A Geração Nós da Galícia – Tiago Barreira

Capa da Revista Nós, publicada entre 1920 e 1936, com conteúdo literário, linguístico, artístico, etnográfico, filosófico e de pensamento político. A estética da sua capa, elaborada por Afonso Castelao, foi um marco renovador da história cultural galega. Reprodução: gCiencia

No início do século XX, ao término da Primeira Guerra Mundial, diversos movimentos nacionalistas se levantariam no mundo para reivindicar a soberania de populações minoritárias. Este foi o caso do nacionalismo galego no noroeste da Espanha. O movimento galeguista emergiu a partir de uma intensa atividade literária, filosófica e estética de intelectuais, a denominada Geração Nós. Três ideias-chave definiriam este movimento: i) diálogo com o universalismo europeísta; ii) aproximação com o pensamento lusitano e dos países de língua portuguesa; iii) valorização de um espiritualismo de base esotérica.

Tiago Barreira

No início do século XX, ao término da Primeira Guerra Mundial, diversos movimentos nacionalistas, inspirados nos ideais democráticos de Wilson, se levantariam no mundo para reivindicar a soberania de populações minoritárias dos antigos impérios em guerra que desmoronavam. Seria este o caso das nações da Europa Central, surgidas dos escombros do Império Austro Húngaro, e das nações árabes, a partir do Império Turco Otomano. É o caso também a Irlanda, a partir do Império Britânico, com o surgimento do partido nacionalista Sinn Féin, que levaria à sua independência em 1922. Este também seria o contexto propício para o surgimento de ideologias nacionalistas de populações minoritárias na Península Ibérica, entre as quais o nacionalismo da Galícia, região situada no noroeste da Espanha.

O nacionalismo galego é inspirado no Sinn Féin irlandês, e possui em comum com este a reivindicação de raízes étnicas celtas. Também possuía como maior característica a reivindicação da língua galega e uma maior aproximação cultural com os países de língua portuguesa, Brasil e Portugal.

O movimento galeguista emergiu na Galícia na década de 20 a partir de uma intensa atividade intelectual de escritores, filósofos e cientistas sociais, em um movimento cultural liderado pela denominada Geração Nós. Entre os principais intelectuais da Geração Nós se destacaram Vicente Risco, Castelao e Otero Pedrayo. O movimento encontraria sua principal expressão intelectual na Revista Nós, editada por Vicente Risco e publicada entre os anos 20 e 30.

O movimento constituiu uma importante fonte de revitalização da literatura galega, convertendo o galego de um dialeto rural a idioma de alta cultura debatido em círculos literários e científicos, através da criação do Seminário de Estudos Galegos, criada em 1923.

O movimento foi também marcado por sua diversidade política, abrangendo desde católicos conservadores a liberais republicanos. Destaca-se por exemplo o caso do espiritualismo de Vicente Risco, introduzindo correntes orientalistas e esotéricas perenialistas no pensamento galego. O movimento seria bruscamente interrompido em 1936 pela Guerra Civil Espanhola, com a violenta repressão posterior pelo franquismo e o exílio de seus membros.

Intelectuais da Geração Nós, em banquete na Academia Galega de Letras (1929): Otero Pedrayo e Vicente Risco como terceiro e quarto, da esquerda a direita, na primeira fileira. Reprodução: Arquivo Dixital de Galicia

O contexto galego

A Galicia é uma região que guarda uma importância histórica relevante para a Península Ibérica e Espanha. Destino final do caminho de Santiago, uma das mais antigas rotas de integração econômica e cultural da Europa, a região destoa do restante da Espanha pela sua cultura marcantemente cosmopolita e universalista, trazida pelo influxo de peregrinos de diversas partes da Europa que ali escolhiam permanecer. Tanto que não é exagero que alguns considerem que a identidade de Europa teria nascido no caminho de Santiago, durante a Idade Média.

Ao final da Idade Média a partir dos séculos XV e XVI, contudo, a situação mudaria, com a região se tornando cada vez mais periférica culturalmente e politicamente no quadro geral europeu. A situação de região periférica da Galícia, situada à margem dos centros de decisão das elites de Madrid, se agravaria ao longo dos séculos da modernidade com a centralização do estado espanhol. Inicialmente um reino autônomo incorporado à coroa de Leão e Castela, e regido por um conselho regional (a Xunta) e leis próprias, a Galícia veria sua autonomia crescentemente subjugada, tornando-se terra abandonada pelas autoridades centrais, de população e economia esvaziada com contínuas migrações para a América.

Era este o contexto ideal para, a partir do século XIX, surgir um movimento regional que resgatasse e reivindicasse os valores da terra, a língua galega, o folclore e as tradições passadas de bases célticas, denominado de Rexurdimento. Inspirado no romantismo, este movimento seria liderado por figuras como o historiador Manuel Murgía, o poeta Eduardo Pondal e a poeta Rosalía de Castro. Em particular, a poeta Rosalía se notabilizaria pela publicação da primeira obra literária em língua galega, as poesias líricas dos Cantares Gallegos. Murgía e Pondal introduziriam o celtismo cultural e o resgate de mitos históricos fundadores célticos, o primeiro tendo sido autor da obra História da Galicia.

