como bens essenciais, de cuja ausência se acredita ser insuportável à vida, mas que sequer poderiam ser imaginados como possíveis há até poucas gerações.

Deve-se reconhecer, sim, que a crítica tradicionalista em parte tem a sua razão em condenar os excessos desse espírito moderno, com todos os seus desequilíbrios que tão bem vemos na cultura contemporânea. O tradicionalismo tem o seu ponto ao alertar por um progresso material humano generalizado que corre paralelamente ao contínuo e generalizado desajustamento espiritual humano.

Porém, não se pode jogar fora a água da banheira junto com o bebê. O grande desafio para o homem clássico e tradicionalista dos dias atuais, creio eu, está em reconhecer a justa medida e o papel que esta tradição moderna ocupa. As conquistas do progresso humano, em qualquer que seja o seu campo, seja econômico, material ou espiritual, devem ser louvadas e conservadas, mas nunca a ideologia de um progressismo desenfreado, desordenado. Nunca este permanente estado de progresso autofágico, que de tempos em tempos, tal como Cronos, precisa devorar e sacrificar seus próprios filhos para que possa continuar crescendo e progredindo.

Feito esses esclarecimentos sobre o que penso sobre a cultura moderna, deve-se apontar para um outro ponto relevante. Se existe algum fundamento de verdade na tese antimoderna, esta deve vir de uma distinção clara do conceito de modernidade, e de como ela se diferencia do que não é modernidade. E esta distinção entre moderno e não-moderno somente pode ser conhecida a partir de um estudo aprofundado da história da filosofia. Somente assim, analisando as origens filosóficas do moderno, poderiam ser levantadas bases para uma crítica objetiva das ideias modernas, sem recair em um mero sentimentalismo nostálgico vago, que vê modernidade e revolução em tudo que é lugar. A tese tradicionalista da crítica da modernidade perde muita sua força quando limitada a meras afetações sentimentais de saudosismo “dos velhos tempos”, algo não muito diferente daquilo hoje defendido pelo tiozão do zap.

Então no que consistiria o moderno e o tradicional? O senso comum costuma identificar o pensamento moderno como centrado no inovador e transgressor, e o tradicional na manutenção da ordem e status quo. Contudo, trata-se de algo mais complexo que isso. A própria modernidade se consolidou como uma tradição do ponto de vista social e institucional ao longo dos últimos séculos, enquanto expressão das verdadeiras “luzes” e da razão civilizatória, e estando as ideias do tradicionalismo expulsas das cátedras universitárias. O tradicionalismo, tratado como um pensamento obscurantista outsider, é visto, portanto, como uma corrente “revolucionária” para os tempos atuais.

Outra distinção possível de ser estabelecida é a do moderno enquanto dotada de uma visão científica experimental da realidade, centrada no mundo físico e material, e a do tradicional enquanto uma visão dogmática teológica, centrada no metafísico e espiritual. Novamente esta outra distinção não ajuda. Pois a visão científica também possui raízes metafísicas e espirituais, baseando-se na crença de conceitos não-empíricos a priori para que possa operar experimentalmente, como os números matemáticos. Muitas teorias confirmadas pela ciência também tiveram suas origens em princípios metafísicos que não podem ser confirmados experimentalmente.

Historiadores da ciência já reconhecem hoje que o imaginário esotérico renascentista do século XVI, com toda a sua proliferação da astrologia e do hermetismo, ao invés de constituir um corpo estranho ao processo histórico de desenvolvimento da ciência racional, cumpriu um papel fundamental e foi um grande campo fértil para a sua formação. A alquimia de Paracelso ofereceu bases a priori para a química moderna. O mesmo vale para as influências esotéricas sobre Newton na formulação de conceitos como gravidade, inércia e espaço vazio.

E deve-se reconhecer, por fim, que é a fé dogmática na matemática a grande marca do pensamento moderno, tendo influenciado todo o modo de se pensar das ciências naturais e humanas e na construção do conhecimento a posteriori destas.

O forte viés matemático existente hoje nas ciências em muito se desenvolveu graças ao pensamento de René Descartes no século XVII, através da sua concepção de mathesis universalis. A mathesis universalis foi o grande ideal metafísico que norteou todo o pensamento cartesiano, que fala em um sistema de conhecimento total da realidade e natureza, integrado e unificado na linguagem universal da matemática. Descartes pôde perceber que o objeto de interesse exclusivo da matemática volta-se para questões de ordem e medida, e que “não importa que a medida em pauta envolva números, formas, estrelas, sons e qualquer outro objeto”. Esta noção da matemática enquanto linguagem universal do conhecimento, uma “álgebra universal” está também muito associada à frase de Galileu “matemática é o alfabeto pelo qual Deus escreveu o universo”.

A noção de mathesis também serviria de base para que Descartes desenvolvesse mais tarde o seu método de conhecimento, sobre a qual, a partir do conhecimento claro e distinto de ideias racionais simples, seria deduzido todo o conhecimento de outras ideias mais complexas e sensíveis da realidade e do mundo.

Assim, foi através da mathesis universalis que Descartes aprofundaria a matematização da teoria física iniciada por Galileu, agora liberta de fundamentos aristotélicos empíricos que inibia o seu uso, culminando na física de Newton do século seguinte. E este modelo newtoniano da física seria exportado para todas as demais ciências humanas no século XIX, como a economia de Jevons e Walras. Planificadores sociais começariam a usar a matemática como ferramenta para a construção de uma sociedade perfeita. O direito de Jeremy Bentham abraçaria a matemática, ao avaliar as leis de forma objetiva segundo o cálculo utilitário de maximização da felicidade social. Na sociologia, o uso de métodos estatísticos desenvolvidos por Quetelet visavam identificar as influências sociais e ambientais atuantes sobre o comportamento criminal.

