
Conhecer a cultura de um povo é fazer uma viagem para dentro de si, ao nosso inconsciente coletivo. O nosso chão e fonte original. Esse é o único caminho para que o Brasil possa, enfim, desenvolver uma civilização única, capaz de aportar contribuições para a humanidade, seja no campo artístico, científico, econômico ou ético.
Tiago Barreira
Adquirir cultura, cultivar a si, conhecer a si, autossuperar-se, ou outro termo muito na moda hoje, autocuidado: são todos termos correlatos e descrevem o mesmo processo. Não estamos falando aqui do autocuidado como esse exibicionismo narcisístico muscular que muitos buscam hoje em nome de uma autossatisfação e autoestima. Não estamos falando dessa autossuperação que os atletas perseguem em busca de vãs glórias exteriores. Também não estamos falando de uma viagem e jornada como esse turismo de massas que jovens universitários fazem a fim de colecionar curtidas de Instagram.
A importância da cultura para o autoconhecimento
Estamos falando daquilo que é o objetivo mais essencial da busca de cultura, que é essa jornada para o Ser. Ou nas palavras do escritor galego Vicente Risco: deste puntiño central do Ser, ao redor do qual nos refugiamos em meio a todas as tempestades, instabilidades e mudanças fugidias da vida e do mundo.
É nesse sentido que respondemos à pergunta: o que é cultura? Por que devemos adquiri-la? É nesse sentido que devemos buscá-la. Esta jornada em direção ao nosso interior, ao nosso Ser mais autêntico. A maior luta e batalha que alguém pode empreender nesta vida é a conquista desta voz interior. Tudo o mais que busca calar esta voz interior, seja as alienações sociais, ideológicas, os automatismos da vida cotidiana, devem ser combatidas.
Os gregos antigos também entendiam a cultura desta forma, e tinham um nome para essa aquisição de cultura: a Paideia. E ela estava ligada à conquista de excelência e perfeição humana, àquilo que há de mais pleno e belo dentro de nós. Conhece-te a ti mesmo, segundo Sócrates, era o caminho seguro para a conquista da nossa felicidade espiritual.
Termino, então, de definir a ideia de cultura em seu sentido de alta cultura, segundo os filósofos clássicos e antigos. Como uma pedagogia do autocultivo espiritual em direção ao Ser.
A conexão entre alta cultura e cultura popular
Falta então definir cultura em uma outra dimensão. Conhecer a si mesmo: jornada, viagem ao nosso ser. Esse Ser, fonte dessa voz interior, é um universo e um mundo. Ele é um microcosmo e espelho do mundo exterior, o universo da cultura e da sociedade humana, ou como expressado por Leibniz, uma mônada.
Não há outro caminho para o encontro com o Ser presente em nossa alma inconsciente interior, se não através do contato com o mundo exterior da cultura popular, expressado através de sua literatura, narrativas, lendas e mitos.
É aí que quero finalmente chegar ao tema central deste artigo. Conhecer o mundo cultural social exterior, enquanto complemento da alma interior, é o único caminho seguro para essa jornada à esta mônada inconsciente.
Justamente aí que entro na importância crucial da cultura popular. Ela não é uma cultura inferior, alheia à formação pedagógica da Paideia, mas parte integrante desta. É precisamente isso que no século XIX, ocorreu na Europa ocidental: a descoberta da cultura popular pelo romantismo.
A busca do ser autêntico foi o grande objetivo dos românticos, que encontraram na cultura popular expressões genuínas dessa autenticidade, e ponto de partida para a inspiração de sentimentos autênticos em uma sociedade e para o desenvolvimento uma civilização vitalizada.
A ideia do gênio artístico criador surge do romantismo. O gênio artístico ocupa uma posição central e revitalizadora em uma sociedade, como intérpretes desta, algo similar a profetas. Para pensadores românticos, como Herder, a intuição poética é exaltada, ao ser capaz de dar voz ao imaginário inconsciente de um povo e de uma nação, na forma de uma literatura e arte únicas e autênticas.
A arte popular, a literatura, a língua, as narrativas míticas, segundo os românticos, é a expressão deste grande gênio criador coletivo, que é o povo.
O projeto cultural romântico, de resgate das tradições populares, tem assim o seu grande valor pedagógico e cultural. Neste sentido, não existe dicotomia entre alta cultura e cultura popular. A cultura popular é um componente indispensável para a formação pedagógica da alta cultura. Paideia para os gregos antigos, Bildung segundo Goethe, ou o human flourishing segundo os filósofo anglo-saxões. Seja qual for a denominação, o autocultivo humano requer como todo ponto de partida um solo, um chão. Esse chão é o solo do mito, dos símbolos e arquétipos arraigados no imaginário de um povo.
Muito bem, terminamos de definir aqui a cultura popular e o seu papel, segundo o projeto romântico. Como uma expressão fecunda do inconsciente coletivo, profundo e vasto, presente em uma cultura local.
Alta cultura, em um mundo de mentalidade economicista e utilitária, se tornou confundida como bem de consumo de luxo, enquanto um produto voltado exclusivamente para as elites econômicas. Algo totalmente falso.
Encontramos expressões elevadas de originalidade em movimentos artísticos brasileiros de tema popular. Muito do preconceito que se ganhou contra a alta cultura no Brasil vem dessa tendência de encará-la como um esnobismo de classes econômicas abastadas.
Por outro lado, há um certo preconceito por parte de muitos difusores da alta cultura no Brasil em desprezar toda manifestação cultural popular nacional como uma expressão de decadência, e voltar as costas para tudo o que as tradições rurais e não-europeias, como tradições africanas e indígenas, deixaram em termos de música, poesia, arte no Brasil.
Buscar o equilíbrio nesse sentido é fundamental. Nem a alta cultura verdadeira segue esse estereótipo do acadêmico classicista engravatado de cachimbo, que peca pela inautenticidade superficial, e nem a cultura popular geunína segue esse estereótipo do funkeiro, do pagodeiro e do cantor sertanejo, que produz conteúdo para as massas, e que também peca por ser inautêntico.
A importância da cultura popular na formação coletiva e individual
É nesse sentido que devemos entender o papel da cultura popular. O resgate desse mundo de símbolos, narrativas, heróis e tragédias, encontrado no imaginário de sua arte e literatura, é crucial para a regeneração de uma tradição e cultura. É um contato com o chão que nos nutre, as raízes e fontes de inspiração. Em termos de psicanálise junguiana, o contato com esse grande inconsciente coletivo perene é um meio de superação de nossos traumas, medos, angústias coletivas. Toda essa gama de complexos inconscientes, volta e meia manifestados em nossa história através de falsos líderes, de falsas ilusões e promessas.
O povo brasileiro necessita dessa grande terapêutica de encontro a si mesmo, de modo a superar suas crises, aprender com suas tragédias e fracassos, a exorcizar seus complexos. Empreender essa jornada espiritual, essa Paideia, essa redescoberta de sua própria cultura e do chão de seu inconsciente coletivo, pode ser entendida não apenas em sua dimensão individual dos psicanalistas, a ser feita para fins de crescimento pessoal, como também coletiva, para fins de crescimento civilizacional
Esse é o único caminho para que o Brasil possa, enfim, desenvolver uma civilização única, capaz de aportar contribuições para a humanidade, seja no campo artístico, científico, econômico ou ético. Na literatura e arte tradicional popular encontramos inúmeros símbolos e mitos que moldam o nosso caráter e modo de ser e viver brasileiro. A cultura popular brasileira, de base galego-portuguesa, africana e indígena, por mais que muitos hoje tentem virar as costas em busca de modelos alheios à sua formação, pode ser vista, nas palavras de Joaquim Nabuco, como esta “ama de leite” que nos nutre desde pequenos e que, por isso mesmo, está ligada a nós substancialmente. As cantigas, a lírica, os contos, o folclore rural, as lendas, a nossa língua portuguesa. Tudo isso forma e molda o nosso universo inconsciente que carregamos à vida adulta, direcionando o nosso destino.