Os intelectuais galeguistas da Geração Nós do início do século XX dariam continuidade a esse movimento de renovação cultural regionalista. Três ideias-chave definiriam este movimento cultural: i) diálogo com o universalismo europeísta; ii) aproximação com o pensamento lusitano e dos países de língua portuguesa; iii) valorização do espiritualismo de base esotérica.

O universalismo europeísta

Através do resgate do passado medieval cosmopolitista, e em contraponto à cultura casticista castelhana de Madrid – que buscava exaltar a identidade espanhola com as toradas, a cultura cigana e a música andaluz flamenca – os intelectuais galegos reivindicarão precisamente uma tradição cultural que transcendia a Espanha e se situava em diálogo permanente com o europeísmo universalista. Recorrerão a importantes fontes intelectuais de fora da Espanha, como a literatura francesa de século XIX, o decadentismo fin de siècle, e também nas vanguardas estéticas europeias. Da filosofia, abraçaram o pensamento de Bergson e de Nietzsche. Foi a época de viagens de escritores galegos à Europa, em busca de novas aportações intelectuais e estéticas, como a viagem de Castelao à França, Bélgica e Alemanha em busca de novas tendências artísticas, relatada em Diario 1921, e de Vicente Risco à Alemanha, no Mitteleuropa.

A constante referência ao universal humano como norte cultural se fazia presente na filosofia, estética e crítica literária da Geração Nós, enquanto moldura teórica que buscava redefinir o papel da cultura regional galega dentro do quadro geral dos desafios e crises enfrentadas pela modernidade europeia. Uma crise universal do homem muito bem descrita por Risco em Tinieblas del Occidente.

O projeto da Geração Nós, mais do que meramente exaltar a singularidade identitária das tradições galegas, estava em também aportar um projeto humanístico universal. Um projeto ao qual a identidade galega, a partir da reivindicação de suas raízes autênticas oriundas das tradições agrárias, célticas e sentimentais românticas, cumpririam um papel revitalizador à cultura europeia ocidental, em crise e decadência desde o século XIX com a modernidade iluminista e a racionalidade.

O lusitanismo

Paralelamente ao europeísmo universalista, os laços com a cultura portuguesa também seriam fortalecidos. A proximidade cultural da Galícia com Portugal implicaria em aportações filosóficas e estéticas importantes do país vizinho. A filosofia saudosista de Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão e Leonardo Coimbra, com uma metafísica existencial fundada no ideal da saudade, seria o conceito chave que uniria Galícia e Portugal em uma comunidade espiritual de sentimentos e valores. A Revista Nós constituiria um importante órgão cultural que reuniria ensaios e publicações de autores do mundo português, incluindo brasileiros. Deve-se ressaltar por fim os importantes laços de amizade que uniram intelectuais galegos e brasileiros, como as ligações entre Vicente Risco e o antropólogo Luís da Câmara Cascudo.[1]

O espiritualismo

Além da abertura ao universal e o lusitanismo, o espiritualismo é um outro grande traço identificador da cultura galega, herdado do seu passado rico de narrativas mitológicas pagãs célticas e da forte presença histórica católica desde a Idade Média, através da presença maciça de ordens espirituais monásticas e de cavalaria instaladas ao longo do Caminho, como a Ordem de Santiago. A fascinação espiritual pelo oculto e pelo esotérico se faz ali muito presente, sendo local de diversas lendas históricas associadas às ordens iniciáticas instaladas na região, como o mito do Graal. É também uma região de geografia fortemente sacralizada, com localidades determinadas de rios e bosques apresentando significados míticos segundo populações locais, que remontam a tradições célticas pré-cristãs.

Todo este imaginário espiritual galego seria também reivindicado pela Geração Nós no século XX. É o que se vê nas obras de Vicente Risco, ao dialogar a tradição esotérica galega com o pensamento perenialista de René Guénon e a teosofia de Blavatsky, bem como com a tradição filosófica hindu e budista, muito popularizados na Europa no início do século XX através de escritos literários do Prêmio Nobel indiano Rabindranath Tagore.

A abertura à horizontalidade humana universal e à verticalidade do espiritual e transcendente humano, esta é a grande marca distinta que a Geração Nós trouxe e contribuiu à cultura galega, até então periférica no quadro geral europeu.


[1] Ver em: “Nombramiento en Brasil para Don Vicente Risco” La Región, 11 de Outubro de 1948. Link de acesso <Acesso em 3 de Maio de 2024>

Assine grátis o Newsletter da Revista Ágora Perene e receba notificações dos novos ensaios

Não fazemos spam! Leia nossa política de privacidade para mais informações.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *