
Tiago Barreira
O que é ser feliz? Na sociedade moderna, a felicidade é vista como algo estritamente ligado à riqueza e posse de bens materiais, em outras palavras, ao bem estar material advindo de posses como dinheiro, saúde, etc.
Segundo o filósofo Giovanni Reale, o homem moderno está imerso em uma cultura de culto à tecnologia e ao êxito prático, denominada de praxismo tecnológico. O praxismo tecnológico pode ser definido como a crença na redução de todos os valores humanos ao fazer e produzir materiais, e na superioridade da vida ativa sobre a contemplativa. Nesse sentido, todas as coisas e a natureza em seu conjunto perdem o seu status de sacralidade contemplativa e um fim em si mesmo, tornando-se meios e objetos de utilidade prática. É como se tudo o que existisse tivesse o seu valor somente na medida em que servisse ao bem estar material humano momentâneo, e nada além disso.
Reale coloca que o praxismo tecnológico se tornou um valor supremo na vida moderna, graças ao aperfeiçoamento da técnica dos últimos séculos. Nunca o homem possuiu à sua disposição uma quantidade e variedade tão vasta de bens materiais, aos quais gerações anteriores não só nunca tiveram, como jamais imaginariam poder ter.
Contudo, Reale também aponta que o homem atual, ao mesmo tempo em que desfruta de todos os benefícios da modernidade, nunca se sentiu tão insatisfeito. A abundância de bens materiais, em vez de preencher o homem, o esvaziou. Citando as palavras de Edgar Morin, vive-se um grande ”mal-estar da civilização”, como também tão comumente descrito e denunciado por pensadores que influenciaram a pós-modernidade, como Nietzsche e Freud.
Segundo Giovanni Reale, esta concepção moderna de felicidade como bem-estar material se tornou uma substituta da felicidade entendida pelos pensadores clássicos e pré-modernos, a felicidade espiritual. Reale vai investigar então a noção de felicidade entendida pelos pensadores pré-modernos, e irá alcançar uma concepção muito contrária daquela entendida pelo senso comum.
Segundo Reale, o termo grego que indicava o que nós chamamos de felicidade chama-se de Eudaimonia (εὐδαιμονία). Originariamente na cultura helênica, eu-daimonia significava ter um bom gênio protetor, do qual se considerava que dependia uma vida próspera.
Contudo, à medida em que a filosofia grega ensaiava seus primeiros passos com os pré-socráticos, esta concepção, vinculada à posse de um gênio protetor, foi se interiorizando e se espiritualizando de forma profunda, tornando-se vinculado estreitamente à noção de natureza humana.
Heráclito já explicava claramente que a Eudaimonia, ou seja, ser felizes, não consiste nas coisas que se tem e no bem-estar material. Nas palavras de Heráclito:
“Se a felicidade consistisse nos prazeres do corpo, deveríamos considerar felizes os bois, quando encontram o que comer”
Demócrito, outro grande pensador da Grécia antiga, também afirmava que:
“A felicidade não consiste nos rebanhos e tampouco no ouro: a alma é a morada de nossa sorte”
Mas no que consistiria exatamente em uma felicidade da alma? É com Sócrates que esse conceito de felicidade da alma se tornou claramente desenvolvido e explicitado, gerando profundos impactos no pensamento ocidental durante milênios.
A mensagem de Sócrates pode ser resumida como: “Se queres ser feliz, cuida da tua alma”. E no que consistiria cuidar de uma alma? Para Sócrates, uma alma bem cuidada está ligada a um segundo conceito também já outrora presente no pensamento grego e aprofundado por ele, denominado de Aretê (ἀρετή), ou a Virtude.
Nas palavras de Giovanni Reale, a Aretê entendida pelos gregos antigos consistia na plena manifestação da essência de algo, isto é, na plena realização daquilo que a torna uma coisa válida, seja ela qual for. Pode-se, portanto, falar de virtude de um animal, de uma planta, de um objeto. A Aretê de uma semente consiste em germinar e frutificar. A Aretê de um animal consiste em nutrir-se e reproduzir.
