Blavatsky: a Mãe da Espiritualidade do Mundo Atual – Cristian Derosa

Reprodução: Farenheit

Neste ensaio escrito por Cristian Derosa, aborda-se a influência da mística russa Helena Blavatsky na formação da espiritualidade moderna da sociedade atual. É discutido o seu papel como guru do movimento esotérico da Nova Era e como suas ideias impactaram na formação de correntes ideológicas do século XX e XXI, como o globalismo, o nazismo e o eurasianimo.

Cristian Derosa

Helena Petrovna Blavatsky, conhecida pelo apelido de Madame Blavatsky, pode ser considerada uma verdadeira guru da modernidade. Sua marca está presente em sistematizações ideológicas das mais aparentemente díspares, como nazismo, fascismo, ideologia de gênero, políticas LGBT, ecologia, direitos dos animais, controle populacional e as novas propostas ideológicas de Vladimir Putin. Considerada uma “mente iluminada” que deu ao Ocidente a espiritualidade cambaleante da Nova Era, responsável pelo esvaziamento de todo o conteúdo doutrinário especificamente do cristianismo no mundo, as suas teses parecem estar na origem tanto das aberrações ideológicas quanto psicossociais do nosso tempo. Mas o papel da guru pós-moderna foi o de reunir, em um caldeirão de cosmovisões, ingredientes que estavam em circulação já nos séculos anteriores, amalgamando-os em uma mistura tóxica que deu origem às piores catástrofes do século passado.

Desenvolvimentos progressivos da exposição de ideias aberrantes que vimos crescer na história recente puderam ser sentidos na filosofia dos tempos precedentes. É fato que há infindáveis maneiras de abordá-los, mas tentaremos por uma das vias, em um arranjo ao mesmo tempo esquemático e ensaístico.

O século XIX foi, ao mesmo tempo, o momento do cientificismo mais radical e o nascedouro das principais doutrinas esotéricas, quando aparecia sob a política o resultado da Revolução Francesa e, nas ciências e nas artes, os sistemas matemáticos que se adaptaram à lógica, linguística e até da teologia. Os alemães já viviam a sua lebensreform, culminado no empreendimento do Monte Veritá, espécie de Woodstock do século XIX, que reunia em um vale suíço vários teosofistas europeus e anarquistas russos, como Mikhail Bakunin, num sonho utopista espiritualista. Foi no final daquele século que surgia um dos nomes mais importantes do espiritualismo esotérico da modernidade, Helena Petrovna Blavatsky, filha de família nobre militar alemã-russa, da qual fugiu para espalhar ao mundo a sua “doutrina secreta”, cujo conteúdo sintetizado hoje pode ser identificado até mesmo em frases chavões proferidas por celebridades da música e dos espetáculos. A madame espalhou doutrinas erráticas que esvaziaram a espiritualidade ocidental enormemente, substituindo-a por um conjunto de seduções pela exótica estética orientalista que se sedimentou na moda pop do século seguinte.

No ambiente do século XIX, as ideias espiritualistas pareciam aliviar a tensão política e social provocada pelo ambiente definido por um imaginário de profunda objetividade, empirismo, pensamento racional, uso completo e pleno da razão humana como verdadeira forma de conhecimento, mesmo que essa nova fé metastática viesse das profundezas da mais espiritualista das utopias orientalistas nascida no seio da Renascença. A ênfase quase caricatural na razão pelos iluministas tinha a função de combater as explicações anteriores sobre a realidade, a saber, a teologia e a filosofia Escolástica medieval, cuja versão sobre o cosmos, o universo e o homem havia sido por séculos a oficial.

A imagem que se tem ainda hoje sobre a revolução científica é a de que, de repente, pensadores resolveram dar respostas racionais a tudo aquilo que não havia sido respondido pela fé ou cujas explicações eram insuficientes. Essa é a primeira falsidade, pois já havia explicação suficiente para o mundo, mas a intenção de substituí-la por uma nova era o principal motivo que guiava aqueles intelectuais imersos em esoterismos e crenças místicas condenadas pela Igreja, como bem exemplifica a certeza pseudo-científica de Galileu contra a Igreja.

Afinal, segundo o historiador Etienne Couvert, as considerações sobre os movimentos da terra e do sol foram os pretextos para desenvolver um ensinamento fundamentalmente panteísta. Galileu era membro da sociedade dos Liceus, onde funcionava uma ordem maçônica esotérica. Mas as autoridades eclesiásticas afirmaram na época que “não prejulgavam as considerações puramente astronômicas ou físicas”. A condenação da tese heliocêntrica centrava-se em razões diferentes das científicas, já que o Vaticano subscrevia a descrição meramente física do fenômeno. A real intenção da tese de Galileu havia sido ocultada sob uma aparência do igualitarismo protestante. Este, emulando a desculpa igualitária de Lutero, chegou a dizer que “o livro da natureza não foi escrito para ser lido somente por Aristóteles. Esse grande livro do mundo está ao alcance de todos”. A intenção de falsificar a fé e inserir um culto solar, além da negação do dogma da transubstanciação, passaram ao largo da história de Galileu, tendo sido mais conhecido como um tipo de “mártir” da ciência, tão avidamente idolatrada nos séculos seguintes.

Sem a autoridade da Igreja, que mais do que mestre espiritual detinha em mãos o ápice do desenvolvimento intelectual por meio da Escolástica, o mundo ocidental viu crescer a autoridade civil dos livres pensadores, que das artes à política, definiram modos de ser e pensar por meio de suas próprias personalidades e idiossincrasias. O auge desse individualismo, que propunha o ímpeto do homem espirituoso como obra de arte, viu no romantismo, especialmente o alemão, uma avidez avassaladora pela obra máxima da natureza: o homem. Esse movimento, que foi chamado de Sturm und Drung (Tempestade e Ímpeto) levava massas à atração pelos discursos originais de seus contemporâneos.

Alemães e russos

Dois processos paralelos levaram Madame Blavatsky ao posto de guru espiritual da modernidade. O primeiro foi o efeito psicossocial da Reforma na intelectualidade alemã. Como uma espécie de “queda”, os alemães foram banidos da comunhão e sucessão apostólica, amputados e banidos de uma vez por todas da raiz espiritual da tradição ocidental por excelência. Isso levou ao crescente interesse por uma origem alemã fora do ocidente, originando o lebensreform do Monte Veritá, de um lado, e o orientalismo crescente que culminou na ariosofia após o contato de nomes como Guido Von List com a obra de Blavatsky. O segundo processo que se soma à grande avalanche orientalista que se precipitou no ocidente ocorreu também na Europa, mas voltado para a Rússia. Rudolf Steiner, um teosofista alemão que depois iria criar a sua antroposofia, percorreu o seu país em palestras seguidas de perto por estudantes russos. Segundo Gary Lachman, no livro The return of holy Russia, as suas palavras impressionaram um grande número de pessoas quando ele disse que uma era “pós-atlântica” estava para vir, capitaneada pela Rússia em um reavivamento espiritual de esoterismos pelo mundo.

Na verdade, os russos já estavam envolvidos por um espiritualismo desde sempre. Como um povo profundamente espiritual, a história russa mostra que nem sempre os russos se contentaram com o seu cristianismo ortodoxo, indo buscar iluminação nas formas mais variadas e exóticas, sendo essa uma profunda característica russa. Mas um fator especialmente atuante que foi culminar na Revolução de 1917 como um fruto do messianismo russo, pode ter sido iniciado justamente pelo trabalho de lojas maçônicas, embora tenham sido proibidas depois no período soviético.

Alguns historiadores, como Dennis Stock, afirmam como sendo o imperador Pedro I “O Grande” o introdutor da maçonaria na Rússia, através do arquiteto Christopher Wren, restaurador de uma Catedral em Londres, que o iniciou, muito antes do nascimento da maçonaria contemporânea, em 24 de junho de 1717. Em 1762 o Czar Pedro III foi iniciado e incentivado por sua mulher, Catarina II, apoiando a maçonaria, a ponto de promulgar a primeira Grande Constituição do Rito Escocês Antigo e Aceito na Rússia.

Catarina II, como czarina, teria sido a responsável pelo processo de “ocidentalização” da Rússia, intencionado por uma percepção de que o país se encontrava demasiadamente atrasado em relação à Europa. E qual não foi a geração de intelectuais trazida pela czarina para a providencial modernização russa se não aquela elite intelectual alemã envolvida até o pescoço em orientalismos e investigações esotéricas? Em 1806, destacavam-se em São Petesburgo a Loja Estrela Polar e em Moscou a Loja Renovação, compostas por intelectuais, liberais, escritores, militares, cientistas, clérigos e burgueses. As ideias teosóficas circularam por aí como o sangue em um sistema circulatório de grande profusão, junto das correntes milenaristas e messiânicas que viam a Rússia como nova porta da esperança para o mundo.

Inicialmente, este delírio não se associava com o crescimento do ateísmo militante dos bolcheviques, mas alguns, segundo Lachman, chegaram a se associar ao partido vendo nele uma força providencial desse messianismo. Mas segundo a história oficial, inclusive interna da maçonaria, a Revolução Bolchevique de 1917 teria feito desaparecer vestígios dos maçons e templos maçônicos, sendo a Maçonaria “exterminada totalmente” durante a ditadura comunista. Mas essa é só a metade da história.

Jafe Arnolds, pesquisador eurasianista, ao contar as influências esotéricas do atual ideólogo russo Aleksandr Dugin, menciona o Círculo Yuzhinski. O nome do Círculo se refere ao príncipe georgiano Alexander Sumbatov, que utilizava o pseudônimo Yuzhin. Ele dominou o teatro russo na virada do século e era um maçom, iniciado na loja maçônica “Renascença”, do Grande Oriente da França, em Moscou. Essa loja teria se destacado por criar uma rede de outras lojas e círculos nos quais se organizavam encontros na primavera após a Revolução de 1905. Os círculos Renascença reuniam radicais políticos, ricos e nobres da época, unindo ideias políticas com interesse em estudos esotéricos em uma grande integração entre membros de lojas de toda a Europa. “Ao longo do período da turbulenta série de acontecimentos que culminou no desmoronamento do Império Russo, muitos dos membros deste meio encontraram-se no cume da política e da estrutura do Estado, muitas vezes precisamente graças às suas conexões maçônicas”, conta Arnold.

Mas o fato é que, ao contrário do que diz a história oficial, esses esotéricos místicos permaneceram no subsolo russo durante todo o período soviético. Um dos mais influentes membros do círculo e um dos mestres de Dugin foi o novelista e comancista Yuri Mamleev, que acreditava na exótica tese de que o cristianismo ortodoxo russo possuía uma identidade espiritual em comum com o hinduísmo, tendo dedicado parte da vida para aproximação das tradições religiosas russa e indiana como parte de um projeto de construir um “esoterismo eslavo”. Ele acreditava em uma perspectiva gnóstica do mundo no qual o aspecto físico do mundo é ilusório e maligno. Suas principais influências foram os teosofistas Rudolf Steiner e Helena Blavatsky. Em seu último trabalho, Eternal Russia, Mamleev enfatizava Steiner como um visionário da missão espiritual única da Rússia.

Pode-se, assim, inserir Blavatsky na gênese das duas principais correntes ideológicas mais perigosas do século passado. Por meio da sua versão alemã, a ariosofia de List e o wotanismo de Liebenfels, o nazismo buscava a ligação alemã com as raças primordiais descritas inicialmente por Blavatsky. Da mesma forma, o milenarismo espiritualista iniciado por ela abasteceu a eugenia espiritual russa e deu razões para que a revolução se espalhasse pelo mundo. Mas a filha do general russo-alemão foi ainda mais influente em correntes modernas ocidentais do que se imagina

Nazismo, aborto e ideologia de gênero

Blavatsky descreveu uma história humana por meio da decadência das raças a partir de raças primordiais, raiz iniciada no extremo norte do mundo, o reino da Hiperbórea, que significa além do bóreas (vento norte). Essas raças eram menos materiais e andróginas, que se reproduziam de forma assexuada. Passadas as primeiras eras, as raças foram se modificando à medida que migraram para terras diferentes, dando origem a dois principais ramos: os shamballa, que foram para o oriente e deram origem à elite espiritual da Índia e Tibete, dando origem aos ramos religiosos do budismo e hinduísmo (onde estariam presentes feições hiperbóreas preservadas), e os atlantes, que migraram para as terras ocidentais e marítimas, dando origem à terra da Atlântida. Esses últimos decaíram para uma raça espiritual de feiticeiros e bruxos. Esses dois destinos teriam dado origem aos caminhos da mão direita (iniciação) e da mão esquerda (contra-iniciação), dois ramos esotéricos que encontrariam representação no mundo atual. Se para os alemães ariosofistas a origem germânica estaria na Índia, isso comprovava a sua superioridade. Blavatsky dizia que uma nova evolução racial espiritual ocorreria e só poderia vir de um ramo ligado à melhor escola espiritual existente. Essa crença foi aplicada pelos nazistas na esperança que a raça ariana surgisse na Alemanha, devido sua preservação histórica dos legados romanos e semíticos (inferiores).

