Apaixonamento e Misticismo em José Ortega y Gasset

Gian Lorenzo Bernini, O Êxtase de Santa Teresa, mármore e bronze, 1647-1652, Igreja de Santa Maria della Victoria, Roma. Reprodução: proximarte.

Este artigo reproduz trechos da obra “Estudos sobre o Amor” do filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), e uma mais difundidas do autor. Os ensaios selecionados analisam o apaixonamento humano enquanto expressão consciente direcionada ao objeto amado. A consciência apaixonada, concentrada na amada e desatenta ao mundo periférico, é definida por Ortega como maníaca (no sentido de Theia manía dado por Platão) e guarda relações muito próximas com o êxtase espiritual místico, definido como um esvaziamento da alma. Uma alma vazia mas ao mesmo tempo plena do Ser divino, uma “noite escura da alma”, segundo São João da Cruz.

José Ortega y Gasset

V - Atenção e “Mania

O “apaixonamento” é, em linhas gerais, um fenômeno da atenção.

Toda vez que contemplamos a vida de nossa consciência, veremos que o campo desta se encontra ocupado por uma pluralidade de objetos exteriores e interiores. Estes objetos, que por sua vez ocupam espaço em nossa mente, não estão misturados em um emaranhado confuso. Sempre há neles um mínimo de ordem, uma hierarquia. Em consequência, sempre encontraremos algo deles destacado dentre os demais, preferido, especialmente iluminado, como se nosso foco mental o isolasse do resto, e nossa preocupação desaparecesse no seu brilho. Faz parte da nossa consciência dar atenção a algo. Mas não é possível dar atenção a algo sem dar desatenção a outras coisas que, por ela, ficam sob uma forma de presença secundária, como uma música de fundo.

Uma vez que o número de objetos que compõem o mundo é muito grande e o campo de nossa consciência é muito limitado, existe neles uma espécie de luta para conquistar nossa atenção. Propriamente, nossa vida de alma e espírito é somente aquela verificada nessa zona de máxima iluminação. O resto – a zona de desatenção consciente, ou ainda, o subconsciente, etc. – é somente vida em potência, preparação, arsenal ou reserva. Pode-se imaginar a consciência atenta como o espaço próprio de nossa personalidade. Tanto faz, portanto, dizer que damos atenção a uma coisa, como dizer que essa coisa desaloja um certo espaço em nossa personalidade.

Em situações normais, a coisa a que se dá atenção ocupa por uns instantes este centro privilegiado, do qual é expulsa logo depois para deixar outra no lugar. Em resumo, a atenção se desloca de um objeto a outro, detendo-se mais ou menos neles, segundo sua importância vital. Imagine-se que em certo dia nossa atenção fique paralisada, fixa em um objeto. O resto do mundo ficaria rebaixado, distante, como inexistente, e, faltando toda possível comparação, o objeto anomalamente alvo de atenção adquiriria para nós proporções enormes. De maneira que, a rigor, ocuparia todo o âmbito de nossa mente e seria para nós, só ele, equivalente a todo esse mundo que temos deixado fora à mercê de nossa radical desatenção. Ocorre, então, o mesmo quando aproximamos nossa mão aos olhos: mesmo sendo um corpo tão pequeno, é o bastante para tapar o resto da paisagem e cobrir nosso campo visual por inteiro. O objeto que recebe atenção tem para nós ipso facto mais realidade, uma existência mais vigorosa que a coisa que não recebe atenção, corpo morto e quase fantasma à espera na periferia de nossa mente. Ao ter mais realidade, claramente carrega este objeto maior estima, mais valioso e mais importante se faz, e compensa o resto obscurecido do universo.

Quando a atenção se fixa por maior tempo ou com maior frequência do que o normal em um objeto, falamos de “mania”. O maníaco é um homem com um regime atencional anômalo. Quase todos os grandes homens tinham sido maníacos, só que as consequências de sua mania, de sua “ideia fixa”, nos mostram úteis ou notáveis. Quando perguntavam a Newton como conseguiu descobrir seu sistema mecânico do universo, respondeu: Nocte dieque incubando (“pensando nele dia e noite”). É uma declaração de peso. Na verdade, nada nos define tanto como o nosso regime atencional. Cada homem se caracteriza de maneira diversa. Assim, para um homem habituado a meditar, insistindo sobre cada tema a fim de extrair o ouro da rocha, é motivo de tontura a rapidez com que a atenção do homem do mundo se move de objeto em objeto. Respectivamente, ao homem do mundo lhe cansa e angustia a lentidão com que avança a atenção do pensador, que vai como uma rede de pescar rasgando a entranha áspera do abismo. Logo, há diferentes preferências de atenção que constituem a base mesma do caráter. Há quem, se na conversação surge um dado econômico, fica absorvido, como se houvesse caído por uma escotilha. Em outro irá a atenção espontaneamente, por inclinação própria, à arte ou a assuntos sexuais. Caberia aceitar esta fórmula: Diga-me a que dás atenção, e te direi quem és.

