Manuel Bandeira: Um Lírico no Auge do Modernismo – Bernardo Souto

O poeta Manuel Bandeira (1886-1968). Imagem: Acervo Pernambuco

A valorização do novo na modernidade atingiu enormes proporções nas primeiras décadas do século XX, com a eclosão das vanguardas europeias e do modernismo. Animado por uma única obsessão – a busca da originalidade e da novidade enquanto tais –, o modernismo pendeu para a simples repetição vazia do gesto da inovação pela inovação. A ruptura com a tradição torna-se ela própria tradição, ‘tradição do novo’. Foi precisamente a essa tradição do novo pelo novo que o poeta brasileiro Manuel Bandeira se opôs categoricamente.

Bernardo Souto

A obra poética de Manuel Bandeira possui uma incrível variedade estético-estilística e temática. É possível que, dentro da poesia brasileira, nenhum outro autor tenha sido tão múltiplo, tão eclético. O grande escritor pernambucano cultivou do soneto ao verso livre, do haicai ao rondó, da balada ao rondel. Em termos de tonalidade, os poemas também variam bastante: o autor nos apresenta desde o humor amargo do poema “Pneumotórax” – no qual encontramos um dos versos mais belos da Língua Portuguesa: “A vida inteira que poderia ter sido e que não foi” – até a busca do lirismo puro, exemplarmente representado em poemas como “Ubiquidade” e “Velha chácara”. É precisamente acerca desse lirismo puro que discorreremos a seguir.

Antes de mais nada, é preciso dizer que a relação de Manuel Bandeira com o Grupo Paulista foi ambivalente. Sua adesão apenas parcial ao movimento de 1922 é emblemática, pois nos ajuda a compreender sua concepção a respeito do fenômeno literário. Se, por um lado, Bandeira foi beneficiado por algumas escassas conquistas estéticas do Grupo de 22, como o humor, por outro, sua formação clássica dava-lhe a convicção de que “o novo na arte não tem que ser sempre um escândalo ou uma ruptura; pode ser – e na maioria das vezes é – o resultado de sutil exploração e aprofundamento temático e estilístico” (GULLAR, 2006, p. 13). Para o escritor pernambucano, assim como para Fernando Pessoa, “a novidade, em si mesma, nada significa, se não houver uma relação com o que a precedeu. Nem, propriamente, há novidade sem que haja essa relação” (PESSOA, 1966, p. 391).

Essa valorização do novo na modernidade, que vem ganhando força desde o advento do Romantismo, atingiu enormes proporções nas primeiras décadas do século XX, com a eclosão das chamadas vanguardas europeias, chegando, posteriormente, ao paroxismo com os experimentos literários pós-modernos. A esse respeito, o filósofo francês Luc Ferry nos fornece um depoimento bastante lúcido:

“Animado por uma única obsessão – a busca da originalidade e da novidade enquanto tais –, o modernismo pendeu para seu contrário, a simples repetição vazia e melancólica do gesto da inovação pela inovação. A ruptura com a tradição torna-se ela própria tradição, ‘tradição do novo’, por certo, para retomar a expressão de Harold Rosenberg, mas ainda assim tradição e, segundo Octavio Paz, uma tradição hoje vazia de sentido e de conteúdo.” (1994, p. 272)

Foi precisamente a essa tradição do novo pelo novo (e não ao movimento modernista propriamente dito) que Bandeira se opôs categoricamente. Em entrevista a Arnaldo Saraiva, o autor de Estrela da Vida Inteira emite sua opinião a esse respeito: “eu desconfio da preocupação (…) de inventar em poesia. Quem inventa é o gênio. E inventa, não porque queira, mas porque acontece. Como disse Picasso: ‘eu não procuro, eu acho’” (BANDEIRA, 2000, p. 12). Daí a pertinência do comentário de Vinicius de Moraes: em Bandeira não há “nenhuma preocupação de originalidade; [visto que ele já] é essencialmente original” (1936, p. 234). O poeta pernambucano não faz esforço para ser moderno. O crítico Ivan Junqueira, em seu excelente Testamento de Pasárgada, assim situa Manuel Bandeira nos quadros da moderna poesia do Brasil:

“Entenda-se que Bandeira não pode ser considerado modernista no mesmo sentido em que o foram Mário de Andrade e Oswald de Andrade. O Modernismo, como sabiamente sublinha Emanuel de Moraes, ‘perdeu, talvez na maioria dos casos, o sentido lírico da poesia’, desenvolvendo-se quase sempre sob a égide da balbúrdia contestatória e de um verdadeiro corpo a corpo estético-doutrinário, o que jamais poderia sensibilizar a poesia essencialmente lírica de Bandeira.” (2003, p. 106)

