
A manipulação da linguagem é uma das grandes formas encontradas para a perpetuação e o controle hegemônico de poderes políticos estabelecidos. Vemos isso na novilíngua orwelliana de 1984, na qual regime distópico e totalitário inglês fazia uso de uma retórica de inversão da realidade para a conservação do poder. Como exemplo, as práticas mais abusivas empregadas contra população eram legitimadas pela implacável manipulação propagandística, ocultando-as por termos de significados mais nobres possíveis. Para o estado distópico de Orwell, guerra significava paz e liberdade significava escravidão. Transposta a ficção para o mundo real de hoje, exemplos abundam. República Democrática da Coreia é o nome oficial da Coreia do Norte. A República popular da China, o autocrático regime do PC Chinês.
Não precisamos, contudo, ver casos extremos de controle hegemônico da linguagem em países totalitários distantes. Esta também ocorre em países democráticos como o Brasil, no qual durante décadas predominou o monopólio de pensamento hegemônico social-democrata. Este pensamento, com todo o seu universo semântico consagrado pelo período de pós-ditadura militar e pela constituição de 1988, habituou o debate público com o emprego de termos viciados e desconectados da realidade concreta.
Como exemplo, habituou-se a chamar de justiça as políticas de cotas e reparações históricas, que na verdade leva ao tratamento injusto de dois indivíduos iguais perante a lei. De contribuintes os pagadores compulsórios de impostos. E de Pacto Federativo, a destruição da autonomia de estados e municípios. Este último caso pode ser considerado um dos piores casos de inversão semântica.
Em contraste ao federalismo americano, que estabelece regras simples e claras de autonomia financeira e legislativa às esferas estaduais, o federalismo brasileiro estabelecido pela constituição de 1988 é complexo e problemático. Um pseudo-federalismo que promete ambas as autonomias legislativas e financeiras aos entes federados, mas que não entrega nenhuma das duas.
Como explicar um país, que sob o nome oficial de República Federativa, apresenta em sua maioria estados quebrados financeiramente, incapazes de se autofinanciarem com recursos locais e dependentes de transferências externas da União? Como explicar a autonomia legislativa de estados e municípios, se estes sequer possuem liberdade para cortar gastos, uma vez sendo obrigatórios e impostos pela Constituição Federal como gastos vinculados? Os gastos obrigatórios vinculados constitucionalmente, como funcionalismo público, saúde e educação, representaram mais de 68% das despesas do Rio Grande do Sul e 38% do Rio de Janeiro em 2016. Tratam-se de orçamentos altamente engessados e rígidos, com pouca flexibilidade para alocação de recursos a outras áreas, como investimentos. [1]
É sabido que gastos sociais, como saúde e educação, são em sua maioria atribuições obrigatórias de estados e municípios. Como exemplo, municípios são obrigados a cumprirem constitucionalmente um piso salarial mínimo por professor, bem como a gastarem 15% de toda sua arrecadação com saúde. O número de obrigações e vinculações impostas constitucionalmente, contudo, só cresceram ao longo dos anos, engessando ainda mais o orçamento estadual e municipal, e fazendo com que despesas sociais apresentem crescimento vertiginoso. Um crescimento vertiginoso que não foi acompanhado por correspondente aumento da capacidade de arrecadação dos entes estaduais e municipais. [2]
Além disso, esta capacidade de arrecadação se encontra muito concentrada nas mãos do governo federal. Como podemos ver na tabela abaixo, é a União que concentra a maior parte do montante total arrecadado, de 57,1%, contra 24,7% dos estados e 18,2% dos municípios, para o ano de 2011. A tabela também mostra uma queda na participação dos estados no montante total arrecadado desde 1988, bem como um nível ainda altamente concentrado na União. Trata-se no final, de recursos arrecadados que não são destinados aonde os gastos e despesas se concentram. O resultado são serviços públicos que deixam a desejar para a maioria da população. [3]

A esta dinâmica problemática de pacto federativo, de recursos muito concentrados em esferas de poucos encargos sociais, se adicionaria um segundo fator explosivo: a queda da arrecadação da União decorrente da crise fiscal de 2014-17. A crise levaria ao colapso final do sistema e da transferência de recursos do Fundo de Participação dos Estados (FPE), promovendo a quebra generalizada de estados. Desde então tornou-se recorrente a tensão entre governadores e a União por renegociação de dívidas. Os casos de colapso fiscal do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro tornaram-se emblemáticos, potencializados pelo populismo fiscal do primeiro e pela queda da arrecadação de royalties de petróleo do segundo.
O pacto federativo se vê diante de um grande impasse, sendo urgente a discussão de um verdadeiro federalismo nacional. Que reflita uma estrutura de gastos públicos a ser decidida a nível descentralizado e local, e compatível com as necessidades financeiras locais. Que haja flexibilidade e autonomia legislativa e financeira por parte de estados e municípios, a decidirem livremente o montante que quiserem arrecadar e gastar, restaurando assim a federação ao seu sentido original e verdadeiro.
Tiago Barreira
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