Mas outros ramos das mesmas crenças se desenvolveram durante aquele período, dando origem a outras escolas ideológicas e programáticas. A antropóloga Margaret Sanger, por exemplo, se tornou uma frequente palestrante e formadora da Ku Klux Klan, nos Estados Unidos, devido à expectativa, gerada pela leitura da teosofia, de que a nova raça só poderia surgir nos EUA. O trabalho de Sanger inaugura uma linha de ação ocidental que se baseou numa resposta à teosofista Alice Bailey, que defendia a importância de uma elite espiritual “ajudar” o mundo a evoluir por meio de suas ações, sejam a eugenia biológica, o aborto de seres inferiores (que Sanger via como os pobres, negros e deficientes), como na opção pela caridade para melhorar as sociedades subdesenvolvidas, expressa no papel das fundações filantrópicas vindas dos EUA. As convicções de Henry Ford de um mundo convertido numa linha de produção não foram exatamente interrompidas quando ele, durante a Segunda Guerra, investiu o seu dinheiro em um jornal abertamente nazista. Era parte do mesmo sonho. A eugenia globalista dava ali os seus primeiros passos e isso explica a fixação da Fundação Ford, nos dias de hoje, pelo tema do racismo, uma atuação que até a década de 80 foi criticada pela esquerda devido à “importação de um conceito de raça imperialista”. Mas a crítica desapareceu depois que a esquerda passou a receber o dinheiro da fundação.

Sanger acreditava no empoderamento feminino, e com base nisso foi a fundadora da Planned Parenthood. Pouca gente se recorda, porém, de que a sua convicção vinha da teosofia. A ligação da raça atual com a próxima deveria passar pela eliminação dos papéis de gênero, um caminho natural, mas intencional, para a androginia primordial das raças superiores. Em um relato escrito após a sua viagem a Adyar, na Índia, para uma convenção teosófica da qual ela acabou não sendo bem recebida devido ao seu racismo “à frente do seu tempo”, Sanger lembrou-se das palavras de Anne Besant, então presidente da Sociedade Teosófica, quando disse que havia abandonado os textos de controle populacional para concentrar-se numa visão “mais aprofundada”.

“Annie Besant, assim que se tornou uma teosofista, abandonou seus livros sobre população. As almas não reencarnam a menos que os corpos dos pais, seus veículos para o nascimento, sejam perfeitos. Se elas quiserem cumprir suas missões, elas devem esperar pela pureza em suas vestimentas físicas”[1].

A ideia de um racismo biológico sempre esteve associada a uma espécie de eugenia espiritual, conclusão lógica do trabalho de Blavatsky que foi sendo enriquecido pelas vontades de alemães, russos e, mais tarde, norte-americanos. Atualmente, o racismo meramente biológico, ou até físico, de cor, é um tipo de espantalho curinga, usado como analogia para qualquer tipo de conduta ou opinião que possa ser levado à imagem de um preconceito. O verdadeiro racismo que passa desapercebido ainda hoje está na base da eugenia espiritual que une o velho nazismo ao comunismo soviético, o projeto russo, e o transumanismo globalista ocidental expresso na atuação filantrópica cientificista de bilionários como Bill Gates. São as mesmas teses esotéricas tão disseminadas no ocidente, tanto na Alemanha quanto na Rússia, que unem todos os projetos de poder através da crença em uma nova era de superioridade, pela qual todo esforço aparece imediatamente justificado.

Essa crença aparece até mesmo de forma mais sutil nas expectativas sociais evolucionistas de mentes como George Soros, cuja base política é encontrada na dicotomia criada por Karl Popper, extraída também ela de um erro na sua interpretação da República de Platão[2]. Como um verdadeiro idiota útil das utopias mais poderosas em ação no ocidente (e contra o ocidente), Soros encarnou o arquétipo do fantoche poderoso[3] que se vê como condutor da história. Essa pretensão, tão comum às elites financeiras, ganhou na cosmovisão moderna um poderoso incentivo por meio das ideologias progressistas resultantes das utopias esotéricas e messiânicas presentes na grande maioria das obras literárias e políticas dos últimos séculos.

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.


[1] https://beezone.com/wide-stacks-many-topics/margaretsangermaharshi.html

[2] https://www.youtube.com/watch?v=_i9edeV2Ua4

[3] Para além de todas as imensas aspirações dos gênios do mal, diante dos quais nós muitas vezes acreditamos estar diante de monstros onipotentes, vemos a fragilidade do próprio poder: o dia em que Olavo de Carvalho entrevistou George Soros.

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