Por poesia essencialmente lírica, entende-se a poesia em que o escritor “abandona-se – literalmente (Stimmung) – à inspiração. Ele inspira ao mesmo tempo clima e linguagem. Não tem condições de dirigir-se a um nem a outra. Seu poetar é involuntário. Os lábios deixam escapar o ‘que está na ponta da língua’” (STAIGER, 1975, p. 28). “O poeta lírico é solitário, não se interessa pelo público; cria para si mesmo” (idem, p. 48), porque na lírica essencial “interno e externo, subjetivo e objetivo não estão absolutamente diversificados” (idem, p. 58), visto que a disposição anímica (Stimmung) envolve tudo. Em suma: “o sujeito mergulha em si mesmo e perde a oposição para com o mundo exterior” (idem, p. 58). Exemplo típico na poesia de Bandeira dessa simbiose com o cosmos, tão característica da lírica (enquanto poésie pure), é o poema Alumbramento. Este poema, segundo Davi Arrigucci Júnior, pode ser interpretado como “a visão de um encontro amoroso, a partir da chispa de um relance erótico, ampliando-se numa fusão cósmica através do corpo da amada (…); uma visão mística de comunhão universal, projeção do desejo de unir-se ao todo (…)” (idem, p. 161). Esse desejo de unir-se ao todo, aspiração máxima da poésie pure, constitui-se numa espécie de leitmotiv bandeiriano, cujo epicentro é a peça “Ubiquidade”:

Ubiquidade


Estás em tudo que penso,
Estás em quanto imagino:
Estás no horizonte imenso,
Estás no grão pequenino.
Estás na ovelha que pasce,
Estás no rio que corre:
Estás em tudo que nasce,
Estás em tudo que morre.
Em tudo estás, nem repousas,
O ser tão mesmo e diverso!
(Eras no início das cousas,
Serás no fim do universo.)
Estás na alma e nos sentidos.
Estás no espírito, estás
Na letra, e, os tempos cumpridos,
No céu, no céu estarás.
(BANDEIRA, op. cit., Lira dos Cinquent’anos, p. 183)

Mesmo em poemas como “Meninos carvoeiros” e “O bicho”, em que a denúncia social é flagrante, podemos observar uma atitude de total simpatia (na acepção grega do termo, onde sym = união + pathos = emoção, sentimento) para com os desvalidos, reveladora da piedade cósmica bandeiriana (sentimento que nada mais é, ao cabo e ao fim, senão uma compassione, ou seja, um imenso desejo de unir-se ao todo).

Outra característica dessa lírica essencial (poésie pure) de Bandeira é aquilo que William Wordsworth definiu como “emotion recollected in tranquility”. O teórico alemão Emil Staiger, inspirado nessa ideia da lírica como emoção recordada na tranquilidade, observa que “o passado que [os poetas líricos] procuram trazer não está longe nem terminou. Não delineado nitidamente e nem compreendido em sua totalidade, movimenta-se ainda e comove o poeta e a nós mesmos […]” (1975, p. 54). Um pouco mais adiante, conclui que “o passado como objeto de narração pertence à memória. O passado como tema do lírico é um tesouro de recordação” (idem, p. 55, grifo nosso). É bastante significativo o resgate etimológico da palavra recordação feito por Staiger: re-cordar (do latim re-cordis, que significa trazer de novo ao coração). A lírica essencial, portanto, é emoção trazida de volta ao coração num momento de tranquilidade. Neste sentido, todos os poemas de Manuel Bandeira cuja temática é a nostalgia em relação à infância são essencialmente líricos. Dentre eles, “Velha Chácara” nos parece o mais emblemático:

VELHA CHÁCARA


A casa era por aqui…
Onde? Procuro-a e não acho.
Ouço uma voz que esqueci:
É a voz deste mesmo riacho.
Ah quanto tempo passou!
(Foram mais de cinquenta anos.)
Tantos que a morte levou!
(E a vida… nos desenganos…)
A usura fez tábua rasa
Da velha chácara triste:
Não existe mais a casa..
– Mas o menino ainda existe.
(BANDEIRA, op. cit., Lira dos Cinquent’anos, p. 187)