A virtude do homem em sentido grego é, pois, a plena e perfeita manifestação daquilo que ele é, e daquilo que o torna válido. E ainda segundo Reale, os gregos entendiam que o verdadeiro bem para o homem, nesse sentido, não pode ser o mesmo de uma planta ou da de um animal. Mas sim só pode ser a virtude de sua alma racional, e da sua perfeita realização: só daqui pode derivar todo o bem e, portanto, a felicidade.
E é justamente nesse sentido em que Sócrates destaca o papel da virtude na felicidade humana, ao identificar a Aretê como a própria causa e fundamento da Eudaimonia. Em seu discurso diante do julgamento de Atenas, que o condenou à morte alegando estar corrompendo a juventude ateniense, Sócrates afirmou que a sabedoria e da virtude é o maior bem a ser alcançado pelo homem, e todos os demais bens são acrescentados.
Assim falou Sócrates diante de seus juízes, registrada por Platão na Apologia de Sócrates:
“Querido amigo, tu que és ateniense, cidadão da maior e mais famosa Cidade por sua sabedoria e seu poder, não te envergonhas de te preocupares com as riquezas para ganhar o mais possível, e com a fama e honrarias, em vez de te preocupares com a sabedoria, a verdade e com tua alma, de modo que se torne cada vez melhor?”
E em seguida Sócrates conclui com uma das suas passagens mais célebres em toda a obra:
“Estou tentando apenas convencer-vos, aos mais jovens e mais velhos, de que não deveis preocupar-vos com os corpos, com as riquezas ou com alguma outra coisa antes de vos preocupardes primeiramente com a alma, de forma que se torne a melhor possível, afirmando que a virtude não nasce das riquezas, mas da própria virtude vêm, aos homens, as riquezas e todos os outros bens, tanto privados quanto públicos”
Sócrates deixa claro, nessa passagem, que não renega a importância dos bens exteriores, o dinheiro, o poder, etc. Logo, a conquista de bens exteriores seria nesse sentido uma consequência da conquista do bem interior da alma. A Aretê, portanto, consiste justamente nessa potência da alma em alcançar o êxito prático exterior. E só uma alma sábia consegue ser virtuosa.
Para Sócrates, portanto, uma alma sábia é uma alma feliz. O filósofo ama o saber, por isso se dedica a ele de modo integral e ininterrupta. É lendária a figura incômoda de Sócrates, filosofando nas praças e nos banquetes de Atenas, quando todos pretendiam apenas praticar política, comércio e outras banalidades cotidianas.
É que Sócrates filosofava exatamente sobre essas práticas cotidianas, sobre o que seria uma vida boa, a felicidade, em como tomar consciência do sentido, da causa primeira e do fim último de tudo isso. Daí a sua célebre afirmação na Apologia: “uma vida não refletida não é digna de ser vivida”.
E por fim, ainda mencionando a Apologia, Sócrates, contrastando a atividade do filósofo com a dos sofistas amantes do poder e prestígio público, não hesita em comparar a própria atividade do filósofo com a do atleta que participa das Olimpíadas e vence as competições, e por isso recebe o prêmio,
“Esse homem (os sofistas) faz com que vos sintais felizes; eu porém, faço com que o sejais.”
A felicidade, portanto, não é ter, não depende de possuir determinadas coisas, sejam elas quais forem, mas é um modo de ser do homem e depende da consequente maneira com que ele se relaciona com as coisas.
A Eudaimonia consiste, portanto, não no que você tem, mas no que você é.
É nesse sentido que se deve entender, portanto, outra célebre frase de Sócrates “Conheça-te a ti mesmo”.
Fonte:
Giovanni Reale, “O Saber dos Antigos-Terapia para os Dias Atuais”. Editora Loyola. 1999.
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