Todos esses desdobramentos do uso da matemática nas ciências listadas, das quais tão bem definiram e moldaram o modo de pensar do homem moderno, encontrando suas aplicações em diversos campos práticos e tecnológicos, possuem em comum o fato de que todos esses acreditavam que os números constituem o princípio supremo da objetividade e precisão científica. Todas elas originadas no grande sonho da álgebra universal de Descartes.

Esta noção mathesis, portanto, parece ser o grande divisor de águas que separa o mundo moderno e tradicional. O mais surpreendente, contudo, é que esta mesma noção possui raízes tradicionais e esotéricas. Descartes, ao elaborar o conceito de mathesis, não inventou nada de novo, mas buscou reviver uma arte matemática tradicional, tendo percebido, a partir dos escritos dos matemáticos antigos gregos, que havia sido deixada uma lacuna implícita nas demonstrações matemáticas e geométricas, somente revelada de forma iniciática. Nas palavras de Descartes:

“Em nossa época, alguns homens muito talentosos tentaram ressuscitar este método, pois me parece que ele nada mais é do que a arte conhecida pelo nome bárbaro de álgebra”

Especula-se que a demonstração em equações algébricas, que somente seria sistematizada amplamente no final do período medieval por via dos árabes, teria sido já conhecida pelos gregos antigos, constituindo este o conhecimento implícito, oculto e iniciático mencionado.

Um dos principais elos entre Descartes e a descoberta do esoterismo da mathesis está em um dos seus mestres, o matemático Isaac Beeckman. Levanta-se a hipótese que Descartes teria tido, através dele, contato com os círculos da Rosa Cruz. É sabido que a ideia de uma mathesis universalis tinha uma longa história e ampla circulação no século XVII por meio de matemáticos como Adrianus Romanus. É sabido também que Descartes teve contato e se envolveu em discussões com seguidores do filósofo Raimundo Lúlio, tendo lido a obra Ars Brevis, de forte base esotérica, numerológica e cabalística.

Raimundo Lúlio descreveu o seu sistema de pensamento como a “arte de descobrir a verdade”. Sua meta era “desenvolver uma espécie de linguagem universal que, empregando um sistema axiomático, pudesse ser usada para gerar verdades a partir de premissas fundamentais.”

O projeto de Lúlio, de caráter evangelizador sobre os muçulmanos, seria esquecido logo após a sua morte, tendo sua obra Ars Brevis resgatada no século XVII por Cornelius Agrippa, um importante membro da Irmandade Rosa Cruz, adepto dos escritos alquímicos e astrológicos de Hermes Trimegisto. Tanto a Rosa Cruz quanto o hermetismo defendiam a crença gnóstica na existência de uma chave secreta da totalidade do saber.

Os rosa-cruzes tornaram-se um movimento expressivo nos tempos de Descartes. Baillet nos informa que, ao retornar da Alemanha para Paris em 1623, Descartes foi chamado para se defender da acusação de ser rosa-cruz.

Embora Descartes de fato tenha se mostrado cético aos ensinamentos esotéricos de Lúlio e Agrippa, alguns estudiosos notam paralelos entre a arte dialética lulliana e as ideias cartesianas. Dentre esses paralelos se encontra a ideia de simbolismo universal defendido por Lúlio. Pois a arte lulliana tinha duas características fundamentais, que espelhavam as que Descartes iria atribuir ao seu “método”. Tratava-se, em primeiro lugar, “da característica de constituir uma ciência geral e universal”, que partia de princípios absolutamente corretos e estabelecia um critério seguro de conhecimento; e, em segundo lugar, da de ser a “ciência das ciências, fornecendo a chave para a ordenação de todos os conhecimentos”.

Em resumo, levando em consideração essas influências tradicionais e esotéricas sobre o pensamento científico de Descartes, muitas questões adicionais surgem e poderiam ser ainda levantadas sobre as raízes da modernidade, a partir de quando e como surgiu. Questões que poderiam ser analisadas de forma mais oportuna em artigos posteriores.

Todos esses pontos revelam o caráter complexo em definirmos objetivamente o que seria um pensamento moderno e o que seria um pensamento não-moderno. Ideias modernas não necessariamente são rupturas com a Tradição, mas podem constituir parte de um elo contínuo com ensinamentos tradicionais milenares, tal como evidenciado na sabedoria algébrica da mathesis.

Mas a partir de que momento uma dada tradição se torna moderna e anti-tradicional? Esta questão não é tão trivial de ser respondida. Como se pode notar, no século de Descartes, ao menos ainda se procurava uma compreensão científica das coisas que fosse compatível com um ideal clássico de unidade filosófica do conhecimento. A metafísica, diferentemente de ser jogada no lixo como uma relíquia bárbara de um passado supersticioso, ainda era valorizada enquanto estruturante do pensamento. Enquanto hoje a ciência envergonhada ataca de forma inquisidora a metafísica, esquecendo-se e ocultando aos olhos de todos o galho frágil do qual se sustenta.

Mas quão diferente é esta concepção dos filósofos do século XVII daquela posteriormente abraçada pelos positivistas! O especialismo tomaria conta do processo de investigação científica nos séculos posteriores. Augusto Comte, em seu ceticismo empirista, posteriormente negaria o valor científico da metafísica, o que seria seguido pelo positivismo de Viena no início do século XX. Não se deram conta que o próprio tecido teórico costurado pela ciência reside na concepção metafísica de Descartes.

 

Referências Bibliográficas

GAUKROGER, Stéphan.  Descartes – Uma Biografia Intelectual. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 1999. Trad. Vera Ribeiro.

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.

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