Nesta pequena obra-prima da lírica brasileira, podemos observar, mais do que em qualquer outro poema de Bandeira, a emotion recollected in tranquility. O eu lírico, ao perambular pelo terreno que outrora abrigara uma chácara familiar, só encontra a presença da ausência, evocada pela tranquila voz do riacho. A sossegada revisitação do sítio é quebrada pela súbita recordação de momentos da infância que, à época, pareciam estar impregnados de eternidade. Trata-se precisamente do fenômeno psíquico observado por Marcel Proust no livro Em busca do tempo perdido: o tempo é redescoberto (ou seja, o passado é ressuscitado) mediante um processo metonímico-sinestésico, adquirindo enorme densidade. Em suma: a voz do velho riacho está para Manuel Bandeira assim como o biscoito madeleine está para Marcel Proust:

“E logo que reconheci o gosto do pedaço da madeleine mergulhado no chá que me dava minha tia (embora não soubesse ainda e devesse deixar para bem mais tarde a descoberta de por que essa lembrança me fazia tão feliz), logo a velha casa cinzenta que dava para a rua, onde estava o quarto dela, veio como um cenário de teatro se colar ao pequeno pavilhão, que dava para o jardim, construído pela família nos fundos (o lanço truncado que era o único que recordara até então); e com a casa, a cidade, da manhã à noite e em todos os tempos, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas aonde eu ia correr, os caminhos por onde se passeava quando fazia bom tempo. E como nesse jogo em que os japoneses se divertem mergulhando num jarro de porcelana cheio de água, pequeninos pedaços de papel até então indistintos que, mal são mergulhados, se estiram, se contorcem, se colorem, se diferenciam, tornando-se flores, casas, pessoas consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e as ninfeias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas residências, e a igreja, e toda Combray e suas redondezas, tudo isso que toma a forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá.” (PROUST, 1992, p. 57-58)

Tanto em “Velha Chácara” como em À la recherche du temps perdu, ocorre um intenso adensamento do instante. Tal adensamento provoca uma completa subversão do que entendemos por temporalidade linear. Daí o esteta francês Gaston Bachelard concluir que a poesia lírica e, por extensão, a prosa poética que alcança esse patamar, destrói a continuidade simples do tempo encadeado:

“Em todo verdadeiro poema é possível então encontrar os elementos de um tempo detido, de um tempo que não segue a medida, de um tempo que chamaremos de vertical para distingui-lo do tempo comum, que foge horizontalmente com a água do rio, com o vento que passa. (…) A meta é a verticalidade, a profundeza ou a altura; é o instante estabilizado no qual as simultaneidades, ordenando-se, provam que o instante poético possui perspectiva metafísica.” (BACHELARD, 1994, p. 183-184)

Não foi por acaso que o próprio Bandeira sempre se considerou um poeta visceralmente lírico: “torno a repetir o verso de Banville: Je suis un poète lyrique!” (BANDEIRA, 1997a, p. 346). Consciente de que jamais seria um poeta dotado de um éphos capaz de engajar-se num amplo projeto social – como o foi Drummond, por exemplo –, Bandeira admite que o mundo das “grandes abstrações generosas” (idem, ibidem) lhe era vedado, que nele não havia “aquela espécie de cadinho onde, pelo calor do sentimento, as emoções morais se transmudam em emoções estéticas” (idem). Daí afirmar que teria de extrair o metal precioso da sua poesia “a duras penas, ou melhor, a duras esperas” do pobre minério das suas “pequenas dores e ainda menores alegrias” (idem). Por isso, se considerava, não sem ironia, um poeta menor. Mas a grande crítica, de Otto Maria Carpeaux a Davi Arrigucci Júnior e José Guilherme Merquior, tratou logo de desmenti-lo. Como esclarece oportunamente T.S. Eliot, “podemos considerar poetas menores os que só lemos [encontramos] em antologias” (idem, p. 68). Bandeira, portanto, só poderá ser considerado menor na medida em que a poesia essencialmente lírica for considerada menor, no sentido qualitativo, claro, visto que, como sabemos, “pertencerá à Lírica todo poema de extensão menor, na medida em que nele não se cristalizem personagens nítidos e em que, ao contrário, a voz central – quase sempre um ‘Eu’ – nele exprimir seu próprio estado de alma” (ROSENFELD, 1965, p. 5). Do ponto de vista do valor estético, considerar a poesia lírica arte menor é, evidentemente, incorrer num enorme equívoco.

Bernardo Souto, autor deste texto, ministrou o curso online “Manuel Bandeira: Conservador Autêntico” pelo Instituto Borborema. Confira mais detalhes sobre o curso no link: Instituto Borborema.

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.

BIBLIOGRAFIA

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