Pois bem: eu acredito que o “apaixonamento” é um fenômeno da atenção, um estado anômalo dela que é produzido no homem normal.

O dado inicial do apaixonamento já mostra isso. Na sociedade se encontram frente a frente muitas mulheres e muitos homens. Em estado de indiferença, a atenção de cada homem – como de cada mulher – se desloca de um a outro sobre os representantes do sexo contrário. Razões de simpatia antiga, de maior proximidade, etc., farão com que esta atenção da mulher se detenha um pouco mais sobre este homem do que sobre outro; porém a desproporção entre o atender a um e desatender os outros não é grande. Melhor dizendo – e salvas estas pequenas diferenças -, todos os homens que a mulher conhece estão a igual distância atencional dela, em fila reta. Mas um dia esta divisão igualitária da atenção cessa. A atenção da mulher está propensa a se deter-se por si mesma a um desses homens, e logo se torna um esforço desprender dele seu pensamento, mobilizar até outros ou outras coisas a preocupação. A fila retilínea se rompeu: um dos homens fica destacado, a menor distância atencional daquela mulher.

O “apaixonamento”, em sua iniciação, nada mais é do que isso: atenção anomalamente detida em outra pessoa. Se esta sabe aproveitar sua situação privilegiada e nutre engenhosamente aquela atenção, o restante se produzirá com irremediável mecanismo. Cada dia se encontrará mais à frente dos outros na fila, dos indiferentes; cada dia desalojará maior espaço na alma atenta. Esta se irá sentindo incapaz de desatender àquele privilegiado. Os demais seres e coisas serão pouco a pouco desalojados da consciência. Onde quer que a “apaixonado” esteja, qualquer que seja a sua aparente ocupação, sua atenção gravitará pelo próprio peso àquele homem. E, respectivamente, custará a ela uma grande violência arrancá-la um momento desta posição e orientá-la às urgências da vida. Santo Agostinho viu sagazmente este ponderar espontâneo a um objeto que é característico do amor. Amor meus, pondus meum: illo feror, quocumque feror  (“meu amor é meu peso: por ele vou aonde quer que eu vá”).

Não se trata, então, de um enriquecimento mental. Muito pelo contrário. Há uma progressiva eliminação das coisas que antes nos ocupavam. A consciência se esgota e contém só um objeto. A atenção fica paralítica: não avança de uma coisa a outra. Está fixa, rígida, presa a um só ser. Theia manía (“manía divina”), dizia Platão. (Já veremos de onde vem esta “divina”, tão surpreendente e excessiva).

No entanto, o apaixonado tem a impressão de que sua vida de consciência é mais rica. Ao reduzir-se, seu mundo se concentra mais. Todas as suas forças psíquicas convergem para atuar em um único ponto, e isso dá à sua existência um falso aspecto de superlativa intensidade.

Ao mesmo tempo, esse exclusivismo da atenção dota o objeto favorecido de qualidades portentosas. Não que se mascarem nele perfeições inexistentes (já mostrei que isso pode ocorrer; porém não é essencial nem forçoso, como erroneamente supõe Stendhal). De tanto dar atenção a um objeto, de fixar-se nele, adquire este para a consciência uma força de realidade incomparável. Existe a toda hora para nós; está sempre ali, diante de nós, mais real do que qualquer outra coisa. As demais coisas temos que buscar, dirigindo a elas penosamente nossa atenção, que por si está inclinada ao amado.

Já aqui nos deparamos com uma grande semelhança entre o apaixonamento e o entusiasmo místico. Costuma-se falar da “presença de Deus”. Não é uma frase. Por trás dela há um fenômeno autêntico. De tanto orar, meditar, dirigir-se a Deus, tal solidez objetiva que chega a alcançar o místico, que lhe permite não desaparecer nunca de seu campo mental. Encontra-se sempre aí, assim como a atenção não o larga. Todo princípio de movimento o faz esbarrar com Deus, ou seja, recair na ideia Dele. Não é, pois, nada peculiar à ordem religiosa. Não há nada que não possa conseguir esta presença permanente em que o místico usufrui Deus. O sábio que vive vários anos pensando em um problema, ou o romancista que arrasta constantemente a preocupação por seu personagem imaginário, conhecem o mesmo fenômeno. Assim, Balzac, quando corta uma conversa de negócios dizendo: “Bem, voltemos à realidade! Falemos de César Birotteau.” Também para o apaixonado, a amada possui uma presença em todos os lugares e constante. O mundo inteiro está como embebido dela. A rigor, o que se passa é que o mundo não existe para o amante. A amada o desalojou e substituiu. Por isso, diz o apaixonado em uma canção irlandesa: “Amada, tu és meu pedaço do mundo!”

VII

A dona de casa sabe que sua criada se apaixonou quando começa a vê-la distraída. A pobre mulher não tem a atenção livre para despertar-se para as coisas que a rodeiam. Vive abobalhada, ensimesmada, contemplando em seu próprio interior a imagem do amado, sempre presente. Esta absorção em seu interior dá ao apaixonado uma aparência de sonâmbulo, de lunático, de “enfeitiçado”. E, como resultado, é o apaixonamento um enfeitiçamento. A poção mágica de Tristão tem simbolizado sempre com sugestiva plasticidade o processo psicológico do “amor”

Nas expressões de linguagem usuais que condensam saberes milenares existem fontes magníficas de psicologia extremamente certeira e ainda não explorada. Aquilo que se apaixona é sempre algum “feitiço”. E este nome da técnica mágica, dado ao objeto do amor, nos indica que o pensamento anônimo, criador do idioma, advertiu o caráter extranormal e irremissível em que cai o apaixonado.

O verso mais antigo é a fórmula mágica que se chamou cantus e carmen. O ato e o efeito mágico da fórmula era a incantatio. Daí encanto (ou feitiço), e em francês, charme, de carmem.

Porém, quaisquer que fossem suas relações com a magia, existe, na minha opinião, uma semelhança mais profunda daquilo que se tem reparado até agora entre o apaixonamento e o misticismo. Devia ter colocado como evidência deste radical parentesco o fato de que sempre, com impressionante coincidência, o místico adote para se expressar vocábulos e imagens do erotismo. Todos os que se ocuparam deste fenômeno religioso notaram isso, mas acharam suficiente declarar que se tratava de metáforas e nada mais.

Acontece na metáfora aquilo que acontece nos gostos. Há pessoas que quando têm qualificado algo de metáfora ou de gosto acreditam tê-lo resolvido e não ser assunto de maior investigação. Como se a metáfora e o gosto não fossem realidades da mesma ordem que as demais, dotadas de não menor consistência e obedientes a causas e a leis tão definitivas como as que governam os movimentos astrais!

Porém, se todos os que têm estudado o misticismo puderam notar a frequência de seu vocabulário erótico, não têm advertido o dado complementar que dá a este seu verdadeiro peso, que é aquele em que, respectivamente, o apaixonado é propenso ao uso de expressões religiosas. Para Platão é o amor uma mania “divina”, e todo apaixonado chama de divina à amada, se sente ao seu lado “como no céu”, etc. Este curioso resgate léxico existente entre amor e misticismo faz suspeitar alguma raiz comum.

E, em consequência, o processo místico é como um mecanismo psicológico análogo ao apaixonamento. Se parece tanto, que coincide com ele até no detalhe de ser fastidiosamente monótono. Como todo aquele que se apaixona se apaixona do mesmo, os místicos de todos os tempos e lugares têm dado os mesmos passos e têm dito, a rigor, as mesmas coisas.

Tome-se qualquer livro místico – da Índia ou de China, alexandrino ou árabe, teutônico ou espanhol. Sempre se trata de um guia transcendente, de um itinerário da mente até Deus. E as estações e veículos são sempre os mesmos, salvo diferenças externas e acidentais.

Compreendo perfeitamente, e aliás compartilho, a falta de simpatia que têm mostrado sempre as igrejas com os místicos, como se temessem que as aventuras extáticas trouxessem desprestígio sobre a religião. O extático é, mais ou menos, um frenético. Lhe falta medida e claridade mental. Dá à relação com Deus um caráter orgiástico que repugna à grave serenidade do verdadeiro sacerdote. O problema é que, com rara coincidência, o mandarim confucionista experimenta um desdém do místico taoísta, parecido com o que o teólogo católico sente a uma monja iluminada. Os partidários do tumulto em toda ordem preferirão sempre a anarquia e a embriaguez dos místicos à clara e ordenada inteligência dos sacerdotes, ou seja, das igrejas. Sinto não poder acompanhá-los tampouco nesta preferência. Me impede isso por questão de veracidade. E é por conta desta, que qualquer teologia me parece transmitir a nós muito mais quantidade de Deus, mais saberes e noções sobre a divindade, que todos os êxtasis juntos de todos os místicos juntos. Porque, ao invés de nos aproximarmos ceticamente ao extático, devemos tomá-lo por sua palavra, receber o que nos traz de suas imersões transcendentes e ver então se isso que nos apresenta vale a pena. E a verdade é que, depois de acompanhá-lo em sua viagem sublime, o que este consegue nos comunicar é coisa de pouca monta. Eu acredito que a alma europeia se encontra próxima a uma nova experiência de Deus, a novas descobertas sobre esta realidade, a mais importante de todas. Mas duvido muito que o enriquecimento de nossas ideias sobre o divino venha pelos caminhos subterrâneos da mística e não pelas vias luminosas do pensamento discursivo. Teologia e não êxtasis.

Mas voltemos ao nosso tema.

O misticismo é também um fenômeno da atenção.

A primeira coisa que nos propõe a técnica mística é que fixemos nossa atenção a algo. Em quê? A técnica extática mais rigorosa, sábia e ilustre, que é o Yoga, revela ingenuamente o caráter mecânico do em quê se concentrar, porque a essa pergunta nos responde: em qualquer coisa. Não é, pois, o objeto que qualifica e inspira o processo, senão que serve só de pretexto para que a mente entre em uma situação anormal. Em efeito, há que dar atenção a algo simplesmente como meio para dar desatenção a todo o resto do mundo. A via mística começa por esvaziar de nossa consciência a pluralidade de objetos que nela se costuma ter e que permite o normal movimento da atenção. Assim, em São João da Cruz, o ponto de partida para todo avanço ulterior é a “casa sossegada”. Embotar os apetites e as curiosidades: “um destacamento grande de tudo” – diz Santa Teresa -, “um arranque da alma”; isto é, cortar as raízes e ligamentos de nossos interesses mundanos, plurais, a fim de poder ficar “embebidos” (Santa Teresa) é uma única coisa. Igualmente porá o hindu como condição à entrada do misticismo: nanatvam na pasyati – não ver multidão, diversidade.

Esta operação de espantar as coisas no vaivém de nossa atenção somente se consegue por fixação pura da mente. Na Índia se chamou kasina este exercício, que pode valer-se de qualquer coisa. Por exemplo: o meditador fabrica um disco de barro, se senta perto dele e fixa nele o olhar. Ou então desde uma altura vê correr um riacho ou contempla um lago onde a luz se reflete.  Ou então acende fogo, põe ante ele uma superfície de onde abre um buraco, e vê a luz através dele, etc. Se busca o mesmo efeito de máquina furadeira a que antes me referi, graças ao qual os apaixonados “perdem o juízo” um do outro.

Não há profusão mística sem prévio vazio da mente. “Por isso – diz São João da Cruz – mandava Deus que o altar de onde se haviam de fazer os sacrifícios estivesse por dentro vazio.”, “para que entenda a alma quão vazia Deus a quer de todas as coisas.”. E um místico tudesco, mais ainda energicamente, expressa esse distanciamento; da atenção para tudo o que não é uma única coisa – Deus -, dizendo: “eu desnasci”. O próprio São João diz com beleza: “Eu não cuido de gado”; isto é, não conservo preocupação nenhuma.

E agora vem o mais surpreendente: uma vez que a mente foi esvaziada de todas as coisas, o místico nos assegura que tem a Deus adiante, que se encontra cheio de Deus. Ou seja, que Deus consiste justamente nesse vazio. Por isso fala o mestre Eckhart do “deserto silencioso de Deus”, e São João da “noite escura da alma”; escura e, no entanto, cheia de luz; tão cheia que, de haver puramente só luz, a luz não colide com nada, e é escuridão. Esta é a propriedade do espírito purificado e aniquilado de todas as particulares afetações e pensamentos, que este não gostar de nada nem entender nada em particular, morando em sua vazia obscuridade e trevas, o abraça por inteiro com grande disposição para que se verifique aquilo dito por São Paulo: Nihil habentes et omnia possidentes (“não têm nada e possuem tudo”). São João denomina em outro lugar este vazio completo, esta obscuridade luminosa, com a fórmula mais agradável: é – diz – a solidão sonora”.

Trechos de ensaios traduzidos por Tiago Barreira e publicados na obra Estudios sobre el amor (Editorial EDAF– 22ed. 2023)

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